A lei do aborto na Argentina
Padre João Medeiros Filho
Em
frase lapidar se expressou o presidente da Conferência Episcopal Argentina: “Uma sociedade é definida pela forma como
olha para os mais vulneráveis, pobres e indefesos. Eis o que identifica a
dignidade de um povo e sua cultura.” Tais palavras aplicam-se igualmente ao
nascituro em total incapacidade de defesa. Diante de uma gravidez inesperada ou
indesejada, não se deveria interromper a vida, mas abrir espaço para aqueles
que a ela são chamados e dela possam participar. Apela-se ao respeito e altruísmo
das pessoas, a fim de que todos – e não apenas alguns – sejam bem-vindos à
existência.
Divulgou-se
que o Papa Francisco calou diante da aprovação da lei do aborto, em seu país de
origem. Entretanto, pode-se ler, em sites eclesiásticos, dentre tantos de seus
pronunciamentos, uma carta ao movimento “Mujeres
de las villas”, datada de 22/11/2020. O Sumo Pontífice também se dirigiu
aos ex-alunos clérigos e religiosos, explicando que, ao falar ao mundo sobre a
sacralidade da vida, ali estão inclusos os argentinos. Nesse documento, ele foi
categórico: “Não é uma lei para os pobres.
Ela vai ao encontro do espírito egoísta que rejeita a responsabilidade. Hoje, fala-se tanto
em pobres, mas se legisla para os ricos. Os pobres não terão acesso aos efeitos
de tal legislação, mesmo se fosse justa e ética.” Alguns países iludem-se com certas leis.
Acham que vão resolver os problemas de seus habitantes. O Papa insiste em dizer que o aborto não
é somente uma questão religiosa, mas, sobretudo, humanitária e interdisciplinar.
Não aprofundaremos aqui argumentos teológicos. No
entanto, convém lembrar documentos históricos, que já registram a preocupação
com o direito à vida. Dentre eles, a Carta de Barnabé (início do século II),
onde se lê: “Não mates a criança no seio
de sua mãe, nem a qualquer momento” (CB 19, 5). O mesmo posicionamento
encontra-se em Tertuliano, teólogo e jurista do século II. Ele sintetiza a sua
opinião sobre a temática nestes termos: “Não
faz diferença tirar a vida de uma pessoa já nascida ou destruí-la ainda
nascente. O nascituro já é pessoa humana” (Apologeticum IX, 8).
Evidentemente,
trata-se de um tema complexo, envolvendo a Ética, o Direito, a Teologia, a
Medicina e outros ramos do conhecimento humano. Há uma pletora de argumentos a
respeito do tema. Verifica-se uma gama de opiniões e decisões, partindo em
todas as direções. O Superior Tribunal de Justiça (em recurso contra uma
decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de SC) manifestou-se pela vida, ao
ocorrer a morte de um nascituro no ventre da mãe, vítima de um acidente
automobilístico. Aquela corte federal argumentou que havia vida no nascituro,
pronunciando-se a favor do pedido de indenização, determinando a seguradora “efetuar o pagamento pela perda de uma vida
humana”. Jean Ladrière, ex-professor de Filosofia da Universidade de
Louvain (Bélgica), afirmava que “não se pode
discutir o tema sob um único enfoque, há nele uma interdisciplinariedade
envolvida. Discutir apenas sob um ângulo, revela leviandade”. Manifesta-se
também seu colega Albert Dondeyne: “A concepção
a e expectativa de vida, já são a vida. Assim como é assentimento jurídico que a
expectativa de direito começa a produzir os seus efeitos”.
Gostaríamos
de recordar a contundente argumentação do professor Louis Janssen, docente de Teologia
Moral, na cita universidade belga e orientador de nossa tese teologal. O
renomado mestre lança para reflexão dos católicos algumas interrogações: “A vida humana é nossa propriedade? Tem-se
escritura cartorial dela? É criação absoluta e fabricação nossa? Patenteamos a
sua fórmula em alguma instituição de direitos autorais? Se não é nosso patrimônio
assegurado, não nos cabe dispor dela, como nos convém”. E arremata: “Somos apenas guardião da vida, não seu
inventor e dono legítimo”. Constata-se muita veleidade na discussão do tema.
Seria salutar aos cristãos refletir sobre as seguintes
citações: “Não matarás a criança, fruto
do teu seio” (Didaqué II, 2). A vida não é uma invenção do homem – embora tenha
recebido o dom de transmiti-la – tampouco propriedade de quem a possa gerar ou
acolher. “Não matarás o inocente e não justificarás o
culpado” (Ex 23, 6).