terça-feira, 26 de agosto de 2025

 Modismos e redundâncias 

Padre João Medeiros Filho 

A pedido de leitores, volto ao tema. Está em moda citar “todos e todas”, “irmãos e irmãs” etc. Uma redundância desnecessária. A duplicidade de termos nada acrescenta à natureza ou personalidade dos indivíduos. Pelo princípio gramatical, em português, o masculino plural abrange o feminino. Por outro lado, nosso idioma pátrio não herdou a figura do gênero neutro latino. A reação equivocada de certos falantes a esse dado histórico e estrutural de nossa língua deu azo a neologismos e modismos. Por outro lado, segue-se a onda do “politicamente correto”, que invadiu discursos e falas nas últimas décadas. Seus adeptos encarregaram-se de divulgar tais ideias, tentando mudar a linguagem para minorar a exclusão social, um dos problemas não solucionados pelo poder público. E há quem se empenhe, a todo custo, para incluir a linguagem neutra. Algumas propostas de neologismos afogaram-se na própria ridicularidade. Por exemplo, chamar os carecas de “capilarmente diferenciados” é uma dessas tolices. Outras invadiram o nosso vocabulário e o modo de pensar ou falar. Por vezes, nem sequer se dão conta desse contrassenso. Por exemplo, o substantivo velhice começou a ceder espaço ao eufemismo “terceira idade”, que, em seguida, viu-se substituído por uma formulação apatetada de “melhor idade”. É inegável que alguns termos e expressões contêm carga depreciativa, laivos de racismo ou preconceito. “Quem se descuida do falar, causa a própria ruína” (Pr 13,3). De volta à questão de irmãos e irmãs, todos e todas, brasileiros e brasileiras (como José Sarney iniciava seus pronunciamentos presidenciais e programas radiofônicos), o modismo adquiriu o status de “linguagem inclusiva”. Esta reveste-se, por vezes, de uma roupagem governamental, protegendo-a e tornando seu uso corrente em várias esferas administrativas. Tais ideias conseguem penetrar na comunicação religiosa, até na liturgia sagrada. Veja-se o convite na missa: “Orate fratres.” O texto oficial latino não contém a palavra irmãs (“sorores”). Mas, foi traduzido para o português do Brasil como “Orai, irmãos e irmãs.” Tal linguagem, denominada inclusiva, reveste-se de um caráter redundante e populista. Daí, o sucesso junto a cultores dessa vertente e aos que colocam a verdadeira inclusão social apenas nas palavras e não em sérias e autênticas políticas públicas. Vale a pena encher nosso idioma de redundâncias, pleonasmos e penduricalhos? Não seria melhor combater na raiz as reais discriminações e exclusões que causam tanto dano à sociedade? Cabe lembrar ainda que essas falas, ditas de inclusão, contrariam o acordo ortográficolinguístico internacional, firmado pelos países lusófonos, do qual o Brasil é signatário, sendo obrigado a observá-lo. Como o conhecimento do latim faz falta! É preciso ter o cuidado de observar a norma culta do português, “a última flor do Lácio”, tão agredida em sua beleza. Há outro modismo fartamente usado pelos operadores do Direito e na Mídia. Trata-se do vocábulo “feminicídio”, empregado em oposição a homicídio. Este significa o assassinato de qualquer ser humano e não apenas de um varão. A palavra latina “homo” não indica a masculinidade, mas toda pessoa humana. Feminicídio trata-se de um termo impróprio. Ele indica etimológica e semanticamente a destruição do gênero feminino, e não de uma mulher. Aplicando-se a mesma regra proposta, ter-se-ia masculinicídio, morte do masculino. Consoante os lexicógrafos, matar uma fêmea é muliericídio (ou mulhericídio) e não feminicídio. Assassinar um macho é viricídio. Matar a esposa é uxoricídio, exterminar o marido é mariticídio. Feminicídio é termo inadequado para indicar o assassinato de uma mulher, apesar do enunciado da Lei 13.104, Art. 1º, VI. Entretanto, hoje é usado abundantemente, ao arrepio da gramática e linguística. Por razões ideológico-políticas, tenta-se evitar o uso do termo homicídio, que significa assassinato de uma pessoa humana de ambos os sexos. O referido étimo dispensa qualquer outra palavra, exceto se houver necessidade de tipificar o assassinato. Nestes casos usam-se os termos técnicos e científicos acima elencados. A motivação para o emprego de feminicídio não é linguístico-gramatical, e sim política, atentando-se contra o português histórico e clássico. Reza o salmista: “Livra-me e tira-me do poder daqueles cuja boca profere palavras incorretas” (Sl 144/143, 10). O profeta Isaías já advertia seus contemporâneos: “Os que te guiam podem te enganar e destruir o caminho dos teus passos.” (Is 3, 12).

 

PALAVRAS DE AGRADECIMENTO PELOS SESSENTA ANOS DE SACERDÓCIO

Faço minhas as palavras de Maria Santíssima, extasiada diante da graça divina: “O Poderoso fez por mim grandes coisas, Santo é o seu nome” (Lc 1, 49). O Evangelho não é mera narração histórica. É presença da eterna novidade de Deus, falando ao coração do homem. Em Belém, Nossa Senhora testemunhou a inefável gratuidade do Pai, ao ver na pessoa de seu Filho, o Messias tão esperado, presente na singeleza da Criança, deitada na manjedoura. Análogo mistério se manifestou, há sessenta anos, quando, pela imposição das mãos episcopais, a Igreja me ungiu, indigno servo, um “alter Christus” (outro Cristo). Digo como o poeta Murilo Mendes: “Eu te proclamo grande, ó Deus, não apenas porque fizeste esta terra imensa com rios e florestas, o sol para presidir o dia, a lua e as estrelas para iluminar a noite. Eu te proclamo grande e admirável eternamente, porque Tu te fazes pequeno na Eucaristia para caber no menor dos corações humanos.” E, um dia, em sua inefável bondade, Deus me escolheu como ministro de tão augusto mistério.

Esta celebração convida-me a penetrar na profundidade do Eterno e descobrir o recado do Infinito. A vida sacerdotal tem a missão de desvelar a transcendência e a beleza do Sagrado, mostrando que Deus escolhe vasos de argila para conter o tesouro de sua graça (cf. 2Cor 3, 10). O padre deverá sentir a sede do Absoluto no cotidiano da existência. Hoje, cabe-me agradecer como o poeta bíblico: “Em toda minha vida, jamais esqueci os teus preceitos. Pertenço a Ti, Senhor; sê meu apoio e viverei” (Sl 119/118, 93-94).

Sou da geração de padres ordenados durante o Concílio Vaticano II. Fui formado no contexto do eixo teológico Bélgica-Holanda, liderado pelo Cardeal Léo Suennes. Deste, ouvi na homilia da Missa de ordenação de meus colegas de turma este conselho: “Não sejam burocratas do sagrado, nem funcionários do espiritual. Estejam sempre abertos às surpresas de Deus. Anunciem o eterno Amor.” Dom Alberto Houssiau, bispo emérito de Liège, nosso professor, ensinava-nos: “É preciso que o padre seja reto no pensamento, exemplar na ação, discreto e útil com a sua palavra; próximo de todos com a sua compaixão; dedicado ao estudo e à contemplação; aliado de quem faz o bem, terno e compreensível com os que erram, transparecendo a misericórdia de Deus.” No entanto, há quem queira ser paladino de pautas meramente sociais, como se o Evangelho fosse uma ideologia ou teoria sociológica. Existem ainda os arautos da intransigência e do radicalismo, que se consideram donos das bênçãos divinas. A verdadeira mística sacerdotal brota da vivência do Evangelho, marcada por presença, escuta e compaixão. Jesus ouviu mais do que pregou. E, porque soube escutar, perdoou a muitos.

Ao longo desses sessenta anos, tento viver com despojamento o sacerdócio. Guardo as palavras de meu saudoso colega Michel Quoist, semanas antes de minha ordenação: “Os fiéis perdoam as fraquezas de seus padres, mas desaprovam os que se apegam ao dinheiro e ao poder.” Entendo como missão do sacerdote servir sempre à Igreja e nunca se servir dela. Meu desejo é ser um padre simples. Isto me basta. Meu jeito de ser não deverá ofuscar a presença terna de Cristo. Antes de eu ser padre, papai pediu-me para ter uma profissão leiga a fim de não pesar ao Povo de Deus. Por isso, sempre tirei meu sustento do fruto de meu trabalho civil. Tomei consciência do que pregava o apóstolo Paulo: “Trabalhei, noite e dia, para não vos ser pesado” (1Ts 2, 9).

Procuro fazer da Missa minha alegria e meu ápice. A saúde não permite mais celebrar a Eucaristia, como a presidi pela vez primeira. Mas, mesmo em cadeira de rodas, ando com o coração e a mente, conservando o entusiasmo e ardor de seis décadas passadas. Hoje, diante do meu bispo, a quem estimo muito, agradecendo sua atenção para comigo e a presidência desta liturgia, expresso meu profundo amor e obediência à Igreja, pedindo perdão pelos meus pecados e fraquezas. Como herança, deixarei a todos a alegria e felicidade que sinto no Altar, fonte de incomensuráveis favores divinos.

Agradeço aos que me ensinam a ser padre. Aos bispos e irmãos no ministério ordenado aqui presentes, obrigado pelo privilégio de sua amizade e complacência, quando sou fraco e pecador. Grato sou às queridíssimas religiosas deste Mosteiro que me tocam pela sua simplicidade e vivência do voto de pobreza, impulsionando-me para Cristo no Sacrário. Aos irmãos que frequentam esta comunidade, muito obrigado pela paciência e caridade com que me suportam. Perdão por minha desatenção e eventuais incompreensões.

Não seria justo se não agradecesse a minha família, meus formadores, médicos, fisioterapeutas, colegas de instituições acadêmicas e culturais, e amigos. Neste dia, uma palavra de profundo reconhecimento aos meus irmãos por afeto e adoção, que cuidam de mim, por muito mais da metade de minha existência. Saudade do meu irmãozinho deficiente visual, o qual me provava que se vê melhor com os olhos da alma. No ano passado, ele foi contemplar a face de Deus. Uma palavra de gratidão a Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que me batizou, na Matriz de Jucurutu. E, mais de duas décadas depois, ali mesmo, no dia da minha ordenação sacerdotal, ao beijar minhas mãos ungidas, dissera-me: “Joãozinho, evangelizamos mais de joelhos, pela escuta, com ternura, alegria e oração, do que com nossos sermões.” A Dom Manuel Tavares de Araújo, gratidão por tantos ensinamentos e por ter me recomendado, após ungir minhas mãos: “Padre João, tenha um olhar compassivo para todos. O sacerdócio do qual você foi investido não lhe pertence, é dos cristãos. Seja sempre um irmão de todos. É o que os fiéis esperam de você.”

Amigos e irmãos, grato lhes sou. Continuem rezando por mim, até quando Cristo me chamar à sua presença celeste. Deus me torne lúcido para poder rezar diariamente, como Santo Inácio de Loyola: “Tudo o que tenho, foste Tu que me deste, a Ti devolvo. Tudo é teu, podes dispor. Concede-me teu amor e tua graça. Isso me basta.” Direi como Santo Agostinho: “Um dia, Tu me chamaste e me tocaste. Por isso, sinto fome e sede de Ti. Vivo constantemente no desejo de tua paz!” Meus irmão e amigos, a Cristo prometi um dia servir por toda a minha vida. Deus abençoe todos! Amém.

Mosteiro de Sant´Ana, em Emaús, 25 de agosto de 2025

PADRE JOÃO MEDEIROS FILHO