quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

 “Vá se queixar ao bispo” 

Padre João Medeiros Filho 

Eis uma expressão, ainda ouvida ou lida, aqui e acolá. É anterior à fundação do Reino de Portugal. Historiadores, especialmente aqueles da área do Direito, relatam que a máxima já foi ordenamento jurídico na Península Ibérica, entre 480-711. Constava do Código Visigótico (Livro II, Título II, Item XXVIII). Permitia às pessoas, inconformadas com o veredicto de tribunais e magistrados, dirigir-se ao bispo em grau recursal. O pleito era possível, quando os interessados consideravam a sentença proferida, em discordância com o regramento em vigor. Infere-se, portanto, que o bispo representava justiça,sentimento humanitário para a população. Segundo certos autores, o jargão surgiu, entre nós, no século XVII, na cidade do Rio de Janeiro. À época, os comerciários fizeram campanha, exigindo que as lojas fechassem aos domingos e dias festivos para o cumprimento do mandamento religioso. Naquele tempo, por força da Concordata entre a Santa Sé, Portugal e posteriormente o Brasil Império, o catolicismo era religião de Estado. Daí todos deveriam guardar o Dia do Senhor. Os lojistas promoveram manifestações públicas e passeatas, ameaçando fazer greve. Os patrões mantiveram-se intransigentes. Como última tentativa levaram um abaixoassinado a Dom José de Barros Alarcão, prelado do Rio de Janeiro (1680), solicitando intercessão junto ao Rei de Portugal, Dom Afonso VI. Desejavam que editasse uma lei específica, mediante a qual os fiéis trabalhadores pudessem cumprir os preceitos dominicais e nos dias santificados. Pode-se deduzir a presença da Igreja, enquanto última instância de resposta contra a violação dos direitos humanos. Para Dom Jaime Luiz Coelho, primeiro metropolita de Maringá (PR), o adágio remonta ao Brasil colonial. Na época, vigorava o regime do Padroado. Consequentemente, a Igreja Católica, por meio das dioceses, detinha certas atribuições e prerrogativas no foro civil. “Va queixar-se ao bispo” tornou-se popular no Brasil seiscentista e setecentista. A autoridade diocesana chegava a gozar de competência legal até para mandar prender rapazes que “ofendiam às donzelas” e recusavam as núpcias. Até bem pouco, era costume algo semelhante no Seridó. Quando alguma moça era “desonrada”, conduziam-na imediatamente à presença do dignitário eclesiástico para que se providenciasse urgentemente o casamento. Isso era motivo de força maior para a dispensa dos proclamas canônicos. Enquanto chanceler da cúria diocesana de Caicó, fui testemunha de vários acontecimentos dessa ordem. Convém lembrar que no Brasil concordatário, os prelados eram investidos de alguns poderes administrativos e jurídicos. Assim, era natural as pessoas verem no pastor a porta para a solução dos seus problemas pessoais mais prementes. A figura episcopal era respeitada por todos, sobretudo porque acreditavam ser ela a legítima representante de Deus entre os homens, capaz de oferecer luzes e apontar caminhos para seus sofrimentos. “Eu vi a humilhação de meu povo e ouvi o seu clamor” (Ex 3, 7). Poder-se-ia pôr tais palavras nos lábios dos antístites daqueles tempos. Nessa mesma direção, o jornalista e professor Jairo Faria Mendes apresenta sua versão para o axioma. Menciona que em Portugal – e nos seus territórios ultramarinos – em razão do Padroado, a autoridade diocesana exercia também a função de Ouvidor da Coroa, responsável por receber as queixas dos cidadãos. Assim, no Brasil colonial, os pontífices tinham ainda o encargo de ouvir as lamúrias e o relato de problemas materiais dos fiéis. Isto deu azo à difusão do aforismo “Vá se queixar ao bispo”. Hoje, os dignitários episcopais não estão mais revestidos de jurisdição civil. É importante frisar que, à época, a história registra a figura do bispo humanitária, paternal,solidária e clemente. Atualmente, a quem a população sofrida, injustiçada e desesperançada irá desabafar? Quem ouvirá seus rogos contra desmandos públicos, injustiça, fome, desemprego, violência, assistência precária de saúde, insegurança, falta de habitação, água e vergonha? Quem haverá de interceder, quando se adoecer de arboviroses e epidemias? Outrora, o bispo cuidava de tudo aquilo que o Estado negligenciava ou era incapaz de resolver. Por sua compreensão, senso de justiça e caridade, ele tinha condiçõesreais de solucionar impasses. Nos dias atuais, necessita-se de alguém – máxime entre executivos e legisladores – sobre quem se possa afirmar: “Teve compaixão da multidão [sofrida e sem esperança], pois era como ovelhas sem pastor” (Mt 9, 36).

 

CANGAÇO: PORQUE SÓ LAMPIÃO FICOU NO IMAGINÁRIO POPULAR.
O cangaço, uma das páginas mais cruentas, vivida nos ermos mais distantes da pancada do mar, onde o sol se faz rosa, para se pôr. Tem sua grota de viço nas amarguras da vingança, no refúgio de quem cometera um crime, e por último, na sua fase mais ignóbil, desprezível que é o cangaço meio, fim, quando ações de rapina, com plenitude de prática, no período Lampiônico, com mais intensidade, nos tempos que medeiam os anos de l926 a 1938. quando ocorreu o epílogo do cangaço na gruta de Angicos, em Sergipe.
Mas, o meu paleio de copiar*hoje, não é esmerar o cangaço nem como conduta criminosa, hedionda, nem tão pouco, adjetivando seus praticantes como “heróis extraviados”, como dissera um dos meus gurus, Ariano Suassuna.
A selvageria lampiônica, em muito supera o suplício nas ordenações manuelinas e afonsinas, que no brasil fez-se prática nos episódios de Felipe dos Santos e do próprio Tiradentes, com cênico de esquartejamento e exposição na Cruz de Malta, uma cristianização à similaridade do que aconteceu com Jesus, na era de Tibério César.
Porém, rabiscar na historicidade dos fatos e contextos, o que levou os habitantes dessas terras de trópicos e de anos de magrém, amealhar no seu imaginário, não um juízo de reproche aos hunos cangaceiros, porém, mitigar uma leitura, que transformou o Estado disciplinado em réu e o desvario da violência do cangaço, numa possibilidade de ser, o que nosso Mestre Cascudo vislumbrou, serem bandidos diferenciados dos criminosos comuns, portanto, uma saga que nascia de uma vertente dotada de escudo ético. Aquele que sofrera uma injustiça, um constrangimento, não reparados pelo Estado.
Saliente-se que esse juízo não é desnudado de motivações. Por necessário trazer o exemplo de como Lampião se portava, no trato com o pequeno sitiante criador. Sempre vislumbrava na escolha de uma rês de gado vacum, por uma cabeça escoteira, sem prenhez ou amojo, ou na fase lactente. Escolhia um toureco, uma garrote, para fazer a carne de sol. E nessas circunstâncias, sempre ordenava que o seu estado maior, procedesse no pagamento.
De bem noticiar, que quando a polícia se arranchava na casa de um criador do Sertão, proprietário de apenas uma semente da espécie, ordenava o abatimento do “boi de campinadeira”, a força motriz da roça, daquele desvalido sertanejo, saindo sem o devido pagamento.
Por ressaltar também, que no espetáculo cênico de CHUVA DE BALA NO PAÍS DE MOSSORÓ, os heróis não são os defensores da urbe potiguar, mas, a saga lampiônica, começando pelo próprio rei do cangaço e seus lugares tenentes, Sabino de Gore*, Jararaca. Embora tal episódio, seja um dos malogros da epopeia do cangaço sob a égide de Virgulino Ferreira da Silva, que há alguns meses antes, no dia 26 de novembro de 1926, na batalha de Serra Grande, PE, houvera derrotado as forças de quatro estados nordestinos, um contingente de trezentos homens, entre macacos* e cachimbos*, com a apenas um grupo de 68 cangaceiros.
*Sabino de Gore: Sabino era filho de uma negra cozinheira com o Cel. Marçal Diniz, meio irmão de Marcolino Diniz, coiteiro de lampião, e cunhado de José Pereira de Princesa, pois, casado com Xanduzinha, aquele da melodia de Luiz rei do baião.
*Paleio de copiar: Os antigos dos sertões do Seridó, ante a falta de entretenimento como nesses tempos de hoje, se aboletavam na sala subsequente ao alpendre, o copiar, sala grande, de recepção, e nesta, no período que medeia a hora do Ângelo e a última ceia, permeava a estação da oralidade: Uma discorrência sobre as façanhas dos homens de destaque, histórias do pavão misterioso, Doze pares de França e assim por diante. Era a estação da oralidade.
* Macacos: adjetivo para nominar as tropas da polícia, volantes, que combatiam o cangaço.
*Cachimbos: civis com soldo, ou salário pagos pelo governo, viviam na "tubiba" de Lampião. Os cabras de Nazaré (Vila Bela) depois Serra Talhada, era civis que tinham rixas de Lampião. Quase todos fora engajados na corporação militar foram pra reserva como oficiais.
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