sexta-feira, 27 de outubro de 2023

 

A ALMA DAS CIDADES


- Horácio Paiva *



A Alma das Cidades é o título de um de meus poemas, habitante de meu livro “A Torre Azul”. Mas é também a representação do status subjetivo da cidade, a aura de cada cidade, para cada um de nós, particularmente.


Dessa forma, essa impressão subjetiva da cidade, essa alma, transcende o sentimento comum, e se, em determinados momentos, a alguns desperta alegria, a outros, sobretudo aos que mais a vivenciaram, pode sugerir nostalgia.


Sim, porque tudo é vida, e todas as cidades são eternas e mortais... Mesmo Roma, chamada de eterna, tem ruínas à vista.


Quando a eternidade se sobrepõe - e sempre se sobrepõe, ao negar o tempo -, abre espaço para nosso voo íntimo, e esse sentimento, que a arte, em alguns momentos, chamou de impressionismo, toma conta de nosso espírito, molda nossas sensações, faz crescer nossa identidade e nos leva a quebrar paradigmas... E cada um passa a ter direito a um espaço ontológico ilimitado, a explicar-se conforme esse mundo gigante.


É isso que me faz associar o lugar onde vivi a qualquer um outro, com mais ou menos semelhanças entre si, já que ambos pertencem ao meu íntimo e falam às minhas emoções existenciais e estéticas. Tal o que me ocorre quando escuto, por exemplo, o “Estro Armonico”, de Vivaldi, e me vejo ora em Veneza e ora em Macau. É que Vivaldi costuma ir à minha infância, e minha infância é Macau.


Diz Santo Agostinho que as lembranças são a essência do passado, e faz essa reflexão: “Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presente das futuras.” E acrescenta: “Existem, pois, estes três tempos na minha mente que não vejo em outra parte: lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes e esperança presente das coisas futuras.” (“Confissões”, XI, 20).


Mas se as lembranças são a essência do passado, não seriam elas também a base da nostalgia? E se a nostalgia pertence ao tempo que morreu, não seríamos nós também uma sucessão de mortos em relação aos atos e fatos passados com nós mesmos, já que não podemos mais neles interferir?


Macau, porém, é mais que lembranças, e caminha comigo. Como Deleuze, sustento a realidade do passado e sua conexão com o presente e o futuro. É o que digo nesse meu haicai, a que pus o título “Em Macau”:


Estou em Macau -

as lembranças

caminham comigo.


Esse olhar sobre a cidade é um olhar sobre nós mesmos e que se justifica na adequação particular entre espaço, tempo e circunstâncias. Daí pensarmos a cidade como uma responsabilidade nossa e a sua vitória e derrota são vitória e derrota nossas.


Há uma frase do grande poeta e libertário José Martí, que sempre trago comigo e que diz: “No hay más que un medio de vivir después de muerto: haber sido un hombre de todos los tiempos - o un hombre de su tiempo” (“Não há mais que um meio de viver depois de morto: haver sido um homem de todos os tempos - ou um homem de seu tempo”).


No espaço de meu tempo, circunstâncias e afinidades, algumas cidades disputam, ou, melhor, formam meu coração: Macau, Natal, Recife, Lisboa e Veneza. Em todas essas águas há o navegar de um navio azul imaginário, a Nau Catarineta. Mas o cais é Macau, toda Macau, a eterna.


Vamos ao poema:


A ALMA DAS CIDADES


A cidade passou

antes de mim.

E não houve adeus.

Perdeu-se

no caos incontrolável

da impermanência.


E quando vi que passara

com seu séquito mudo

retirei-me.

Sem olhar para trás...


Anjos

- que não sabem que são anjos -

vieram ao meu encontro

e serviram-me.


Ainda não morri,

concordo.

Mas a alma de minha cidade

não existe mais.



.................................................................................................................


(*) Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.

quinta-feira, 26 de outubro de 2023

 A CAUSA ABOLICIONISTA

Ivan Maciel de Andrade, Jurista e escritor


Em 14 de maio de 1893, cinco anos após a sanção da Lei Áurea que aboliu a escravidão no Brasil, pondo fim ao longo período de “opróbio e opressão” da “raça” negra em nosso país, como disse em discurso o abolicionista José do Patrocínio, Machado de Assis escreveu uma crônica na “Gazeta de Notícias” (da série “A Semana”, 1892-1897). A crônica começa contando que no dia anterior, bem cedo, “as fortalezas e os navios começaram a salvar pelo quinto aniversário do Treze de Maio”. Machado lamenta que o dia tivesse amanhecido com “o chão molhado” e “o céu feio e triste”. Constata poeticamente: “o sol é, na verdade, o sócio natural das alegrias públicas”. Passa, então, a recordar o dia em que foi sancionada a Lei Áurea. É um raro e importante texto de grande valor memorialístico.
Segundo ele, “houve sol, e grande sol, naquele domingo de 1888, em que o Senado votou a lei que a regente sancionou, e todos saímos à rua.” E enfatiza a seguir: “Sim, eu também saí à rua, eu o mais encolhido dos caramujos, também eu entrei no préstito, em carruagem aberta, se me fazem favor, hóspede de um gordo amigo ausente; todos respiravam felicidade, tudo era delírio”. E num rasgo de entusiasmo: “Verdadeiramente, foi o único dia de delírio público que me lembra ter visto.” A história registra que as festas se prolongaram por uma semana. Machado esteve presente em todas as comemorações, comparecendo inclusive a uma missa campal de agradecimento à princesa Isabel. Consta que “foi orador de uma homenagem que os funcionários do Ministério da Agricultura fizeram a um conselheiro do imperador” (“Para conhecer Machado de Assis”, Zahar, 2005, de Keila Grinberg e outras autoras). Poemas de diferentes autores, entre eles um de Machado, “impressos em papel cor-de-rosa, foram distribuídos à população”. Como se vê, Machado se incorporou ao “delírio” das ruas. 
O “Memorial de Aires” (1908), seu último romance, tem muitos traços autobiográficos, transpostos para o plano ficcional. Nele, o Conselheiro Aires, uma espécie de “alter ego” de Machado de Assis, pois corresponde à imagem que ele construíra ao longo do tempo para si mesmo, afirma, em seu diário, que embora não fosse “propagandista da abolição” sentira “grande prazer quando soube da votação final do Senado e da sanção da Regente.” Diz que “estava na Rua do Ouvidor, onde a agitação era grande e a alegria geral” e narra: “Um conhecido meu, homem de imprensa, achando-me ali ofereceu-me lugar no seu carro” que ia participar do “cortejo organizado para rodear o passo da cidade, e fazer ovação à Regente.” O Conselheiro confessa que esteve “quase, quase a aceitar, tal era o (seu) atordoamento”, mas por várias razões recusou: “Recusei com pena”. Machado se arrependera dos excessos cometidos anteriormente, com 49 anos, ou se manteve fiel, no “Memorial”, às características próprias do personagem que criara? O certo é que, antes mesmo da Abolição, Machado contribuiu para a libertação de grande número de escravos através de pareceres emitidos sobre a aplicação da Lei do Ventre Livre (“ninguém mais nasce escravo no Brasil”), de 1871, na condição de funcionário do Ministério da Agricultura. Um trabalho silencioso mas de grande eficácia e relevância.

 TEMPO DE OUVIR SINAIS

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Gautama é a personagem histórica que fundou o budismo no século V a.C. Essa religião, que se opôs ao bramanismo, conta com mais de quinhentos milhões no Extremo Oriente, incluindo-se Índia, China e Japão. Já Maomé, profeta e fundador do islamismo, lá pela era de 632 d.C., domina, hoje, dezenas de países muçulmanos. Pois bem. Não se vê ninguém sistematicamente refutar, distorcer, incriminar, blasfemar através da literatura mundial, sobre a vida pregressa dos fundadores das duas religiões. Apenas, como objetivo deliberado de desmerecer e lambuzar o culto, de desestabilizar a fé, apenas, tal proceder, através de festejados escritores com relação à vida de Jesus Cristo, imputando-lhe comportamento mundano, incompatível com a imagem santa traduzida e ensinada pelo Novo Testamento das Sagradas Escrituras.

Os milhões de cristãos do mundo, entre católicos, evangélicos, ortodoxos, etc., já começam a indagar: por quê? Cumprem-se as profecias dos anticristos? A própria Bíblia previu, em várias situações, tanto no Antigo como no Novo Testamento, o aparecimento dos perseguidores do Cristo, que jamais deixou de admitir a influência de Satanás sobre os humanos. Ele próprio sofreu a tentação do maligno e triunfou com o seu poder de Filho de Deus para que se cumprissem as escrituras. Ora, a minha indignação é contra as maledicências de obras ficcionistas de livros e filmes que procuram imprimir comportamentos duvidosos e profanos tais como: conjunções carnais com Maria Madalena e que foi casado, pai de filhos. Além do mais, desacredita a Bíblia cristã ao afirmar que o imperador de Roma, Constantino, autorizou a elaboração de outra, a fim de ocultar informações depreciativas sobre Jesus. Todas alegações, integram a trama literariamente urdida, porém corrupta, porque falseia, calúnia uma verdade histórica que muitos pensadores e gênios da humanidade, através dos tempos, jamais contestaram. Creram.

As minhas assertivas não constituem crítica literária e nem é esse o meu propósito. Agora, difamar a vinda do Cristo subvertendo a vida e a mensagem legadas, sem apresentar qualquer prova documental, histórica, pesquisa ou descoberta antropológica, mas, só para exercício de vaidade cultural, com o fito de vender o livro, é ser trapaceiro. É crucificar Jesus de novo.

Minha decepção com o mundo de hoje também se fundamenta no fato de que mais de dez milhões de livros já foram vendidos. Deve ter atingido aquela faixa populacional que só se lembra ou invoca Jesus quando está morrendo no hospital. Ou, quando não, pede para que os serviços religiosos sejam ministrados após a morte, por via das dúvidas. Só me resta pedir a Jesus que venha logo desbaratar essa quadrilha de hereges. Venha fortalecer os seus missionários, sacerdotes, pastores, com a luz do Espírito Santo. Senhor, permita que aconteçam mais milagres, aparições, porque a incredulidade campeia. O Senhor procedeu assim naquele tempo. E agora, após a população do planeta ter crescido tanto, a ciência, a tecnologia, multiplicação de anticristos, não seria oportuno vim, ver e ouvir?

No Apocalipse 22, versículos 12 e 13, disse Jesus: “E eis que cedo venho e o meu galardão está comigo para dar a cada um segundo a sua obra. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Princípio e o Fim, o Primeiro e o Derradeiro”. Palavras fortes que para um bom entendedor, bastam. Estariam os cataclismos no mundo inteiro acontecendo sem a permissão do Senhor para testificar a segunda e anunciada vinda de Jesus ao mundo em transe?

Por acaso, as guerras no Oriente Médio, na Ucrânia, o aumento devastador de terroristas, em todos os continentes, além de tempestades, pandemias, temperaturas extremas, rios secando, domínio do tráfico de drogas, e mais a matança de dois anticristos (árabes e judeus) podem ser entendidos como sinais?

(*) Escritor.

 

 

Nova capela para a Casa da Criança

Padre João Medeiros Filho

Em 1947, o Cônego Eugênio Sales, assessorado pelo Dr. Otto Guerra e acolhendo sugestão de Dom Marcolino Dantas, denominou a Casa da Criança de Natal (RN) “Escola-Ambulatório Padre João Maria”. O bispo diocesano recomendava seguir o exemplo do “Anjo da Caridade”, que havia fundado uma escola para crianças pobres. Dirigida pelas Filhas de São Vicente de Paulo, a Casa da Criança integrava a pastoral social da Arquidiocese de Natal, sendo igualmente campo de estágio da Escola de Serviço Social do RN. A professora Irmã Lúcia Montenegro, religiosa daquela congregação, doutora em Sociologia, supervisionava as atividades sociais e acadêmicas. Desde o final de 1944, a entidade já prestava assistência às crianças órfãs, mantendo uma creche para aquelas, cujas mães trabalhavam fora do lar. Proporcionava à comunidade atendimento médico-odontológico, cursos de alfabetização, capacitação profissional, liderança e ações não contempladas pelos programas governamentais da época. Inegável é o contributo de Irmã Lúcia, junto àquela entidade, que desempenhou papel relevante no Movimento de Natal. A Casa da Criança era um centro irradiador de vivência cristã, formação de líderes e quadros para o desenvolvimento social. Transformou-se em lugar de reflexão e laboratório do Curso Superior de Serviço Social, vinculado à Igreja, hoje incorporado à UFRN.

Muitos condomínios formaram-se nas imediações da escola-ambulatório, dela recebendo influência religiosa. Com o crescimento demográfico no entorno, aproximando-se o octogésimo aniversário da instituição, Monsenhor Lucas Batista Neto, capelão daquela Casa, empenha-se por reavivar o dinamismo evangelizador da entidade. Planejou um novo templo, que servirá de espaço litúrgico e sócio-educacional em comunhão com as orientações arquidiocesanas e paroquiais. “Deseja-se tornar uma comunidade viva, inspirada no Evangelho, alimentada pela Eucaristia e ícone da caridade cristã”, diz o capelão. Hoje, as instalações não conseguem abrigar centenas de fiéis participantes da liturgia dominical, sedentos da Palavra e do Pão da Vida.

O novo templo será dedicado a Nossa Senhora da Medalha Milagrosa, cuja devoção nasceu em Paris. No dia 27/11/1930, a noviça Catarina Labouré entrou na capela das Filhas de Caridade de São Vicente para orar e meditar. A Virgem Maria apareceu-lhe, revelando que aconteceria no mundo uma onda extraordinária de milagres e conversões. Seria a devoção à Medalha Milagrosa de Nossa Senhora das Graças, manifestação do amor do Pai pela humanidade através da Mãe Santíssima.

Terminados os trâmites legais, na Festa de Nossa Senhora Aparecida, Monsenhor Lucas informou à comunidade o início das obras de edificação da Capela e do Portal da Saudade. Este será mais uma fonte de recursos para a manutenção das futuras atividades religiosas e sociais da instituição. Trata-se da construção de um columbário (cinerário), anexado à Capela, para guardar as cinzas dos fiéis que optaram pela cremação. Consiste num local apropriado, obedecendo às normas da Congregação para a Doutrina da Fé na Instrução “Ad ressurgendum cum Christo” (Para ressuscitar com Cristo), de 15/08/2016. A cremação de corpos dos católicos recebeu o beneplácito do Papa Paulo VI (1963), ratificada pelo cânon 1176 do Código de Direito Canônico (1983) e prevista no Catecismo da Igreja Católica (1999), nº 2301.

Realização pioneira nesse sentido teve Dom Eugênio Sales. Ao edificar a nova Catedral de São Sebastião (RJ), determinou a construção, na cripta do templo, de um ossuário, onde os fiéis pudessem inumar os restos mortais de seus familiares em local digno e seguro. À semelhança da Catedral do RJ, será o Portal da Saudade. Ali, haverá também missas semanais e atos religiosos nos dias dos pais, mães e finados em sufrágio daqueles que jazem no local. Seguindo as determinações eclesiásticas, Monsenhor Lucas deseja que as cinzas dos cristãos cremados possam ter o destino previsto nas normas eclesiásticas, “devendo ser colocadas em lugar santo e digno.” O documento da Sé Apostólica desautoriza a colocação das cinzas dos cremados nos mares, rios, lagoas, florestas, jardins e plantas. Reprova ainda o seu uso em joias. Não permite guardá-las nas residências, devendo ser conservadas em lugares sagrados, cemitérios e espaços destinados a esse fim. Convém recordar o profeta Isaías: “Os teus mortos reviverão” (Is 26, 19).

quarta-feira, 25 de outubro de 2023

 ALZIRA SORIANO E A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DA MULHER BRASILEIRA

A lei propiciou a eleição da prefeita Alzira Soriano e também, das primeiras intendentes que desempenhavam funções similares a um conselho de vereadores.

17/10/2023 às 10h11
Por: Adrovando Claro
:
ALZIRA SORIANO E A EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DA MULHER BRASILEIRA

Ana Amélia Fernandes de Lucena (*)

 

 

No início do século XX, a concepção da mulher como cidadã, politicamente emancipada, era tema de reivindicação e de conquistas em países como Suécia, Dinamarca, Noruega, Estados Unidos e Inglaterra. No Brasil, coube ao Estado do Rio Grande do Norte, em caráter pioneiro, conquistar para a mulher o direito legal de votar e também de ser votada. A reivindicação das feministas lideradas por Bertha Lutz, teve, no deputado e candidato ao governo do Estado do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine, um apoio inusitado, contrariando o que já tinha se tornado consenso de grande parte de legisladores e de administradores no país.

José Augusto Bezerra de Medeiros, Governador do Rio Grande do Norte na época em que foi sancionada a Lei, relatou o seguinte o seguinte argumento com o então Deputado Federal Juvenal Lamartine diante da sua incredulidade -É perfeitamente constitucional. A Constituição fala apenas em cidadãos, não distinguindo se homem ou mulher; de modo que a mulher tem tanto direito quanto o homem. Então por que o homem vota e a mulher não vota? Diante deste argumento processou-se e ele como Governador, sancionou a Lei.

Estava admitido o voto feminino através do trabalho do Deputado Federal Juvenal Lamartine e da apresentação realizada pelo Deputado Estadual Adauto Câmara. E do governador José Augusto consagrou-se o seguinte depoimento: Foram as mulheres do Rio Grande do Norte as primeiras a votar no Brasil. E ainda posso acrescentar o seguinte: fui a primeira pessoa votada por mulher no Brasil, graças a essa iniciativa de Lamartine.

De fato, em plena campanha política para ser eleito Presidente do Estado do Rio Grande do Norte, Juvenal Lamartine já questionava a possibilidade da mulher brasileira ser eleitora com base na Constituição então vigente (1891), e, respaldando-se  no argumento de que competiria, também,  ao Estado-membro legislar sobre direito eleitoral, conseguiu que constasse no artigo 77 da  Lei  660 de 25 de outubro de 1927 que:  No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por esta lei.

Foi assim que a demanda para as inscrições do eleitorado feminino não se fez esperar e, desta forma, ainda em 1927, Celina Guimarães Viana, em Mossoró, RN e Júlia Barbosa em Natal, RN, entraram para a História como as primeiras eleitoras do Brasil. As eleições se processaram em setembro de 1928. A lei propiciou a eleição da prefeita Alzira Soriano e  também, das primeiras intendentes que desempenhavam funções similares a um conselho de vereadores, como foi o caso da professora Joana Cacilda de Besser, que fez o seu  alistamento eleitoral no município de Pau dos Ferros,  em 28 de dezembro de 1927, vindo a ocupar neste mesmo município, esse cargo. Em 1935, Maria do Céu Fernandes foi eleita Deputada Estadual, dando ao Rio Grande do Norte, o título de primeiro Estado a eleger uma mulher para a Assembleia Legislativa.

A onda de adesão teve o apoio dos cidadãos norte-rio-grandenses de uma forma geral, demonstrando a seriedade da proposta e a confiança que já se fazia sentir pelo desempenho da mulher na administração pública. Prova deste consenso está no fato irrefutável de terem sido eleitas. Porém, como não seria de se estranhar, em termos nacionais, a conquista da mulher, com apoio dos políticos e legisladores no Estado do Rio Grande do Norte, foi também motivo de galhofa. Era comum se encontrar em pasquins da época, de circulação     nacional, charges ironizando o voto feminino (deixaria de ser secreto?...) e também sobre o forte poder de atração exercido pelo governador Juvenal Lamartine sobre o sexo feminino.  O jornal O Malho do Rio de Janeiro, pródigo em charges humorísticas sobre a adesão de Lamartine à causa feminista ironizava o poder que as mulheres passariam a usufruir, invertendo valores relacionados com os que eram até então consignados apenas ao sexo oposto.

Edgar Barbosa ao se referir ao voto feminino em todo o território brasileiro observa o seguinte:  As Constituições que se seguiram à Revolução de 30 legitimaram a participação da mulher na concorrência política e segue relacionando exemplos tais como a de 1934 (o art. 109 inclui a mulher como obrigada a se alistar e a votar, no caso de esta exercer função pública) e as subsequentes, que consagraram o direito do voto feminino. É também de Edgar o  elogio do feito norte-rio-grandense.

Alzira Soriano, mulher decidida, de temperamento forte e com uma inteligência privilegiada, ao chegar no cargo de Prefeita era investida também da primazia de se tornar a primeira mulher a exercer um cargo na administração pública municipal, no Brasil. O mais importante do seu feito é o fato de também ter demonstrado que a oportunidade que lhe foi   repassada se fundamentava na sua capacidade e na sua idoneidade. Seu discurso de posse e a entrevista que deu ao jornal O Globo são testemunhos de sua percepção sob a responsabilidade que passava a receber diante de si mesma, diante da luta internacional pelos direitos da mulher e diante do seu povo:

 

Não me prevalecerei do cargo para fazer favores a amigos e ainda menos para negar justiça a adversários. Não abusarei dele para obter proventos seja qual for a natureza destes. O infortúnio do meu estado civil ensinou-me a trabalhar e a viver modestamente com honra, e não trocarei jamais a calma da consciência e altivez da mediania por vantagens mais ou menos suspeitas que pudesse auferir da função pública.

 

A sua administração foi marcada também por aspectos inovadores como a convocação de intelectuais do Estado para um quadro de Secretários que a ajudassem a intervir em áreas tais como estradas, educação, urbanização e saúde. Quando se considera que no ensino formal teve apenas o básico,  depreende-se que na sua formação o grande papel adveio da sua experiência de vida, como, por exemplo, no aprendizado político com o seu pai;  com  o seu marido, o Promotor Soriano, na curta  convivência devido o seu falecimento em 9 de janeiro de 1919, após o quarto ano de casamento, vítima, aos 29 anos, da gripe espanhola, deixando-a grávida; com o seu sogro, em Recife, após a viuvez,  e com  a leitura e os contatos com  pessoas ligadas à movimentos políticos  e minoritários. Sua vida é uma demonstração de que a sua inteligência, aliada à sua experiência, acumularam sabedoria e determinação.

Nasceu em 29 de abril de 1896 em Jardim Angicos, RN, sendo seus pais Miguel Teixeira de Vasconcelos e Margarida Teixeira de Vasconcelos. Morreu em 28 de maio de 1963 aos 67 anos de idade, vítima de um câncer. Sua terra natal, Jardim de Angicos perdeu a emancipação em 1914 e passou a ser distrito de Lajes em razão do crescimento deste município por causa da passagem da via férrea. O desmembramento só se processou em 1962, pela Lei número 2.755 de 8 de maio de 1962 no Governo de Aluísio Alves.

O nome Soriano, veio do seu casamento em 29 de abril de 1914, data em que completava 18 anos, com o  Promotor, Dr. Thomaz Soriano de Souza Filho que a deixou viúva aos 22 anos. Do seu casamento teve as filhas Sônia (1915), Ismênia (1917) Maria do Céu (1918 - faleceu com um mês) e Ivonilde (março de 1919) que nasceu meses após a morte do pai. Esta última reside em Jardim de Angicos preservando a história e a casa onde residiu com sua mãe e que nos deu esta entrevista e acesso ao seu acervo iconográfico. Atualmente, vem mantendo contatos para dar início ao processo de tombamento e de organização de um Memorial.

Alzira foi Prefeita aos 31 anos. Seu pai foi um homem considerado como grande político da região central do Rio Grande do Norte. A participação de Alzira chamou a atenção da advogada feminista Bertha Lutz quando, em companhia do então governador Juvenal Lamartine, visitou Lajes, influenciando-o na indicação de uma mulher para governar o município.

O caderno Cidades do jornal “Diário de Natal”, no artigo “Memória: Alzira Soriano, o centenário da primeira prefeita do Brasil” (DN: 28.04.1996) faz referência à grande repercussão desta eleição: “O fato de ser a primeira mulher prefeita do Brasil e da América Latina, fez com que os jornais do  mundo inteiro noticiassem o acontecimento, tornando Alzira Soriano bastante conhecida e festejada (...)  Importante também é o destaque que se dá à sua gestão, como tendo sido  de grande  competência e integridade:

 

          Com o fim das comemorações pela vitória, a prefeita Alzira Soriano partiu para fazer uma administração que chamava a atenção pela organização, tratando logo de nomear secretários e solicitou do governador a ajuda de escriturários do Estado para os trabalhos administrativos. Com uma receita de 60 contos de réis, marcou seu mandato com a construção de novas estradas, mercados públicos distritais, escolas e iluminação (DN, 28.04.1996).

 

 Esta norte-rio-grandense tornou-se um exemplo para o movimento feminista do país, pela sua inteligência e pela sua determinação. Sobre a participação da mulher e em especial sobre Alzira Soriano, a bióloga e líder feminista Bertha Lutz, declarou no Jornal A República de 2 de dezembro de 1928:

 

... O acontecimento mais notável foi a eleição da Sra. Alzira Teixeira Soriano, para prefeita de Lages. É uma mulher inteligente, enérgica, com larga capacidade administrativa e prática, jovem independente e digna. Considero a eleição de elemento como este uma abundante recompensa de todo o trabalho despendido por mim, em dez longos anos em prol da causa feminina, pois constituem uma garantia sólida da continuidade da campanha sociológica que tive a honra de iniciar. 12

 

No mesmo depoimento Bertha Lutz faz alusão à primeira organização eleitoral feminina, a Associação de Eleitoras Norte-rio-grandenses criada com o objetivo de “propiciar a educação cívica do eleitorado feminino, o preparo da mulher para a participação na vida pública e a colaboração prática e administrativa nas medidas de alcance social.”

Com a revolução de 30 e a consequente deposição de todos os governantes, Alzira Soriano destacou-se ao recusar, do Governo que se instalava, a oferta para se transformar em “Interventora Municipal”. Tornou-se, portanto, “a primeira mulher a ser defenestrada do Poder, com a perda do mandato ganho nas urnas...” (DN, 28.04.1996).

Anos mais tarde, em 1945, Alzira Soriano volta à vida pública, candidatando-se à   vereadora, tendo sido reeleita mais duas vezes consecutivas. Liderando a bancada da UDN, chegou à presidência da Câmara por mais de uma vez. A sua coerência passava também por gestos destemidos: conta-se que após a sua deposição, ao escutar de adversários insinuações depreciativas sobre o uso da força e do açoite, na sua gestão e, consequentemente na do governador Lamartine “o tempo da virola acabou!... Alzira Soriano esbofeteia o oponente e responde que “braço de mulher não tinha se acabado não”. E complementaríamos, que o seu exemplo também não. Alzira Teixeira Soriano motivou e encorajou mulheres, foi tema de estudo em escolas de outros países – sua filha Ivonilde conta que ela se correspondia até com estudantes franceses que ficaram impressionados com a sua  experiência – quebrou preconceito e, acima de qualquer diferença de gênero, deixou o exemplo de capacidade administrativa e  probidade na conduta política.

 

(*) Socióloga e pesquisadora

Síntese de um texto original publicado no Jornal O GALO, Ano XII, No.3- março, 2000- Natal, RN