terça-feira, 14 de setembro de 2021

 A “excomunicação” do ódio 

Padre João Medeiros Filho 

Segundo as palavras do atual Sumo Pontífice: “o ódio é uma maneira de excomunicar ou excomungar e afastar outrem.” Ultimamente, surgiu uma forma digital, mais perigosa e deletéria. Reativável e armazenada nas redes sociais, passa de individual a social. É lamentável, pois não se encontrou ainda uma contrapartida, capaz de refluir essa onda deplorável. Nossos lares, instituições de ensino e igrejas carecem de proporcionar uma formação mais eficaz para o encontro e a solidariedade. O ódio digital é também hipócrita, pois “quem odeia disfarça as suas intenções.” (Pv 26, 24). Seu emissor lança ofensas e mostra-se quase sempre incapaz de proferi-las face a face. Nos dias atuais, reveste-se de mais uma modalidade: a ira gratuita e preconceituosa. Às vezes, basta saber a que grupo pertence alguém para odiá-lo. Se, por ventura, confessar sua convicção ideológica ou religiosa divergente, será agredido ou excluído dos contatos. Não basta desgostar das pessoas. Seus amigos e familiares também passam a ser vítimas da sanha. É uma repulsa em cadeia e quase sistêmica. O rancor está sendo cada vez mais digitalizado, permeando sites e redes digitais, mediante expressões de indiferença, intolerância e preconceito. Tal situação integra o fenômeno recente de difusão da desinformação. Hoje, busca-se confundir e enganar, ao invés de informar. A inverdade parece atrair mais. Constrói-se com isso uma poluição comunicacional. As redes sociais lembram o Coliseu, a antiga arena dos gladiadores romanos. À semelhança dos espectadores de outrora, os hodiernos – confortavelmente instalados em suas casas – acompanham os confrontos e as manifestações odiosas pela telinha do celular. Não se contentando em ser meros assistentes, optam pela cumplicidade da destruição do próximo, compartilhando a sua ojeriza. Isso vem reforçando atos inverídicos, de radicalismo e violência. Acirram-se os ânimos numa contradição à essência e razão de ser das próprias redes sociais. Estas nasceram para favorecer a sociabilidade e a convivência e não a hostilidade. O Papa Francisco tem dito que as redes sociais fazem retornar ao passado, em que clérigos excomungavam os fiéis, excluindo-os do convívio eclesial e comunitário. De acordo com psicólogos, a etiologia do ódio decorre muitas vezes de frustrações represadas, despejadas sobre outrem. O “hater” sente um prazer mórbido em descontruir o outro. As redes estão se tornando um lugar propício para destilar sentimentos negativos, guardados intimamente com amargura. Parecem uma poção venenosa preparada para destruir o outro. A Bíblia apresenta Deus, nos primórdios da humanidade, condenando o gesto odioso de Caim, cheio de inveja e ciúme: “O que fizeste de teu irmão?” (Gn 4, 9). No caso da aversão e hostilidade digital, a acidez interior encontra vazão imediata, atingindo rapidamente o alvo, disseminando a ofensa com amplo leque de pessoas. Cria-se a cultura do descarte e desencontro. Tais atitudes visam a destroçar a vida do próximo. Assemelham-se aos tempos inquisitoriais da Idade Média, em que pessoas se divertiam, ao assistir, em praça pública, fogueiras humanas de supostos hereges e incrédulos. Os impregnados pelo ódio são infelizes e procuram trazer infelicidade a seu redor. Tentam encobrir sua insegurança sob o manto da prepotência e arrogância, do constrangimento e ameaças. Vivem-se tempos mórbidos e há necessidade de tratamento. O Brasil adoeceu, está perdendo o bom senso e o equilíbrio. Muitos revestem-se da cólera e inimizade. O desafio para os cristãos é fazer das redes digitais uma escola de respeito e fraternidade. As religiões precisam reativar o diálogo e o amor. Vários grupos são formados de indivíduos que se identificam pela vivência da mesma fé. Por que não unir, ao invés de separar e ofender? Os inseguros tendem a ser agressivos e manter relações tóxicas. Por isso, escolhem, não raro, o anonimato da internet para extravasar seus recalques ou infortúnios. Essa postura decorre do medo de rejeição e temor do não reconhecimento ou admiração. Santo Tomás de Aquino afirmava: “Quem odeia é um invejoso, desprovido de riqueza interior. Por isso, pretende empobrecer os demais. E não conseguindo, tenta aniquilar o semelhante”. Sob a ótica cristã, o ódio está implícito no quinto mandamento da Lei de Deus: “Não matarás”.

 

MISSA DE SÉTIMO dia do MinIstro José Augusto delgado

Seremos julgados pelo amor”, assim sentenciou São João da Cruz, grande místico espanhol do século XVI, sobre o fim de nossa trajetória. Abordar o tema da morte geralmente é doloroso, porque as pessoas a concebem fora da existência. Morrer faz parte do viver. Despender tempo, energia, renunciar a algo, perder, tudo isto indica que a vida é semelhante a uma vela que se consome para produzir luz. Plena desse brilho foi a caminhada de nosso irmão José Augusto Delgado, que permanece em nossa memória. O nome que recebeu no batismo é simbólico, icônico, usando a expressão da moda. Tem o onomástico do pai adotivo do Salvador do Mundo e esposo de Nossa Senhora. Nosso inesquecível confrade é exemplo de dedicação e probidade. Augusto, pela nobreza do seu caráter, pela consciência da nossa condição de filhos de Deus. Delgado era elegante, fino e delicado no pensar e no proceder. Cônscio da limitação humana, confiava em Deus, em sintonia com o pensamento do apóstolo Paulo: “Tudo posso naquele que me fortalece, que é Jesus Cristo.”  (Fl 4, 13). Sua postura revela que comungava dos sentimentos do inesquecível Cônego Luiz Monte, membro de nossa Academia: “Sem a fé, sou pequeno demais para o céu. Com ela grande demais para a terra.”

Caríssimos irmãos, preparar-se para o ocaso da vida não é voltar-se para a noite da morte, mas perceber que o sol se põe nesta vida terrena, mas continua a resplandecer na vida celestial, onde o dia é eterno. Os astros cintilam nas alturas. Deste modo, o professor Delgado também brilhará no céu.

Como cristãos, devemos ter consciência de que a morte é apenas o umbral da entrada na nova vida. Cristo proclamou: “Eu vim para que todos tenham vida. E a tenham em plenitude ou abundância.” (Jo 10, 10). Santo Agostinho, bispo de Hipona, proferiu esta verdade teológica: “Mors, vere dies natalis hominis”, a morte é o verdadeiro natalício do ser humano. Se pensássemos apenas na morte, colocaríamos o sentido de tudo somente no final da existência. Muitas pessoas tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor dos dias na terra. Contudo, a tentação maior é uma abordagem contrária: pensar somente na ilusória vida passageira. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos peregrinos e estrangeiros, mas, em breve, estaremos em nossa pátria”, proclamou o apóstolo Pedro (1Pd 1, 1).

O cristianismo define a morte como passagem da existência limitada para a vida plena, em Deus. Trata-se de completar e consumar o que temos e vemos apenas como um esboço. “O que agora vemos é como uma imagem imperfeita num espelho embaçado, mas depois veremos face a face. Aqui, o conhecimento é imperfeito e parcial, mas depois será pleno, assim como sou conhecido por Deus.” (1Cor 13, 12). Vivemos na fé e na esperança aquilo que um dia veremos na Eternidade.

Assevera ainda o cristianismo que, apesar de vivermos na limitação do tempo, já somos eternos, enquanto filhos do Deus Infinito, que um dia nos perfilhou pela sua misericórdia e ternura. Por isso, os cristãos sabem que a morte não pode separá-los de Cristo. Portanto, nosso irmão Delgado desfruta agora da herança eterna e do prêmio dos justos e eleitos. “Somos herdeiros do céu e coerdeiros com Cristo”, assegura-nos a Carta aos Romanos. (Rm 8, 17).

Só é possível compreender o mistério da morte, sob a ótica e a dimensão da fé. Esta identifica tipos de presença que a corporeidade não alcança, descobre união e proximidade que o espaço sequer imagina. Ela é a marca do divino, atemporal, onipresente e espiritual. Ultrapassa os limites e as amarras, rompe os laços que nos prendem e liberta-nos das prisões. A fé conduz-nos ao amor. E este “é mais forte que a própria morte”, afirma São João (1Jo 3, 14). Porque soube amar, nosso irmão Delgado permanece vivo. E Santo Agostinho conclui: “ninguém ama sem ter fé, nem acredita sem amar.”

Desde tempos remotos, já sabia de sua riqueza interior, como jurista, homem probo e de fé no Deus da Paz e da Justiça. Eu era um jovem e inexperiente padre, pároco em Caicó, em 1965. Ali, recebi a visita do saudoso Monsenhor Expedito Sobral de Medeiros, que um dia me batizou na matriz de Jucurutu. Comecei a indagar sobre a sua paróquia de São Paulo do Potengi. E ele proferiu palavras, que permanecem vivas em minha memória: “João, acabo de conhecer um magistrado, como define a Bíblia, sábio, honrado, prudente e conciliador, humanista e sobretudo temente a Deus.” E “Monsenhor Expedito tinha o faro de nossas almas”, no dizer de Oswaldo Lamartine. Existem pessoas que se engrandecem com as academias. Há outras que tornam grandes as academias às quais pertencem. Assim, na ANRL destaca-se José Augusto Delgado.

Hoje, a seus familiares e amigos, cabe-nos dizer que não nos inquietemos. O amor, apesar de invisível e imprevisível, cria formas e modos diferentes de se manifestar. Pela fé e guardado no tesouro de nossa memória, ele permanecerá vivo, unido e presente. Os discípulos de Jesus não ficaram sem ver Aquele a quem tanto amaram. Ele mostrou-lhes a Sua face. Assim, os que nos precederam na casa do Pai, saberão como nos confortar em nossas angústias e inquietações, pois já encontraram a Paz definitiva. Nosso amigo Delgado pertence agora ao plano divino, alcançável pela força de nossa crença. Meus irmãos, a fé nos consola e fortalece. “Aos vossos fiéis, não é tirada a vida, mas transformada. E desfeita a nossa habitação terrena, nos é dada nos céus, uma eterna morada”, como ouviremos no prefácio desta missa. Há uma lenda entre os índios kadiwéus, de profundo sentido teológico, afirmando que “a morte leva o ser humano à vida oculta e silenciosa. Aqueles que amamos não morrem, apenas transmigram.

A saudade dói em nosso íntimo. Ela torna presente o ausente, preenchendo o vazio da solitude. Mas, Deus existe para aquietar a saudade. A palavra é pobre para falar sobre o mistério da morte. Um dia encontrar-nos-emos para celebrar o grande banquete dos eleitos de Deus. Agora, nosso confrade goza das maravilhas celestiais. Que ele descanse em paz! E junto de Deus, lembre-se de nós, peregrinos da vida. Hoje rendamos graças ao Pai Celestial pela grandeza de sua existência e sabedoria com a qual Ele o revestiu. Os olhos jamais contemplaram, os ouvidos nunca escutaram, o pensamento humano sequer imaginou aquilo que Deus reserva para seus filhos amados.” (1Cor 2, 9).

 Natal, 13/09/2021. Igreja de Bom Jesus da Ribeira. Padre João Medeiros Filho.

 

segunda-feira, 13 de setembro de 2021

 

O autor e seu processo
Há alguns anos estive em Praga. Era minha segunda vez na capital da República Tcheca. Dessa feita, amante da literatura e do direito, decidi visitar um café/restaurante que, me disseram, havia sido frequentado por Franz Kafka (1883-1924). Já não lembro o nome do estabelecimento (e olhem que gosto muito de cafés, bares e assemelhados). Recordo apenas que era fora do miolo turístico da cidade. E, não sei se foi a bebida, um vinho tcheco honesto, tomado à abundância, mas a lembrança que eu tenho do meu encontro com o autor de “O processo” (1925) foi de uma natureza bastante estranha. O café estava quase vazio, tirando um ou outro habitué, que parecia estar ali, sem que soubesse o porquê, detido/amalgamado, há mais de um século, à decoração decadente. Foi uma assustadora volta a um tempo já ido, ao qual, mesmo sem ter feito qualquer mal, receei ficar preso eu também. “Sinistro”, como dizem hoje.
Dito isso, posso desenvolver duas ou três ideias sobre Kafka e sua obra. O autor nasceu em Praga, à época parte do grande Império Austro-húngaro. Sua família era judia da região da Boêmia. Falavam alemão e ele assim foi educado. Nunca casou. Diz-se haver simpatizado com o socialismo. Muito importante para nós, Kafka escreveu em alemão. Romances (inacabados) e contos, sobretudo. Seu trabalho mistura o real e o fantástico, beirando o que hoje temos por realismo mágico. Daí decorre haver o termo “kafkiano” entrado nas línguas ocidentais para descrever situações absurdas como aquelas encontradas nos seus textos. Seus principais títulos são “A Metamorfose” (1915), o já citado “O Processo” e o “Castelo” (1926). Faleceu de tuberculose, ainda jovem. É tido com um dos grandes nomes da literatura alemã e mundial do século passado. Um cult.
E a impressão que tenho, quando se fala da presença do direito na literatura alemã, é que nos vem logo à mente Kafka e o seu “O processo”. Segundo consta, “O processo” foi escrito entre 1914 e 1915, embora só publicado postumamente, em 1925, por iniciativa de Max Brod (1884-1968), também escritor judeu, assim como amigo, biógrafo e executor literário de Kafka. Basicamente, o livro conta a estória do bancário Jofeph K., que, por um “crime” ou por razões nunca reveladas, nem a ele nem ao leitor, é preso, processado e condenado por um misterioso e inacessível tribunal. É verdade que “O processo” é um livro inacabado, mas um dos seus capítulos também dá a entender que esse foi um dos objetivos – objetivo paradoxal, sem dúvida, como de estilo – do seu autor. O absurdo existencial é a tônica da narrativa, em meio a sonhos, pesadelos e fatos do cotidiano. A trama é a loucura ou o absurdo, e daí, mais uma vez, enxergamos a consagração do adjetivo “kafkiano”, também para as questões ou os procedimentos do direito.
Na verdade, há várias interpretações sobre esse romance que é considerado uma das obras-primas da literatura alemã. “O processo” é Top 5 entre os romances do século XX, com certeza. Algumas são consistentes; outras, nem tanto. Já se disse, por exemplo, ser ele uma meditação/análise/crítica sobre a burocracia estatal, sobre o totalitarismo, sobre Deus, sobre estados psicológicos, sobre a desesperança e a alienação do homem moderno, sobre a própria vida de Kafka e por aí vai. Cada um desses temas destacadamente ou tudo isso junto e misturado.
Há, evidentemente, interpretações mais pé no chão. “O processo” seria tão somente uma análise, em forma de fábula, sobre instituições – e, em especial, os aparelhos policial e judicial – e sobre a impotência do cidadão em relação a elas. Uma fotografia poética da tão comum absurdez dos processos policiais/judiciais, hoje ditos “kafkianos”, a que são submetidos sobretudo os mais vulneráreis. Uma interpretação, digamos, mais sociológico-jurídica. E bem atual, convenhamos.
E, claro, tem a minha interpretação. Que processa literatura, Praga, um café misterioso, muito vinho e o medo de ficar preso, sem ter feito mal algum, a um passado sem futuro.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL