(Por Horácio Paiva)
Seu
nome de nascimento era Kinkasu. Bashô foi seu último nome literário, já que no
passado, no início de suas atividades artísticas, chegara a utilizar outros
nomes, como Sobo e, depois, Tosei.
Descendente
de samurais (seu próprio pai fora um deles, a serviço da poderosa família Todo),
não seguiu Bashô a tradição guerreira de seus familiares e antepassados.
Antes -
espírito especulativo, criativo, religioso e artístico -
tornou-se poeta, um grande poeta, um dos melhores, e não apenas de sua
pátria, o Japão, mas do mundo.
Nasceu
Matsuo Bashô em 1644, em Ueno. Ainda criança, aos nove anos, foi entregue à
família dos senhores de seu pai, servindo-a como pagem do filho herdeiro,
Yoshitada, apenas um pouco mais velho do que ele. Vieram a ser grandes amigos. Ambos com vocação para a poesia. Num ambiente
propício à boa educação, com mestres notáveis, logo cedo passaram a compor
poemas. Morrendo precocemente o amigo, retirou-se Bashô para Edo (Tóquio),
tornando-se discípulo, durante anos, do monge zen-budista Buccho, o que,
afinal, veio a ser relevante na vida de Bashô e na definição de seus rumos
estéticos.
A
propósito do aprendizado do Zen, são palavras do mestre Seigen: “Antes de estudar o Zen, as montanhas são
montanhas e as águas são águas; após uma primeira noção sobre a verdade do Zen,
as montanhas já não são apenas montanhas e as águas já não são apenas águas;
mas, quando se atinge o conhecimento, as montanhas voltam a ser montanhas e as
águas voltam a ser águas.”
Octavio
Paz, no brilhante opúsculo “A Poesia de
Matsuo Bashô”, diz com precisão: “A
doutrina Zen - e isto a coloca em oposição às demais
doutrinas budistas - afirma que as
fórmulas, os livros canônicos, os ensinamentos dos grandes teólogos e ainda a
palavra mesma de Buda são desnecessários. O Zen prega a iluminação súbita. Os
demais budistas crêem que o Nirvana só pode ser alcançado depois de passar por
muitas reencarnações; Guatama mesmo conseguiu a iluminação quando já era um
homem maduro e depois de ter passado por milhares de existências prévias que a
lenda budista recolheu com grande poesia (Jatakas). O Zen afirma que o estado
satori é aqui e agora mesmo, um instante que é todos os instantes, momento de
revelação em que o universo inteiro
- e com ele a corrente da
temporalidade que o sustém - desmorona. Este instante nega o tempo e nos
põe em confronto com a verdade.”
É
notória a influência do zen-budismo
- e de seu conceito de súbita
iluminação - na produção artística de Bashô. Na verdade,
não podemos passar ao largo dessa informação, se quisermos melhor apreender o
significado de sua obra.
Renomado
mestre do haicai (poema curto
japonês, composto de três versos), observa Manuel Bandeira que essa forma poética
será levada, na literatura japonesa, “à
extrema perfeição no século XVII pelo grande Bashô e seus discípulos Ransetsu e
Kikaku.” Vários outros grandes nomes, porém, agregaram-se a essa lista,
como são exemplos Issa e Buson.
Viajante
contumaz, deixou-nos Bashô cinco diários com relatos de suas viagens feitas a
pé, como um monge, pelo Japão, “verdadeiros
cadernos de esboços, impressões e apontamentos. Estes diários são exemplos
perfeitos de um gênero em voga na época de Bashô e do qual ele é grande mestre:
o haibun, texto em prosa que rodeia,
como se fossem pequenas ilhas, um grupo de haikus. Poemas e passagens em prosa
se completam e reciprocamente se iluminam”( Olga Savary).
Tive
o prazer estético de ler (e reler, naturalmente) a obra-prima (assim
unanimemente considerada) desses relatos, o livro “Sendas de Oku”, na tradução de Olga Savary (feita através do
castelhano, via Octavio Paz), editado, em 1983, por Roswitha Kempf/Editores. Já
no início, no primeiro parágrafo, sente-se a força da poesia: “Os meses e os dias são viajantes da
eternidade. O ano que se vai e o que vem também são viajantes. Para aqueles que
deixam flutuar suas vidas a bordo dos barcos, ou envelhecem conduzindo cavalos,
todos os dias são viagem e sua casa mesma é viagem.”
A
frase inicial do segundo parágrafo, não obstante dirigir-se ao passado, é
profética, em relação ao seu genial autor: “Entre
os antigos, muitos morreram em plena rota.” Com efeito, morreu Bashô em
Osaka, destino de uma de suas viagens, em 12/10/1694. Foi enterrado em Otsu, às
margens do lago Biwa.
MATSUO BASHÔ (n. 1644, Ueno; m. 12/10/1694, Osaka):
Do mesmo haicai, duas traduções de Olga Savary:
Sobre um velho tanque
salta uma rã: ruído
submergindo.
Sobre o tanque morto
um ruído de rã
submergindo.
Eu faria a síntese, com a seguinte versão:
Sobre o velho tanque
ruído de rã
submergindo.
Quatro traduções de Manuel Bandeira:
Quatro horas soaram.
Levantei-me nove vezes
Para ver a lua.
Fecho a minha porta.
Silencioso vou deitar-me.
Prazer de estar só...
A cigarra... Ouvi:
Nada revela em seu canto
Que ela vai morrer.
Quimonos secando
Ao sol. Oh aquela manguinha
Da criança morta!
-x-x-x-x-x-
NOTAS:
(1) A propósito do Zen, o monge católico trapista Thomas Merton,
em seu livro “Zen e as Aves de Rapina”,
procura demonstrar a aproximação dessa doutrina com o Cristianismo. Curiosa e
interessante a relação que estabelece entre a “iluminação” zen-budista e a
“graça” cristã. Cita São João da Cruz, que “compara
o homem a uma janela através da qual brilha a luz de Deus.”* Com efeito,
são palavras do próprio santo, extraídas de sua obra “Subida do Monte Carmelo”: “Quando a alma dá lugar (que é apartar de si
toda névoa e mancha de criatura, tendo a vontade perfeitamente unida à de
Deus -
porque amar é trabalhar em despojar-se e desnudar-se por Deus de tudo o
que não é Ele), logo fica esclarecida e transformada em Deus, e o Senhor
comunica-lhe o seu ser sobrenatural de tal maneira que parece ser o próprio
Deus e, de fato, é Deus por participação.” No mesmo livro de Merton, diz o
zen-budista Daisetz T. Suzuki, que com ele dialoga, sobre as condições da
iluminação e da graça, citando o bispo medieval Mestre Eckhart: “Se for o caso de estar alguém vazio de
coisas, criaturas, dele próprio e de Deus, e se Deus pudesse ainda encontrar
nele um lugar onde agir, então declaramos: enquanto esse lugar existir, essa
pessoa não é pobre, da mais íntima pobreza (eigentlichste Armut). Pois não é
intenção de Deus que o homem tenha um lugar reservado onde ele possa atuar, uma
vez que a verdadeira pobreza de espírito requer que o homem esteja vazio de
Deus e de todas as suas obras, de maneira que se Deus quer agir na alma, Ele
mesmo seja o lugar onde age - isso lhe agradaria fazer. Pois se alguma vez
Deus encontrasse uma pessoa assim tão pobre, tomaria a responsabilidade de sua
própria ação e seria Ele o lugar da operação, porque Deus age em Si mesmo. É
aqui, nessa pobreza, que o homem recupera o ser eterno que um dia ele foi, é
agora e será para sempre.”
*O Papa Francisco, em seu
primeiro discurso no Brasil, falando às autoridades deste País, no início da
Jornada Mundial da Juventude, em 22/07/2013, pronunciou a seguinte frase, que
lembra São João da Cruz, Doutor Místico da Igreja: “A juventude é a janela pela qual o futuro entra no mundo.”
(2) Destaque-se o pioneirismo do poeta mexicano José Juan Tablada
(1871-1945) na utilização do haicai (ou haicu, como dizem os hispânicos) em
língua castelhana, no começo do século XX. Informa Octavio Paz que as “suas pequenas e concentradas composições
poéticas, além de ser o primeiro transplante do haiku para o espanhol, foram
realmente algo novo em seu tempo. E o foram a tal ponto e com tal intensidade
que, ainda hoje, muitas entre elas conservam intactos seus poderes de surpresa
e seu frescor. De quantas obras mais pretensiosas pode se dizer o mesmo?”. Eis
cinco desses haicais, na tradução do autor destas notas:
O salgueiro
Tenro salgueiro:
quase ouro, quase âmbar,
quase luz.
Os gansos
Por nada os gansos
tocam alarme
em suas trombetas de barro.
Voos
Juntos na tarde tranquila
voam notas do Angelus,
morcegos e andorinhas.
O morcego
Os voos da andorinha
na sombra ensaia o morcego
para logo voar de dia?
A lua
É mar a noite negra;
a nuvem, uma concha;
a lua, uma pérola...
(3) No cenário atual das letras do Rio Grande do Norte, Brasil, há
também cultores do haicai. Alguns exemplos na poesia de Jarbas Martins e
Horácio Paiva:
De Jarbas Martins:
Até logo, Chê.
A revolução na esquina
e a barba por fazer.
Travessura tua
-
teu seio cortado ao meio.
Uma meia lua.
raro escrevo. Vivo.
escrever é um verbo
intransitivo.
Ser tua perna arqueada,
ser teu arco, flecha e barco,
ser teu zen.
Pôr de sol assim.
Duas dores, dez mil cores.
Deus assina: FIM.
De Horácio Paiva:
Via Láctea
o vento lá fora geme
colhendo
estrelas mortas
Plenilúnio
madrugada de plenilúnio:
canta o luar
ou o galo?
Les mains sales
O tempo escorria lentamente
e tudo estava tranquilo...
até Sartre roubar o meu relógio.
Natividade
Luz na estrebaria:
sobre as dores do mundo
o olhar de Maria.
O navio fantasma
surpreende-me vê-lo
e mais:
saber que estou nele
Antes, escrevera o currais-novense
José Bezerra Gomes (1911-1982), embora sem a disposição estrófica do haicai,
esse curto mas denso poema:
Sempre Sábado
Naquele
sábado
a música
daquele
sábado
(4) Millôr Fernandes (1923-2012), humorista e filósofo brasileiro,
do Rio de Janeiro, destaca o humor em seus haicais filosóficos. Bons haicais,
bons exemplos:
Olha,
Entre um pingo e outro
A chuva não molha
Nos dias quotidianos
É que se passam
Os anos
A vida é um saque
Que se faz no espaço
Entre o tic e o tac
Probleminhas terrenos:
Quem vive mais
Morre menos?
Nunca esqueça
A vida também
Perde a cabeça
-x-x-x-x-x-