terça-feira, 16 de janeiro de 2024

 

Abandono e solidão

Padre João Medeiros Filho

Pode-se ler no primeiro livro da Sagrada Escritura a seguinte recomendação: “Não é bom para o homem viver só” (Gn 2, 18). A solidão é dolorosa, leva à depressão e até ao suicídio. Cresce como um dos grandes males da sociedade hodierna. Em muitos condomínios, os moradores são conhecidos pelo número da unidade habitacional e não pelo nome. Por vezes, não se dão conta do que acontece a seu redor. Isso tudo resulta numa solidão povoada. O ser humano é ontologicamente relacional, necessitando de interação. A vida solitária poderá ser um atalho para a morte. O governo britânico criou o Ministério da Solidão. Considerou necessário existir um órgão para cuidar desse problema e dos efeitos desse mal oculto e silencioso. As maiores vítimas são os idosos, marginalizados pela cadeia produtiva e cuja beleza murchou. São indivíduos com atividades físicas e energias cada vez mais limitadas. Muitos não têm a quem pedir socorro, quando sentem o abismo da depressão se abrir sob seus pés. Este segmento se avoluma nas sociedades consideradas modernas e desenvolvidas.

Os idosos de hoje são órfãos de filhos vivos, esquecidos pelos familiares. Por vezes, seus descendentes moram longe com dificuldades para visitá-los. Em certos casos, os pais podem atrapalhar seus sonhos ou planos de lazer e consumo. Muitos não desejam velhos, dificultando seus fins de semana, férias, passeios, festas etc. E o idoso fica em casa, não raro, pequena e de poucos recursos. Onde estão os amigos do ancião? Doentes ou mortos, em boa parte.

As aposentadorias são exíguas, mal dão para as necessidades básicas. Com a idade verifica-se a progressão das limitações e mazelas. O aumento das despesas: plano de saúde, internações, medicamentos, cuidadores e outros profissionais consome suas fontes de renda. A alimentação torna-se mais onerosa, em razão de restrições alimentares. Os filhos ajudam? Alguns, provavelmente. Todavia, nem sempre com a generosidade almejada. Têm outras prioridades: trocar de carro, investir na decoração do lar, viagens nacionais e internacionais (como levar as crianças a Disney ou alhures), participar de eventos sociais etc. E assim, o declínio da vida de inúmeros idosos é marcado por isolamento, demência, em companhia de um cuidador desconhecido. A solidão aumenta com a diminuição das forças, a dependência, o desaparecimento dos círculos mais próximos de amizade. Atualmente, há também o agravante da violência e insegurança urbana, impedindo que haja um maior contato, deixando os idosos praticamente numa prisão domiciliar. A sociedade moderna tem esquecido o ensinamento bíblico: “Diante de uma cabeça branca te levantarás. Honrarás a presença do ancião” (Lv 19, 32).

Alguns se apegam a animais. Quando morre o companheiro de plumas ou patas, a dor é semelhante à perda de um parente. O confinamento vai aumentando. O solitário não tem com quem partilhar experiências, sentimentos, ideias e recordações de momentos agradáveis que trazem alegrias. Sente-se descartado por uma sociedade, em que predominam o utilitarismo e o egoísmo. Há famílias que progressivamente abandonam seus idosos, não lhes preparando um lugar digno. Leva uma vida em meio a pessoas que ignoram a sua existência. Um amigo nordestino, que vivia no Rio de Janeiro e amava a cidade, comunicou-me que estava voltando para a terra natal. Chegou à conclusão de que se morresse lá, só iriam perceber seu falecimento, vários dias depois, devido ao odor.

No Brasil contemporâneo, onde há uma pletora de ministérios, carece a existência de um órgão especial, voltado para os idosos e solitários. Fala-se tanto em políticas públicas, mas inexistem linhas de ação para cuidar deles com dignidade. É preciso encontrar meios para que uma faixa significativa da população não se sinta à margem da existência, empurrada inexoravelmente para a desmotivação do viver e consequentemente para a morte. Na medida em que se aprende a anular o exílio do próximo, a vida tornar-se-á mais humana. Solidária – e não solitária – deve ser a pessoa. Isso significa ter empatia pela dor e tristeza de outrem. Vale lembrar o salmista: “Mesmo na velhice, no declinar da vida, não me abandones, ó Deus” (Sl 71/70, 18).

domingo, 14 de janeiro de 2024

 NO LIMIAR DA PAIXÃO E RESSURREIÇÃO

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Tudo parte de um questionamento do amigo jornalista Paulo Tarcísio Cavalcanti, certa vez, que reflete, com exatidão a dúvida inquietante de milhões de pessoas no mundo, quer sejam religiosas ou agnósticas. Suas reflexões constituem um verdadeiro questionário ao qual me proponho responder como posso, nesse limiar do ano novo.

A primeira é se o Filho de Deus voltará, como asseguram as Escrituras. O próprio Jesus foi categórico: “Não vos deixarei órfãos. Eu voltarei para vós” (João 14,18). Não definiu a forma nem o tempo de sua volta. Está presente cada dia no testemunho e na fé de cristãos convictos, na energia cósmica de sua palavra. Há uma forma espiritual, mística e amorosa de sua presença naquele que crer. Jesus retornando ao mundo continuará afirmando os mesmos valores eternos e imperecíveis: justiça, paz, misericórdia, caridade, o perdão e o amor.

Indaga, refletidamente, se Jesus escolherá local para residir como se a sua vinda fosse biológica ou fisiológica, fato que já se cumpriu no Segundo Testamento por permissão do Pai, segundo inúmeras profecias. “Eis que estarei convosco até a consumação dos séculos”, disse o próprio Messias. Essa forma de renascer diuturnamente no coração dos mortais já resume um pressuposto de sua mensagem aos seres humanos do século 21, porque Ele é Espírito e não carne como o foi para expiar os pecados da humanidade através da morte na cruz. Se o mundo da informática fala com veemência na presença virtual, nós temos em Cristo a presença espiritual e mística, ambas poderosas e fortes.

“Quem Jesus escolherá para segui-lo ou em que condições procederão os convidados?”. Da primeira vez Ele escolheu doze homens simples e iletrados, e com essa dúzia construiu o arcabouço de sua doutrina, unificada pela crença inabalável no Pai, no Filho e no Espírito Santo. Milhares morreram pela fé, ao longo do tempo. Se os potentados não o levaram a sério naquele tempo, posso afirmar que já são bilhões no mundo que pensam de forma diversa. Ora, o Filho de Deus conclamará todos que tiverem as mãos vazias e o coração pobre mas rico do Espírito Santo que inclina o homem para o Bem. Ninguém precisa ter diploma como se alude. Diploma é uma formalidade do mundo. E na atualidade, além de pessoas simples, humildes, pobres e de diferentes camadas, há também doutores em teologia, padres, pastores, obreiros de diversas matizes. A mensagem do Senhor não é meramente social mas de palavra e de vida. “Vim para que todos tenham a vida e vida em abundância” – João 10.10. Sobre os castigos a Ele impostos, devo dizer que a lógica de Deus não é a lógica dos homens. Cristo aceitou e enfrentou todos as felonias e dores humanas para cumprir o que já estava escrito desde os profetas Jeremias e Isaías. Ele próprio pregou o padecimento, a morte e a ressurreição. Seria enfadonho e não caberia citar as referências dos quatros evangelhos.

Jesus não anunciou a sua volta nas mesmas condições que veio ao mundo da primeira vez. Imolou-se em sacrifício, como forma emblemática, marcante, demarcadora perante a história da humanidade. Não regressará a terra para se submeter mais a nenhuma paixão. O que aconteceu com Ele foi um evento divino e não profano. Filme e novela sim, têm reprises. Aquele sacrifício foi único, indivisível, histórico e individual. Jesus Cristo nunca sentou no trono de Davi, nem de Salomão, portanto, denominá-lo Rei dos Judeus constituiu-se mais num deboche do império romano, depois, destruído pelos bárbaros. Sabemos que na modernidade a violência, a corrupção, a desobediência, a falta de solidariedade e o desamor ao próximo são as práticas que ainda o crucificam na cruz, diariamente. Lembre-se que o sacrifício daquele corpo, do Homem-Deus, foi fazer a vontade de Deus. Ele que era Deus, era vida. “Derramou um sangue espiritual, divino, dando de si Deus em si”, na maravilhosa síntese de Chiara Lubich no seu livro “O grito”.

 

(*) Escritor.