Um
fio dental branco
Tomislav R. Femenick
Seu nome era Charles Joseph de Barros,
mas como morava na casa 33 de um conjunto residencial de classe média-média,
todos o chamaram de Carlinhos do 33. Era boa praça. Casado com Terezinha (uma
boazuda que usava minissaias e decotes generosos e que deslumbrava a fauna
masculina da vizinhança), com quem tinha dois filhos ainda pequenos, o Junior e
a Doroti. Logo, logo ele era o dentista da maioria dos moradores do conjunto,
pois era cômodo para todos: seu consultório era em sua casa. Só as fofoqueiras
e esquisitas irmãs Almeida, solteironas que moravam em frente à sua casa, não
eram suas clientes. Elas usavam dentadura e diziam que tinham duas de reserva.
Com menos de seis meses de inaugurado o Conjunto Residencial Village de Paradise,
estava criado o costume de alguns casais se reunirem aos domingos, em torno de
um churrasco e de umas cervejas – mais das cervejas que do churrasco. Embora
entre as mulheres não houvesse nenhuma feia, Terezinha era a única que
deslumbrava. E naquele seu biquíni fio dental branco... Era de enlouquecer
qualquer um. Não tardaram a acontecer cenas de ciúmes. Primeiro, discretos
beliscões das outras mulheres nos seus respectivos maridos. Depois, discussões
abertas, xingamentos e brigas quase feias. Justiça se faça, Terezinha do 33
nunca deu motivos para nada. Sempre ficou no seu lugar, se comportando muito
bem. O diabo era o fio dental branco; que nem era excessivamente cavado mas,
mesmo assim, deixava as nádegas e as coxas quase que totalmente expostas à
imaginação dos marmanjos. Por imposição das mulheres dos outros maridos, as
reuniões em torno das cervejas e do churrasco foram se espaçando, até que
findaram.
A mudança não foi só essa. O dentista
passou a ser cerimonioso com os vizinhos, que não mais o chamavam de Carlos do
33. Agora era Dr. Carlos, quando não Dr. Charles. Sua mulher, de Terezinha do
33 passou para Dona Terezinha. Não se sabe se por causa disso ou do abandono
das domingueiras, o fato é que muitos dos clientes voltaram aos seus antigos
odontologistas. Até as crianças da casa 33 foram atingidas. Se antes iam para a
escola cada dia da semana no carro de uma das mães dos seus colegas, passaram a
ir todos os dias sozinhos no carro dos seus pais. A verdade é que o Conjunto Residencial Village de Paradise,
se não ficou triste, ficou menos alegre.
Quando houve uma festa na escola, embora
tivesse prometido aos seus filhos que iria, Dona Terezinha não foi, apenas
deixou as crianças na porta da escola. A tardinha, no começo da noite, na hora
da volta para casa, ela também não apareceu. Telefonaram para o pai e ele os
foi buscar. Chegaram em casa e nenhum sinal da esposa e mãe exemplar. Quando a
noite já tinha se firmado, o Dr. Charles ligou para a polícia. Um investigador
foi até a sua residência. Ficaram ligando para os parentes e amigos, tomando
cerveja, esperando mais um pouco para ver se a desaparecida aparecia. Quando o
policial perguntou se o marido não tinha desconfiado de alguma escapadela da
esposa, a insinuação foi repelida prontamente. Lá para as tantas, só para
manter a conversa, Charles disse que tinha encontrado uma carta anônima em seu
carro, criticando as saias curtas e o jeito de andar de sua mulher. Coisa sem
importância. Meia noite, e nada. Então o alarme foi dado.
Dois meses depois, o coveiro de um
cemitério vizinho do Village, foi aprontar uma cova que se pensava vazia e lá
achou o corpo de Dona Terezinha, já em adiantado estado de decomposição. A
aliança, as roupas e as lentes de contato é que serviram para identificar o
cadáver. A notícia saiu nos jornais e nos noticiários das rádios e da TV, com
comentários os mais disparatados possíveis. Logo o condomínio se transformou em
uma colmeia de diz-que-diz. Entre outras coisas comentavam que, “se expondo daquele jeito, ela estava
procurando sarna para se coçar”, “que
sendo o que era, só podia dar no que deu” etc. Estranhamente só as irmãs
Almeida – as fofoqueiras oficiais do pedaço – ficaram alheias a todos os
rumores. Até evitavam conversar sobre o assunto.
Como o marido tinha álibi para todo o
dia em que sua mulher desapareceu e ninguém tinha visto a falecida sair de casa
(o carro do casal ficou na garagem desde a hora em que ela chegou da escola,
onde foi levar os filhos, até quando o seu marido os foi buscar), era um
mistério. Então apelaram para o escrivão Pereira, um especialista em casos
desconcertantes.
A solução foi fácil. Removendo a terra
da sepultura onde estivera o corpo de Dona Terezinha, o escrivão encontrou uma
dentadura superior quebrada e restaurada e que tinha uma peculiaridade: um dos
dentes frontais era mais escuro que os outros, igualzinho à dentadura superior que
uma das irmãs Almeida usava e não usa mais. Tudo isso veio à tona com uma
simples conversa de Pereira com as irmãs que, diga-se de passagem, não
aguentavam mais guardar tanto segredo; tinham que contar a alguém. Aconteceu o
seguinte, disseram: dona Terezinha ouviu um barulho no carro do casal. Foi ver
o que era e se deparou com as irmãs Almeida colocando mais outra carta anônima
para seu marido. Antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, uma das irmãs
pegou uma pá que estava no jardim e com ela golpeou a cabeça da mulher do
dentista que, ao cair, bateu com a nuca na quina do batente da varanda e
morreu. Como era cedo da noite, ninguém viu. Colocaram o corpo em um carinho de
mão, o levaram para o cemitério vizinho do condomínio e o enterraram em uma
cova que estava aberta. Um acesso de tosse fez a irmã mais velha perder a
dentadura dentro da sepultura improvisada.
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