terça-feira, 17 de outubro de 2023

 Padre João Maria, o “Anjo de Natal” 

Padre João Medeiros Filho 

No dia 16 de outubro, o Rio Grande do Norte comemora a vida em plenitude de um de seus ícones religiosos: Padre João Maria Cavalcanti de Brito. Nasceu aos 23/06/1848 na Fazenda Logradouro, outrora no município de Caicó, hoje pertencente a Jardim de Piranhas. Concluiu o curso teológico no Seminário da Prainha (Fortaleza), onde foi colega de turma dos padres Cícero do Juazeiro e Sebastião Constantino de Medeiros (o qual governou o bispado de Olinda, quando da prisão de Dom Frei Vital Gonçalves de Oliveira). Posteriormente, Padre Sebastião tornou-se jesuíta, sendo o primeiro professor brasileiro da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma. No Seminário de São Pedro em Natal, havia uma pintura de Moura Rabelo, retratando Padre João Maria. O quadro exibia o sacerdote em frente a um casebre, socorrendo os carentes da paróquia. Era realmente uma figura carismática, que nos remete à Primeira Carta aos Coríntios no capítulo 13, parafraseado por Dom Helder num belo texto: “Se eu possuísse a melhor casa de minha rua, a melhor roupa, sapatos da moda, e não me lembrasse de que sou responsável pelos que passam fome na minha cidade, andam de pés descalços e se cobrem de trapos, seria apenas um manequim colorido. Se eu passar os fins de semana em festas sem lembrar das doenças e miséria, sem escutar o grito abafado do povo que se arrasta à margem da vida, não sirvo para nada.” O cristão não deve fugir dos desafios de seu tempo nem se desesperar diante das dificuldades. “Deus é nosso refúgio e fortaleza, socorro sempre encontrado nos perigos” (Sl 46/45, 1). Padre João Maria continua a encantar os fiéis. Seu exemplo de vida é um convite a uma postura despojada, voltada para valores éticos e evangélicos, distante de interesses mesquinhos e desprovidos de solidariedade. O “Anjo de Natal” ensinou-nos que a caridade afasta o medo e abraça os infelizes e sofridos. Há mais de um século, o “Amigo dos pobres” viveu profundamente o mandamento maior do Amor. Sua imagem mantémse viva na memória de muitos. Apesar de não ter sido ainda canonizado, foi elevado pela fé e devoção popular à honra dos altares de nossos corações e reconhecimento do povo. Suas virtudes e santidade – marca da presença de Deus em sua vida – suplantam os meandros burocráticos. Ninguém conseguirá aprisionar a graça divina e a força da fé. Durante a pandemia da Covid-19, seguindo as orientações pastorais (como profilaxia), os fiéis se abstinham de dar as mãos na oração do Pai Nosso e nos cumprimentos da paz. Distribuía-se a comunhão na mão dos comungantes. Contudo, a fé do “Apóstolo da Cidade” e a dedicação aos seus semelhantes foram mais fortes do que o temor da peste. Socorreu irmãos contaminados pela varíola, cólera e outras doenças infectocontagiosas, que grassavam pela Natal do final do século XIX e início do século XX. Seguiu Cristo, que se apiedou dos cegos, coxos, paralíticos e acometidos de tantas enfermidades. Viveu o exemplo de São Francisco de Assis e São Damião de Molokai, que cuidaram dos leprosos e marginalizados. Padre João Maria enfrentou as epidemias, imbuído das palavras de Cristo: “Prova de amor maior não há que doar a vida pelos irmãos” (Jo 15, 13). O sacerdote, pai dos desvalidos e enfermos, chegava a cortar a batina que vestia, transformando os pedaços da veste clerical em ataduras para as feridas de seus irmãos. Certa feita, encontraram-no caído no chão, extenuado, após preparar mingau e sopa para os empesteados. Um dos cânticos da Campanha da Fraternidade de 1974 lembra-nos a sua caridade: “Onde sofre o teu irmão, eu estou sofrendo nele.” O “Apóstolo dos pobres” viveu o ensinamento do Mestre: “Estava doente, e cuidaste de mim” (Mt 25, 35). Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, outro apóstolo da caridade, definiu Padre João Maria como o “Colo de Deus para os esquecidos e sofridos.” Que lá do Céu, ele ilumine também o nosso novo arcebispo, que nos albores de seu ministério episcopal depositou flores no busto do “Anjo de Bondade”, sempre glorificado no templo da gratidão de seus devotos. “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão a misericórdia de Deus” (Mt 5,7).

 

VOCÊ É AQUILO QUE APROVA

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

As minhas sensações se revezam depressa. Por mais que me esforce, não consigo me fixar em coisa alguma. Se penso ou sinto algum tema, deduzo que tudo será esquecido e me calculo inútil. Esse prelúdio indefectível talvez chegue a algum lugar. Gostaria de denunciar, por exemplo, aquilo que muitos já fizeram: a deterioração institucional do país que teve quebrados todos os padrões éticos e estéticos. A fragilidade e a inoperância dos poderes se tornaram tão patentes que já se comentam medidas autoritárias. Continuo pensando que é preciso urgentemente humanizar o político brasileiro. Ele mesmo animalizou os seus traços.

Quando me apetece voltar a suplicar às autoridades públicas e privadas a restauração do empório dos Guarapes, onde o pioneiro e gigante desbravador Fabrício Gomes Pedroza ambientou um dos maiores domínios comerciais de que se tem notícia no estado, recebe-se em troca repetidamente a leniência e a indiferença. Ai eu indago: pra que escrever mais? Pergunto-me se não estou me transformando em esteta contemplativo com uma tendência zen. Mas, continuarei lutando porque não é apenas um impulso da mente nem do corpo. Os “Guarapes” representam para aqueles que o ignoram, o equilíbrio entre a beleza e o passado.

Falar, por exemplo, das poças profundas de sangue que fluidificam a área metropolitana da grande Natal. Nela a juventude continua sendo executada nas ruas pelo cartel das drogas. Sinto que falecem os dons que me ligam a Macaíba, hoje, tão irreconhecível a ponto de não me rever mais em suas paredes e praças. A fuga é dormir à distância, debaixo de qualquer céu, como diria o poeta. Minha terra padece de uma enfermidade física, orgânica, urbana, suburbana, sensível, visível, palpável chamada “comércio de droga” que tem escravizado e mutilado suas melhores tradições.

Poderia até discorrer sobre as opiniões e posturas dos políticos potiguares repletas de privilégios para si contra os servidores públicos, todos num beco sem saída. Os efeitos especiais empregados são improvisados. E parece que não há pressa em definir situações. Tudo deve ser queimado sub-repticiamente a fogo lento. Tem gente gastando anos luz para compor o arquipélago da obra de chegar ao poder queimando incenso no velório da própria falência do poder público. Na política, sabemos que acidentes e incidentes nunca surpreenderam ninguém. Todos têm rostos e máscaras. Trata-se de uma peça de teatro onde o fascínio é exibido em prosa e gestos fesceninos. Que importa tudo isso, se depois da tempestade todos se unirão novamente para começar tudo de novo? O palco será o mesmo. Só muda a idade.

E o pugilo da saúde pública nos hospitais da capital? Esse merece veemente repulsa. É um libelo à competência dos administradores. A situação deplorável me infunde a convicção de que ninguém mais se comove com a dor humana. O melhor homem é o homem morto. Vivo é desprezível. Doente e pobre, ele fede. Onde deveriam remunerar melhor, paga-se pior e se gasta menos. Hospital público é a antessala da morte iminente porque está desprovido das condições de higiene e serviços. Denunciar o estado de calamidade financeira não constitui falar apenas em atraso dos vencimentos mas assistir privilégios vergonhosos das elites. Lembro ao leitor que o ser humano coisificou-se. Deixou de ser carne inteligente. Hospital “lugar de repouso e cura”, virou empório do estado, verdadeiro guardador de rebanho, onde o pobre, sem nenhum plano de saúde, tem defeito de circulação do sangue no corpo à alma.

(*) Escritor.