sexta-feira, 23 de fevereiro de 2024

ORIANO: ÚLTIMA ESTROFE Valério Mesquita mesquita.valerio@gmail.com Direi pouco sobre Oriano de Almeida. Outros falarão melhor porque conviveram de perto com o seu talento e a sua vida. Cláudio Galvão, Diógenes da Cunha Lima, por exemplo, Maria Luiza Dantas, Sanderson Negreiros, Enélio Lima Petrovich (que inaugurou o Memorial Oriano Almeida no anexo do IHGRN em 2001), se já não dissertaram, o farão, com certeza, com brilho e propriedade. Resolvi pronunciar-me porque gosto de pontuar atitudes e assumir gestos quando vejo algo que me desagrada. Fui à Academia de Letras me despedir do seu corpo, na sua tarde derradeira e melancólica. Não apenas movido pelo dever de colega acadêmico ou por solidariedade cristã, mas porque efetivamente ele foi um compositor e intérprete maravilhoso para a honra e orgulho do Rio Grande do Norte, cujo povo não “está nem aí”. No recinto, durante os discursos de despedida, pouquíssimos presentes. Aí começou a nascer em mim a necessidade de protestar, de me indignar, de não me calar. Comentei com Genibaldo Barros, Armando Negreiros e Ernani Rosado que ali estavam: é o menor público da vida de Oriano, quando deveria ser o maior. Ele que havia conquistado as platéias milionárias, exigentes e refinadas do mundo inteiro não conseguia reunir para o último adeus a intelectualidade de sua terra. Quanta ironia, quanto paradoxo a vida nos ensina. O maior intérprete do mundo da obra de Chopin, que encantou os palcos da arte musical, gênio da música, compositor, ocupante da cadeira nº 13 que pertenceu a Câmara Cascudo, estava finalmente esquecido. Havia atingido a “verdadeira imortalidade”. Já escrevi que Natal sofre de ataraxia, indiferença. É pobre de sentimentos. Chegou um momento, no velório, que Diógenes preocupou-se com os circunstantes para conduzir o esquife do salão ao veículo funerário. A maioria era mulheres entre reduzido grupo de sexagenários em débito com o teste ergométrico. Afirmo, sem qualquer preconceito, que talvez tenha faltado a Oriano a passagem por uma banda de forró. Resta a esperança de que o nome, a importância do que fez como musicista, intérprete, compositor e escritor não desapareça. Não tenho dúvidas de que Oriano Almeida é maior do que os ausentes. A sua obra tem abrangência nacional e internacional. Simples, não buscava os refletores da fama. Ela vinha até ele. Nem o elogio fácil. Já disse que na vida quando se passa dos 60 ou 70 anos, torna-se estatística. Diferente dos países mais civilizados. E Oriano se foi com 83. Fica para os pesquisadores, memorialistas e estudiosos da música e da obra que ele nos lega, a tarefa permanente de afirmar que Oriano Almeida vive. Na frase, que não é minha e nem sei de quem, mas que eu gosto de lembrar: “Não se acaba o homem. Constrói-se a cada dia sua performance”. (*) Escritor.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

A cultura do jeitinho Padre João Medeiros Filho Quando estudei na Bélgica, em várias ocasiões, ouvi de colegas europeus insinuações de que não há leis no Brasil. De forma irônica e generalizada, afirmavam: “Tudo não passa de uma brincadeira.” Falavam que, em nossa pátria, vigora apenas a “cultura do jeitinho”. E, com uma dose de crítica e empáfia, ousavam afirmar que nossa legislação lembra os adornos natalinos: reluzem, embelezam e encantam, mas apenas enfeitam. Aquilo que, à época, me soava como um acinte, hoje parece aproximar-se da realidade. Atribui-se a Charles De Gaulle a seguinte frase: “O Brasil não é um país sério.” Segundo alguns historiadores, a expressão é de autoria do diplomata Carlos Alves de Souza Filho. Pronunciadas ou não pelo ex-presidente francês, as palavras tentam rotular a nossa identidade cultural e nacional. Na Europa, apesar de traumatismos pós-guerras, do pseudo-espírito de superioridade, dos problemas linguístico-culturais, político-sociais, migratório-populacionais etc., as instituições talvez funcionem melhor. Os cidadãos são formados no patriotismo, na obediência e disciplina. Não se joga lixo nas ruas; cumpre-se horário; observam-se filas, espaços para idosos, regras de trânsito. Estacionam no lugar indicado, sem invadir a vaga ao lado. São pequenos gestos que revelam a formação e índole de um povo. O meio ambiente e o próximo são altamente respeitados e valorizados. É bem conhecido o ditado inglês: “The way you drive, the way you live” (O modo como você dirige diz como você vive). Na verdade, ao dirigir, mostra-se um pouco de si mesmo. Mas, bem longe dos semáforos, estradas, estacionamentos ou garagens, reside a origem de vários problemas brasileiros, dentre eles a incapacidade de conviver com o não. Às claras ou à sorrelfa, invadem-se espaços e tolhem-se direitos alheios. Esquece-se aquela lição de nossos pais: “Isso não pode, meu filho.” Estudiosos do comportamento humano dizem que nosso caso envolve uma negação sistemática (infantil?) de autoridade e limites. Na verdade, dizer ou ouvir uma negativa é desagradável ou constrangedor, seja para quem dá ou recebe, mesmo que necessário. Apesar da decantada cordialidade e gentileza do brasileiro, muitos têm o hábito de escutar músicas com o som bem alto; abrem-se as janelas dos apartamentos ou carros, aumenta-se o volume. Isso porque acreditam que os vizinhos também vão curtir suas preferências musicais. Os veranistas que o digam! De forma irreverente e deseducada, colecionam-se pequenas transgressões até atingir o nível elevado, no qual se esbalda um número de pessoas, ignorando a ética, dilapidando o erário, sem o menor constrangimento. E talvez será pior no futuro, dizem alguns entendidos. Não se pode mais dizer “Isso não é permitido!”, para não traumatizar, tolher a liberdade e criatividade das crianças; tampouco se podem aplicar punições para não deixar marcas profundas. Há uma dificuldade grande para se ouvir e aceitar uma negativa, pois ninguém deseja ser contrariado. Cristo pregava: “Seja o vosso sim, sim; o vosso não, não” (cf. Mt 5,37). Esse ensinamento ainda não foi bem assimilado até agora por muitos. Há alguns meses, bandidos aterrorizaram e quase pararam o Rio Grande do Norte, alegando “indevidas” proibições ou interdições. Certa vez, presenciei uma cena vexatória. Numa livraria-papelaria, uma senhora, aparentemente fina e elegante, pediu para xerocar um livro inteiro. Com bons modos, a funcionária da loja informou, discreta e cortesmente, que cópias de livros não são permitidas, ferem a lei dos direitos autorais. Ouviram-se desaforos pronunciados pela “gentil e chique senhora”. Essa saiu indignada, sacudindo sua vistosa bolsa Louis Vuitton (seria original, réplica ou genérica?). O valor do livro era um pouquinho mais alto do que o preço das cópias. Como falar então de justiça, honestidade, cidadania e transparência, neste país, no qual sequer se consegue obedecer a regras e convenções, as mais comezinhas? Cristo afirmou para seus apóstolos: “Quem não é fiel no pouco, não será no muito” (cf. Mt 25,23). O que dirão atualmente alguns professores e diretores de escolas sobre impropérios de pais, cujos filhos são punidos por transgressão disciplinar ou rendimento acadêmico inexpressivo? Não se pode nem se deve confundir nunca cordialidade e informalidade com indisciplina e permissividade. A Bíblia diz: “Ensina ao jovem qual o caminho a seguir e ele não se desviará” (Pv 22,6).