quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

 

Liberdade é uma sensação resplandecente
Tomislav R. Femenick – Jornalista e historiador; do IHGRN

Há uma senhora que não conheço pessoalmente. Já muito ouvi falar sobre ela, já li muito sobre ela, já a vi de longe, mas nunca de perto. Muitos pensam que é norte-americana. Mas é francesa de nascimento. Alguns afirmam que ela é uma mística que procura representar um conceito da realidade. 
Outros, mais cépticos, dizem que ela é como aquelas ciganas enganadoras.  Embora a respeitando, estranho ver que uns a tratam como se fora uma pessoa da família; outros a veneram e têm com ela uma relação cerimoniosa, cheia de salamaleques. Mas há os que só fingem gostar dela. Esses “fazem promessas e juras e depois se esquecem”. Outros são excessivamente possessivos, e a querem só para si. E existem, também, os que a detestam publicamente e não perdem oportunidade de ameaçá-la. E, como ocorre com mulheres que se destacam, muitos já lutaram e até morreram por ela. Estou falando da liberdade e de sua estátua, plantada na Liberty Island, na baía de Upper, perto da confluência dos rios Hudson e East, em frente à ilha de Manhattan, na cidade de New York, nos Estados Unidos.
Já fui à Nova Iorque um número de vezes maior do que poderia pensar, mas nunca fui visitar a senhora Liberdade, por mais emblemática que ela seja, não só para os norte-americanos, mas para todo o mundo. Aprendi com a história da minha vida que a liberdade não é uma coisa material. Que é algo intangível, um sentimento subjetivo, uma sensação resplandecente, luminosa, individual, pessoal e particular de segurança e não algo concreto, que pode ser tocado, medido e contado. Mas duas coisas são certas. Primeiro, a importância da liberdade é mais notada quando não a temos; segundo, ela só existe onde há democracia.
Para mim é estranha e contraditória a relação que os estadunidenses têm com a liberdade. Ora ela é exclusiva para uma parte da sociedade, para os brancos, por exemplo; deve servir somente a eles, deve servir aos interesses deles. Durante muito tempo, até há anos recentes, aos negros eram negados direitos elementares, tais como entrar no restaurante que quisesse, sentar em qualquer lugar dos ônibus. Hoje eles ocupam lugares de destaque no congresso, nas cortes de justiça, nas forças armadas, para não falar no mundo dos negócios; embora se destaquem mais por serem minoria. Na música sempre pontificaram, mas até aí tiveram que lutar para serem aceitos nos palcos tidos como das elites brancas. Ainda hoje os latino-americanos são considerados cidadãos de segunda classe e mão de obra barata. Nesse aspecto, a liberdade é propriedade de branco, anglo-saxão e protestante. Estranha essa noção de liberdade que têm os norte-americanos. 
Mas não há como contestar a liberdade da imprensa da terra do Tio Sam. Quem derrubou Nixon, forçando-o a renunciar à presidência do maior, mais rico, mais poderoso e importante país do mundo foi um jornal, The Washington Post, quando denunciou o escândalo do Watergate. Agora são os próprios jornais e canais de televisão dos Estados Unidos que denunciam as torturas praticadas por soldados americanos nas prisões do Iraque. E não há pressão alguma do governo contra eles. Bizarros, esses ianques. Em contrapartida, por aqui o governo faz a blindagem “dos seus”, para evitar a apuração de denúncias. 
Mas voltemos à arte que faz referência à liberdade. Eu prefiro muito mais a estátua que existe na Praça da Redenção, em Mossoró. Ela pode ser menos imponente, ser bem menor, não ter tanta carga artística e até ter sido inspirada naquela que os franceses deram aos nova-iorquinos, porém é mais pontual, mais direta ao comemorar um fato histórico: a abolição da escravidão na terra de Santa Luzia de Mossoró, em 30 de setembro de 1883. Agora o “veio da Havan” está construindo uma das suas lojas aqui em Natal e, certamente, vai erigir um estatua réplica da nova-iorquina. Não entendo essa sabujice ao que é “estrangeiro”; ao que vem dos “States” ou da Europa. 

Tribuna do Norte. Natal, 19 jan. 2022.


 

TEMPOS E COSTUMES

Valério Mesquita

Simulacro e realidade se misturam nas cavernas cerebrais de cada homem., Nem todo golpe é decisivo. No âmbito da justiça sempre se debaterão o efêmero e o eterno. Mesmo nos melhores jardins podem nascer flores do mal. O Judiciário brasileiro hoje em dia está sendo muito questionado. Se a Igreja Católica vive o momento trágico dos padres errantes, avalie os sacerdotes togados dos tribunais? Não se pode mais alimentar ilusões sobre a natureza humana. A perplexidade do julgador é um conflito às escuras com vastas solidões porque a ele é servido sempre renovar, recriar e inventar.

Se prevalecer no judiciário brasileiro o entendimento de uma liminar recentemente concedida à Prefeitura de Guamaré (RN), que impede a inspeção legal e constitucional pelo Tribunal de Contas do uso dos recursos públicos, a quem será outorgada essa permissibilidade? Ao que sei, a democratização das informações dos tribunais de contas, ensejando não somente o seu acesso pelos mecanismos eletrônicos, mas também através da ampla divulgação da mídia, dos seus atos, todos são fundamentados constitucionalmente e alimentados por ampla jurisprudência a respeito.

Os riscos dessa decisão singular e monocórdia podem se constituir num escapismo generalizado para aqueles agentes públicos mal-intencionados e aproveitadores contumazes da justiça por vezes, fácil e tardinheira. Essa enfermidade instalou-se em muitas instâncias pelo Brasil afora. Como ficariam o ordenamento e o papel dos tribunais de contas no controle da fiscalização e a natureza das competências consagradas na Constituição e na sua Lei Orgânica?
Lembrei-me de uma citação feita pelo amigo auditor e escritor Cláudio Emerenciano de Ernest Janning, um dos maiores juristas do século XX, no Tribunal de Nuremberg. Tendo sido presidente da Suprema Corte de Justiça da Alemanha nazista no ensejo do seu julgamento, gerou perplexidade diante dos demais denunciados, quando declarou peremptoriamente a sua culpabilidade: “Sou culpado, por ter conspurcado de dentro de mim, não um direito, mas o compromisso com a justiça. A justiça sim, ela é quem norteia a geração, a criação, a elaboração e a legislação do Direito. E sua própria aplicação”.

Não quero contraditar o douto julgamento da liminar. Desejo, apenas, externar a minha preocupação com o futuro ante uma nova realidade que pode sepultar de vez os valores morais dos agentes políticos no trato com o dinheiro do povo.

(*) Escritor

 

domingo, 16 de janeiro de 2022

A MELHOR IDADE ? – Berilo de Castro



A MELHOR IDADE ? –

O ciclo da vida tem suas etapas bem distintas e demarcadas, de acordo com a idade, que vão do nascimento à morte.

Nesse contexto, temos: a infância (do nascimento até os onze anos), a  adolescência (dos doze aos vinte anos), a fase adulta (que inicia aos vinte e um anos) e, finalmente, a  velhice, também conhecida como terceira idade, melhor idade (nunca), que se inicia, segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), aos setenta e cinco anos.

Diante dessa descrição, quero me referir e relatar o dia a dia daqueles que atingiram a quarta fase, não tão boa como alguns querem e a chamam de “melhor idade”.

Os que nela se encontram já percebem um certo vazio:  a ausência de amigos, colegas e de  familiares da sua época; já sentem a aproximação angustiante da solidão. Já não circulam como antes, já não frequentam mais os seus divertidos e  habituais redutos; já sentem falta daqueles bons bate-papos, de  jogar conversa fiada fora. Não há mais quórum: tem chão, mas falta gente. Muitos já se foram para habitar um novo  planeta inimaginável –  o dos mortais.

Quando raramente se encontram, são em locais nunca antes desejados e imaginados: nas farmácias, nas salas de espera dos laboratórios, dos consultórios médicos; nas urgências hospitalares e nos velórios e ou sepultamentos.

Os cumprimentos mudaram o seu formato; o tradicional e alegre “bom dia, tudo bem?” foi substituído pela informação direta sobre o estado de saúde: “saí há poucos dias do hospital”, “fiz a minha terceira mamária” (revascularização cardiovascular), “o médico disse que o meu coração está zerado, tudo muito bem”. Bem? Estão sim, as farmácias, rindo à toa, vendendo como nunca.

O outro já chega comentando: “estou com a minha segunda ponte de safena, não sei se estou bem ancorado, mas, ainda, conseguindo atravessar a pinguela”.

Um se aproxima, apoiado e ajudado pela bengala, e comenta: “acabo  de colocar uma prótese de quadril e estou me preparando para também trocar o joelho, está tudo precisando de reposição. Ultimamente só vivo em fisioterapia e hidroterapia, virando peixe nas piscinas aquecidas”.

Outros se cumprimentam dando informações diretas  sobre algum amigo ou contemporâneo: “sabe quem está na UTI do hospital X? Fulano! Dizem que não sai mais vivo de lá!”. O outro rebate e indaga: “E Beltrano? Depois da covid, ficou com uma notável sequela neurológica, não se lembra mais de nada, só faz chorar e perguntar pela avó”. Já Sicrano está com a próstata crescida, levantando-se dez vezes à noite para urinar aqueles pinguinhos, já não consegue mais dormir. Examinado pelo médico de dedo grosso, e  após o toque retal, foi orientado a retornar semanalmente para reexaminá-lo; ficou receoso de  gostar e ficar na dependência dedal. E outros relatam que o cirurgião urológico retirou a próstata toda, não  deixando nada e, hoje, se  sentem amofinados e desencorajados.

O isolamento caseiro, que foi deflagrado na pandemia viral de 2019, piorou muito a situação dos que estão na idade da “descida da ladeira”. O bicho perigoso da solidão se apegou e impregnou mais a vida dos isolados.

E, assim, segue a vida, no seu percurso cíclico; uns vão mais cedo e, aqueles que chegam na sua quarta fase,  vão enfrentando todas essas mazelas, vivendo  e achando bom! Tocados pelo ritmo de Zeca Pagodinho:

E deixa  a vida me levar / Vida  leva eu / Sou feliz e agradeço / Por tudo que Deus me deu; e emenda com o grande e imortal cantor/compositor Gonzaguinha: Ninguém quer a morte / Só saúde e sorte.