quinta-feira, 26 de setembro de 2024
Solidão, presença indesejável
Padre João Medeiros Filho
A solidão, ausência de companhia e interlocução, marcada pelo isolamento, é algo
doloroso. Existe o risco de levar alguém à depressão e morte. Faz-nos pensar na música
de Vinícius de Moraes e Toquinho “Um homem chamado Alfredo”. Este contava tão
somente com a companhia de um papagaio e um gato de estimação. Desistiu de viver,
inalando gás de cozinha. Dizia-se cansado da vida, por não ter ninguém com quem falar,
alguém para amar, uma mão para apertar. Entediou-se com sua invisibilidade e existência
que não atraía ninguém. A solidão é um dos grandes males testemunhados nos dias de
hoje. Pode acontecer em um pequeno quarto ou sentida em meio às multidões que passam
e não veem, escutam e nem se dão conta de que ali há um semelhante com sentimentos,
sonhos e desejos. “É solitário andar por entre a gente”, desabafava Camões num soneto.
Os seres humanos são relacionais, necessitando da presença e interação de outrem
para viver. O isolamento acaba destruindo uma pessoa, prematura ou repentinamente. O
governo britânico criou o Ministério da Solidão, ao constatar que o Reino Unido invertia
a corrida mundial pela longevidade, apresentando índices de mortalidade precoce em seus
cidadãos. Tornou-se para os ingleses problema de saúde e política pública. Carecia de um
órgão para cuidar dessa nova situação humana. Suas maiores vítimas são os idosos. Há
cidadãos que já não contam mais no mapa da produtividade, contribuição social e beleza.
Têm suas atividades físicas limitadas. Segundo os versos de Vinicius, “andam com os
olhos no chão, pedindo perdão por existir e incomodar.” São impotentes, não tendo a
quem pedir socorro, quando se aproximam do abismo da depressão. Esse grupo avolumase nas aglomerações modernas. A longevidade aumenta e não se morre mais no apogeu
da existência ou na flor da idade. Nestes casos, a partida era sentida e pranteada. Na
velhice, o óbito poderá deixar um alívio para alguns.
Os solitários de hoje são majoritariamente os idosos, órfãos de filhos vivos,
esquecidos pela família. Não raro, os descendentes e familiares moram longe,
acarretando dificuldade financeira e de deslocamento para visitá-los. Ou, porque
atrapalham a ânsia de lazer e consumo que predomina na nas gerações atuais. Quem vai
querer um velho incomodando um fim de semana de festas, comemorações e
programas? E o idoso fica em casa, geralmente pequena e sem muitos recursos. Onde
estão os amigos do ancião? Muitos, doentes; vários já partiram. E os recursos para
passeios e diversão? As aposentadorias são parcas, mal dão para comprar comida e
remédios. Os filhos ajudam? Provavelmente. Nem sempre com o suficiente. Há outras
prioridades, como levar as crianças a Disney, esquiar na Europa, divertir-se em casas
de campo ou de praia, bem como frequentar restaurantes badalados. E assim, o final de
muitos idosos é marcado de Alzheimer, confinamento em algum asilo, tristeza com a
presença domiciliar de um cuidador impaciente ou improvisado.
A solidão cresce com a diminuição das energias, o desaparecimento dos círculos
de amizade. Em muitas cidades brasileiras há ainda o agravante da violência e
insegurança, impedindo o hábito de um contato assíduo. Os vizinhos cuidam cada um de
sua casa, vida, família etc. Alguns solitários se apegam a animais. Alfredo tinha um louro
e um bichano que estimava. Quando morre o companheiro de bico ou quatro patas, a dor
é equivalente à perda de um parente. O idoso sente-se descartado por uma sociedade, que
não previu um lugar para ele, por uma família que progressivamente o abandona e
esquece. É necessário tornar-se mais humano, aprendendo a povoar a vida do semelhante.
Cristo prometeu aos apóstolos: “Não vos deixarei sozinhos” (Jo 14, 15). E acrescentou:
“Estarei convosco todos os dias” (Mt 28, 20). O cristianismo é comunhão, pois é trinitário.
Solitários não, e sim solidários somos chamados a ser! Isso implica em estar atento ao
outro, à sua tristeza e dor, a seus anseios e alegrias. Na solidão, o ser humano mergulha
dentro de si mesmo numa autodefesa contra o isolamento a seu redor. Toma consciência
de sua pouca importância no mundo externo. Mas, Deus assegura-nos sua permanência a
nosso lado: “Não temas, porque eu estou contigo” (Is 41,10).
O NOVO CÓDIGO PENAL
Valério Mesquita*
Mesquita.valerio@gmail.com
Por mais que o governo estadual distribua carros pelas Delegacias de Polícia dos municípios do Rio Grande do Norte, o índice de assaltos e assassinatos não cairá. Por mais que a União adquira armas e munições para as delegacias de polícias, não diminuirá a frequência de estupros e furtos de veículos nesse Estado. Por mais que a governadora aumente o efetivo da gloriosa Polícia Militar, botando nas ruas novos soldados, cabos e sargentos, não estancará a violência das ruas contra taxistas, motoristas de aplicativos, turistas, crianças, mulheres e adolescentes. Por mais que as autoridades da Justiça e da Segurança ampliem ou construam novas penitenciárias, promovam debates e falem em cidadania, não baixará a escalada dos furtos a bancos, agências de correio e residências.
Mas, apenas um gesto, uma ideia, uma lei pode conter em muito, isso tudo. Um novo Código Penal, conciso, limpo, pragmático parecido com o modelo norte-americano. O criminoso tem medo da pena e não da polícia. Mas, aí se dirá: e nos EEUU isso deu certo? Deu. A repressão e o castigo são implacáveis. Por uma simples acusação de assédio sexual o ex-presidente Clinton passou pelo constrangimento num tribunal de ficar cara a cara com a acusadora. Acabar com a criminalidade por total é impossível. Ela pode ser atenuada. Todavia no Brasil, existem os fatores de terceiro mundo que são fundamentais: a miséria, as drogas, a corrupção política, o desemprego, o ensino público deficiente, a “cultura dos nossos colonizadores” e os Direitos Humanos torcendo mais pelo marginal do que pela polícia. Gangs de jovens matam e assaltam sob o manto protetor do inimputável e frágil Estatuto da Criança e do Adolescente.
Agora, o Congresso quer resolver a irresponsabilidade do trânsito que mata mais no Brasil do que as doenças do coração. Depois de anos de equívocos acumulados, de equiparem carros com sirenes e bafômetros, de modernizarem semáforos e erguerem lombadas, refletiram sensatamente que o problema estava na fraca legislação. O criminoso do trânsito estava fora do Código, fazendo “cavalo de pau!”.
E nos ilícitos penais contra a vida e o patrimônio? E o estupro, o seqüestro, por que o novo Código Penal que o Congresso Nacional deve ao povo brasileiro não contempla uma punição rigorosa contra esses animais? Passamos por essa provação de impunidade, de reincidências por que a cultura jurídica brasileira foi toda chantada na lei Fleury, aquela na qual você mata e vai pra casa lavar o rosto e defecar o crime, que desce no primeiro aperto do botão da descarga. Ela constitui um capítulo anunciado na carta de Pero Vaz Caminha. Vivemos um tempo de espanto. De horror. Custódia é uma meretriz sedenta por impunidade nas salas de audiência.
Ante o espanto de um deputado empobrecido e de alma dilacerada preciso recuperar minha autoestima. Deduzo que a burguesia não fede. Abomináveis são as rugas da sua infinita vaidade e grave é a insensibilidade estampada no horário eleitoral. Enquanto isso, nós, eleitores enganados pelas emendas parlamentares, continuaremos vendo o desperdício do dinheiro público.
Para encerrar, após um chatérrimo fim de semana de longa travessia do horário eleitoral, lembrei-me que até agora as autoridades da saúde, nada fizeram para enfrentar a crise do hospital Walfredo Gurgel. Enquanto isso, no fundo eleitoral tem dinheiro pra tudo! Essa vida é mesmo um ziguezague de contradições. Os pobres continuam gemendo nas filas de cirurgia sob o peso da matéria maldosa do escárnio, do desprezo e da desfaçatez.
(*) Escritor.
Setembro, o mês da Bíblia
Padre João Medeiros Filho
No Brasil, é tradição da Igreja católica dedicar setembro à Sagrada Escritura, em
homenagem a São Jerônimo (347-420 d.C), cuja festa litúrgica é celebrada no dia trinta
desse mês. Ele foi o primeiro a traduzir a Bíblia dos textos originais (hebraico, aramaico
e grego) para a língua latina (predominante nas comunidades cristãs ocidentais da época
e idioma oficial da liturgia). A tradução passou a ser denominada Vulgata. O mês
temático tem um papel catequético e pedagógico: incentivar os católicos à leitura e
meditação dos textos sagrados: Pão da Palavra, na expressão de exegetas e hermeneutas.
Na história do catolicismo, a Bíblia nem sempre pôde estar nas mãos dos fiéis.
Após o Concílio de Trento (1545-1563) – a fim de evitar interpretações inidôneas ou
inexatas – era necessário obter autorização da autoridade diocesana para ler os Livros
Sagrados. Isso não ocorreu sem consequências. Assim, o conhecimento e o estudo da
Bíblia não se tornaram um hábito comum entre católicos. Hoje, essa realidade vem
mudando, graças a iniciativas, tais como os círculos bíblicos, a leitura orante dos
Livros Inspirados, a liturgia da Palavra na Eucaristia e administração dos sacramentos.
Há todo um trabalho para fortalecer a consciência de que a Sagrada Escritura “é
lâmpada para os [...] pés e luz para as [...] veredas” (Sl 119/118,105).
No Livro de Ezequiel, Deus ordena ao profeta: “Come o que tens diante de ti!
Come este rolo [pergaminho] e vai falar à casa de Israel... Eu o comi, e era doce como
mel em minha boca” (Ez 3,1.3). O episódio descrito faz parte do contexto da vocação
profética daquele hagiógrafo. O relato mostra-nos o poder de alimento da Palavra Divina.
Em várias passagens do Antigo Testamento há uma exortação expressa para que se
medite, dia e noite, a Lei do Senhor, como verdadeira orientação para uma vida digna
diante do Criador. O evangelho de Mateus (Mt 4, 4) relata Jesus citando o Deuteronômio:
“não só de pão vive o homem, mas de tudo o que sai da boca do Senhor” (cf. 8, 3). É
muito simbólica a postura de Ezequiel, ao comer o Texto da Lei (Torá). Explicita bem a
importância de se nutrir daquilo que Deus transmitiu e daí pautar nosso viver e agir.
Os escritos sagrados revelam-nos um infinito de experiências ricas do ponto de
vista espiritual, místico e cultural. A diversidade de gêneros e estilos literários,
linguagens e perspectivas teológicas faz desse Livro uma biblioteca. Alimentar-se de
tais escritos é enriquecer-se não só espiritual, mas também culturalmente. O
conhecimento da Bíblia leva os fiéis a mergulhar num universo tão vasto e precioso,
sendo impossível não se apaixonar por ela. O Concílio Vaticano II mostrou a
importância da Igreja da Palavra, que igualmente é Igreja da Eucaristia. Ambas são
sacrários de Cristo. Não se pode esquecer que, durante séculos, o Povo de Deus se nutria
fundamentalmente da Palavra. Não havia sacramentos. Ainda hoje, várias comunidades
(sem ministros ordenados) não dispõem dos gestos sacramentais. O grande alimento é
a Sagrada Escritura. Afinal, somos também a Igreja da Palavra. É salutar celebrá-la em
nossas residências meditando-a e permitindo que ela transforme todos, tornando-os cada
vez mais semelhantes a Cristo, Verbo de Deus que se “fez carne e habitou entre nós”
(Jo 1, 14). Jesus é o Salvador, consequentemente sua Palavra é Salvação.
O domingo e mês da Bíblia são uma excelente oportunidade para a mudança
de algumas práticas religiosas. É preciso crer plenamente que fortalecidos também
pela Palavra do Senhor somos edificados como Igreja. Portanto, celebrá-la tem um
valor inestimável. Por ela somos providos pelo Deus da Vida. “Ah, se hoje ouvísseis
a sua voz”, anseia o salmista (Sl 95/94, 8). Convém dedicar igualmente tempo para
beber das fontes divinas na liturgia cotidiana da igreja doméstica. Celebrar a Palavra
em casa, sobretudo no Dia do Senhor, com os familiares, é ter a certeza de que se fará
a experiência do Cristo Ressuscitado. Diante de tanta riqueza espiritual, a resposta de
Pedro – quando instado pelo Mestre se iria abandoná-Lo – foi contundente: “A quem
iremos, Senhor, só Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68).
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