sexta-feira, 9 de julho de 2010


ADILSON GURGEL, A UTOPIA POSSÍVEL

Colagem JOSÉ CARLOS

Desde a mais remota antiguidade, os pensadores se debatem num dilema até hoje infindável,
que diz respeito às formulações ideais postas diante da probabilidade de execução, algo bem
próximo da singela proposição: isto é maravilhoso, é o ideal, mas, é possível, pode ser exeqüível?
Sobretudo os enunciados políticos submetidos aos postulados éticos e morais. Nessa linha,
Platão e Thomas Morus sobressaíram como teóricos idealistas, contribuintes para a equação de
um mundo igualitário, justo, por conseguinte. Mas essa linha de pensamento se ajusta ao pragmatismo
requerido pelo contexto contemporâneo, ou vão ilustrar o currículo dos acadêmicos como
referencial utópico, sem qualquer possibilidade de aplicação positiva? Nessa linha de raciocínio,
inserimos o exemplo do eminentíssimo amigo Adilson Gurgel de Castro como o idealista que vem
dando certo. Uma ponte entre o utópico e o real exeqüível.
“Não sou utópico, sou idealista prático” - Gandhi

Adilson Gurgel de Castro é uma trindade que se singularizou tornando-se apenas Adilson, como os grandes homens: Saramago, Gandhi, Chico. Ninguém resiste ao apelo da memória quando o seu nome é pronunciado. Ou desconhece de quem se trata. Pois é assim o meu amigo, um ícone de um só nome, pronunciado em uníssono, como unanimidade irretocável, insuspeitada, louvada e amada.
Ninguém lhe resiste. Tampouco ele resiste aos apelos alheios, é o “fantástico doutor sim”, um que tem a compulsão de conceder, apoiar, emprestar solidariedade, doar-se, fraterno e solícito, aos seus amigos. Sobretudo aos carentes de qualquer sorte avara. É bom por natureza, sem afetação, nem artifícios políticos. É porque é. Porque nasceu assim. Pau que nasce linheiro, não tem jeito, morre linheiro.
E porque é de boa semente, gene selecionada, germinação assistida de perto pelo velho Aristides, seu pai e herói, um modelo de bom tamanho.
Eis porque o confundem: a bondade e a ingenuidade são dadas como xifópagas e ele o seria. Um ledo engano. Assim como ser bom é ser “besta”, crédulo, manipulável. Outro engano. Já vi Adilson possuidor de uma ira justa, inconformado, indignado, irredutível, inflexível. Seu limite é a ética, os princípios, a decência. Portanto, não o confundam, podem até deixá-lo assim com o trivial, que não o incomoda, nunca com o essencial.
Para ele a bondade começa quando se é tolerante, compreensivo e solidário com as aflições alheias. E a ação caridosa, assim entendida, tem curso quando alguém torna possível o pleito do necessitado. Daí porque sempre diz “sim” e só depois investiga a possibilidade do preito. É desse modo que anima os outros, que alimenta a fé dos necessitados. E também porque vive atarefado, sem tempo para si mesmo, empenhado no atendimento das solicitações que lhe foram encaminhadas.
Ser bom, para ele, é acreditar na natureza humana, é ter caridade cristã, reconhecendo em cada semelhante um irmão, filho do mesmo Pai. Aproximar-se da criatura sempre pelo lado esquerdo, se esta não for canhota nem ambidestra, acostando-se à sua sombra. É fácil aproximar-se da luz, colhendo luminosidade para si mesmo. Difícil é achegar-se às sombras.
Rezam as crônicas que certa vez perguntaram a um sufi onde gostaria de reencarnar. “No inferno” foi a sua resposta. E esclareceu: “é lá onde precisam de mim”.
As libélulas, as borboletas, os vagalumes e os pássaros volteiam ao seu redor, que nem Francisco, o pobre de Deus. Mas também os cavalos do cão, os mangangás, os marimbondos e as abelhas. Até gaviões predadores. Não importa a companhia, porque ele é capaz de conviver com o demônio e não se perverter: possui o epistema existencial, como cristão convicto.

Conheci-o no final da década de setenta. Pedro Avelino Neto, então parceiro de escritório de advocacia, falou-me de um jovem e brilhante especialista em Direito Tributário, recentemente retornado de Santa Catarina, onde concluíra o mestrado. E cogitava convidá-lo para atender a essa demanda no nosso escritório. Infelizmente chegou tarde. Mas ficou a referencia.
Depois, recebi sugestão de alguns amigos para convidá-lo a assumir a posição de Pró-Reitor Substituto de Extensão. Nem ponderei e impulsivamente, menos pelos pedidos e mais por intuição, fiz o convite. Pediu-me para pensar e, alguns dias depois, confirmou a aceitação.
Sempre gabei a minha percepção extra-sensorial, a minha capacidade de avaliação intuitiva. Mas, no caso de Adilson, permitam-me, excedi esse dom. Foi, de fato, um segundo Pró-Reitor, porque não era substituto, era co-titular do órgão. Dedicado, criativo, produtivo, entusiasta. Graças a ele, conseguimos modelar uma função acadêmica ainda difusa e tímida, que vagava entre o programa de estágio e a cultura acadêmica. Ousamos ir além, estabelecendo pontes entre a Academia e a comunidade.
Tanto fizemos que a Pró-Reitoria de Extensão da UFRN, num encontro de titulares desta pasta, do norte e nordeste do país, recebeu a moção unânime de “modelar”. Tivemos a ousadia de realizar a primeira mostra de ciência & tecnologia do Rn: A I Feira de Aplicações Científicas e Tecnológicas da UFRN, que contou com a presença, na sua abertura, do próprio Ministro da Educação, Rubem Ludwig.
Editamos o maior número de teses, dissertações e monografias de docentes e discentes, dentre todas as universidades brasileiras.
Intermediamos a produção científica da UFRN para atendimento às carências da comunidade, tal como fizemos em Santa Cruz, com a instalação de uma Estação de Dessalinização de Água Salobra, só para citar como exemplo.
Revitalizamos a memória cultural do RN, com um programa voltado para as suas tradições, no campo da dança, do cordel e da reedição de obras clássicas de autores potiguares. Apoiamos a iniciativa da TVU, proposta por Carlos Lira, do programa Memória Viva, nos dois segmentos – o televisivo e a editoração de obras dos entrevistados.
E demos seguimento aos eventos de vanguarda, em contraponto ao passadismo do projeto memória. E por aí seguimos...
Sem o concurso de Adilson, nada disso teria sido possível. Sobretudo, sem a confiança recíproca e absoluta identidade de propósitos.
Fiz-me seu amigo e de Ana Cristina, sua parceira, uma mulher que dignificava o marido e era por ele dignificada. Comemoramos a minha nomeação para Reitor da UFRN, en petit comitê, na minha casa. E juntos choramos a “puxada” do tapete vermelho pela oligarquia política, com o desfazimento do ato.
Lutamos juntos pela eleição de Jaime Calado para a presidência da AFURN, de Garibaldi Alves para Prefeito e de Geraldo Melo, para governador do Estado.
Demos continuidade ao projeto de ocupação de espaço na UFRN, com a eleição de Adilson, sucessivamente, para chefe do departamento de direito público, Diretor do Centro de Ciências Sociais Aplicadas e pela Reitoria da UFRN, perdendo exatamente esta última, decisiva para a consolidação do nosso projeto.
Porque tínhamos um projeto para a Universidade, tão acalentado e acarinhado que a única ambição que persegui foi a de ser Reitor da UFRN. Se me tivessem oferecido a governança do Estado, ou mesmo a Presidência da República, as teria rejeitado. Vinte e quatro horas dedicadas à Universidade era pouco. Urdia sonhos, consumia sábados, domingos e feriados. Vivia em trânsito pelos campi avançados...
Adilson incorporou esse sonho e se propôs a dar-lhe continuidade, estando eu fora do processo. Infelizmente, inviabilizou-se, também o projeto do meu amigo, que era nosso.
Nesse ponto, cabe uma dolorosa reflexão, enviesando a indignação de Rui Barbosa, na Oração aos Moços: Qual o segredo do sucesso? Quem o obtém – o sábio ou o “sabido”? Na política partidária, já o sabemos. E na vida de relações? No serviço público? Por que se costuma dizer que os honestos não dão certo?
Já me referi ao caso que passo a relatar, mas como é de natureza recorrente em situações que tais, vou novamente revisitá-lo.
Na primeira reunião do “staff” de um governador recém-eleito, em que se discutia o plano de metas de execução imediata, atendendo ao merchandising dos noventa dias de início de governo, que fixaria a própria dinâmica e perfil da nova administração, um dos consultores do governador, em resposta a uma questão ética relativa aos temas “assistencialismo” e “desenvolvimentismo”, ponderou que essas questões fossem afastadas da estratégia de governo, porque a população não tinha o menor interesse em avaliá-las e tais preocupações, de fato, constituíam entulho, um estorvo para a ação administrativa.
Meu pai, de sabenças muitas e variadas disse-me certa vez, entre o amargo e o querendo estar errado, que o homem que era honesto e aparentava ser honesto como queria Cícero da mulher de César, jamais teria êxito nas disputas eleitorais e embates republicanos. Lembrava que a tese consagrada era aquela que dava o bom e o honesto como o ingênuo, inabilitado, portanto, para a condução das manobras, evasivas e malícias da política militante. Não lograria sequer ser sobrevivente.
Cortez Pereira que o diga – tantos sonhos, tanta criatividade, tantos bons propósitos, tanto amor à sua terra...
Mas, não se pense que desistimos de Adilson, um dos mais expressivos quadros dessa escola da integridade moral e da honestidade de princípios e de critérios. Do querer fazer com regras e limites prefixados pela ética.
Conspiramos na campanha pelas “Diretas Já” com o objetivo de elegê-lo presidente da OAB. Deu Armando Holanda, um quadro da mesma linhagem de Adilson, que mereceu a nossa concordância. E depois veio Adilson. E depois veio Adilson no Conselho Federal da OAB, honrando o estado com a indicação para a Comissão Nacional do Ensino Jurídico e agora no Conselho Nacional do Ministério Público.
E mais Adilson no ensino jurídico, um dos mais talentosos e proficientes docentes das nossas academias, exemplo de dedicação à cátedra, cuidando do curso de direito da Facex, onde mereceu o patronato do núcleo de prática forense, que leva o seu nome.
Mas ainda é pouco, muito pouco. Adilson Gurgel é subestimado e subaproveitado. Num país de carências profundas de valores intelectuais e morais, não se pode desperdiçar tais recursos – pouco encontradiços.
Irresistível o recurso da busca de um molde, um cacoete literário, talvez. Mas é impossível não compará-lo a Sir Thomas Moore – Thomas Morus – diplomata, escritor, advogado e homem de leis, que ocupou vários cargos públicos, e em especial, de 1529 a 1532, o cargo de "Lord Chancellor" (Chanceler do Reino) do poderoso Império Britânico. Um doce e dócil cavalheiro inglês que, inesperadamente, opôs-se ao casamento de Henrique VIII com Ana Bolena...por questões de princípios.
Não obstante o poder que detinha, e a característica de lealdade e de alinhamento automático com os desejos do Rei, tidos e havidos como expressões das próprias razões do estado no sistema absolutista, nada o impediu de insurgir-se contra a violação aos preceitos morais que defendia, pondo o seu veto ao “fato do príncipe”.
Morus foi amigo e teve em Erasmo, dito de Roterdam, um confidente. O pensador flamengo, outra reserva valiosa dos valores éticos, foi editor da “Utopia” de Morus, e revelou, em uma das cartas endereçadas a ele pelo lorde inglês, que o amigo se enfastiava da vida da corte e desprezava as mesuras e honrarias. Embora as reconhecesse parte da “miranda” do poder que exercia. Era um simples.
Simplicidade é também característica de Adilson, alguém que não se entrega a pompas nem circunstâncias, não é poseur nem solene, sequer se leva a tanta importância, e por isso é escolhido como arrimo, porque é igual a todos, não é mais ou menos que ninguém, é de carne e osso, falível e defeituoso como todo mundo. Nunca se alçou a condoreiro, nem senhor das terras altas. Sempre foi uma espécie da planície, lhano, direto, certeiro nas suas posições.
Lembra-me, também, o repto de Calderón de La Barca: “Ao rei tudo, menos a honra”. Frase que soou candente na voz de um indignado Djalma Marinho, insurgindo-se contra a vassalagem, o arbítrio e a injustiça dos anos de chumbo e pólvora do golpe de 64.
Por isso que não se deve confundir o modo cordial, conciliador, suave, do meu amigo Adilson, com excessiva benevolência ou licenciosidade. Seu limite é bem sinalizado e quando é pressionado a atravessá-lo, estabelece-se uma questão de princípios e a sua doçura e espírito conciliador convertem-se em adagas mortais, o carvão é processado em diamante, e se defende atacando como o cavalheiro inglês.
É um colecionador de amigos, de gente que se aconchega para fruir da sombra acolhedora do jequitibá. Gente que precisa acreditar no ser humano, na virtude encarnada numa criatura de mortal, igual a todos. Pessoas que querem um “sim” depois de tantos “nãos”, numa longa e difícil jornada em busca de apoio.
O mais curioso é que Adilson não lidera, nunca teve essa pretensão. Nem chefia, segundo os cânones da técnica administrativa. Ele conduz pelo exemplo – é acreditado e essa condição o autoriza a pedir e a orientar. Se de fato exerce o comando, o faz pelo exemplo, nunca pela definição institucional ou a “phisique du rôle”. È um dos poucos casos que conheço de alguém que transfere por se transferir primeiro. Forma opinião, por ter formada opinião conscienciosa a partir da própria modelagem constitucional.
Insere-se entre aquelas figuras integrantes de um panteão de notáveis, que influenciam, com a sua conduta, os próprios líderes e formadores de opinião, uma baliza, um vetor, um farol, uma referência.
Uma esperança e um alento.
Assim é Adilson.
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PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado. Escritor. Advogado

domingo, 4 de julho de 2010


VER E ENXERGAR SÃO COISAS DIFERENTES


"Não vemos as coisas como elas são, mas como nós somos" Anaïs Nin


Confesso que já mantinha certa desconfiança, mas só tive a certeza de que havia aprendido muito pouco nesta longa jornada, desde o nascimento até o portal da velhice, quando a minha neta Isabela (Belinha), menina viva, cheia de interrogações e exclamações estonteantes, me perguntou com voz arrastada:
“Vovô, por que essa rosa vermelha não é azul?”
(Então, estávamos no “Jardim de Maria”, área do Reino da Quinta dos Pirilampos, devotada às flores mais destacadas, pela beleza e pelo aroma. Ali reinavam aquelas que mereceram de nós a preferência por suas qualidades e por isso as declaramos princesas: rosas, açucenas, jasmins, bugaris e algumas flores silvestres.)
Pensei numa infinidade de respostas recheadas de lógica ou em explicações baseadas no fenômeno ótico ou na botânica, imaginei uma resposta teológica, e até mesmo tive vontade de contar a estória de Monteiro Lobato, “O reformador da natureza”. Pensei em tudo o que um ser humano, em seu senso comum, teria cogitado naquelas circunstâncias.
Mas, contive a enxurrada das minhas sabenças, quando tive a percepção de que nenhuma das respostas atenderia à curiosidade de Belinha, porque ela era uma criança e dessas cheia de imaginação - por certo haveria de querer sempre mais do que a lógica simplória poderia lhe oferecer - e não seria eu a subverter esse privilégio que Deus lhe concedera, de pensar com os olhos (ou de ver com a alma).
No pouquíssimo tempo em que refleti sobre a orientação da pergunta e me assegurei do contexto adequado para a resposta, fui tomado por uma lembrança-relâmpago, que acendeu a memória da minha própria infância. Esse recurso não é nada incomum. Sempre retorno às minhas recordações infantis para compreender os jovens, assim como me valho do meu difícil aprendizado existencial, para entender os obstáculos enfrentados pelos recém- iniciados ou alheados da sabedoria.
Vi-me, então, diante do olhar tolerante, mas perplexo, do meu pai, avaliando a minha pergunta sobre “o quê sustentava o céu, e o que evitava que ele desabasse sobre a nossa cabeça”.
Lembro-me que naquele momento mágico, único, em que eu iria ter, talvez, a mais fantástica descoberta da minha curiosidade infantil, a minha ansiedade só era contida pela certeza de que receberia uma explicação que iria pacificar a minha imaginação.
Então, eu não ansiava por verdades, até mesmo porque as desconhecia, mas pelas revelações, pela decodificação mágica do fenômeno, pelo seu envolvimento com a fantasia, porque este era o meu universo. Contrariá-lo, contrapondo a ele os fatos desprovidos de imaginação, seria um desfloramento à tenra e fantasiosa natureza infantil.
(Como ocorreu quando a minha crença na existência de Papai Noel foi contestada por um realista amante da verdade, pai de um amigo de infância, que achou absurda a iniciativa de alguém estimular mentiras na mente de uma criança. Talvez por isso o seu filho nunca foi feliz. Até hoje é um desassossegado filho das sombras.)
Meu pai afagou o queixo com a mão esquerda, como se buscasse socorro num cavanhaque imaginário, vagou o olhar pelo horizonte e retornou ao nosso plano, transfigurado, pareceu-me. Era um mago ou um contador de estórias, daqueles com longas barbas brancas, confiáveis óculos de aros redondos com lentes incolores e um cajado entre as duas mãos.
“O céu, meu filho, é como uma peça de tecido especial que não tem começo nem fim, imenso, onde estão bordadas as nuvens, o sol, a lua...”
Como se adivinhasse a minha próxima pergunta, prosseguiu:
“Esse tecido tem pequenos furos, invisíveis para nós, por onde escorrem a chuva e o vento. Pois bem, acima desse imenso toldo, que é como se fosse a lona de um circo, há um gigante, mais forte do que milhares de Hércules reunidos num só, cujo único trabalho é segurar os fios que sustentam o céu.”
Ainda mais uma vez antecipando-se à pergunta inevitável, esclareceu:
“Esse gigante é incansável e imortal. Há milhões e milhões de anos que faz o seu serviço e o céu nunca caiu.”
“E por que os trovões, os relâmpagos, as estrelas cadentes, o arco-íris..?”
“O trovão é o som de um grande tambor, que é o modo como o gigante nos avisa de alguma tempestade. Os raios e os relâmpagos acontecem quando duas nuvens entram em choque, uma delas é afastada e chora. As chuvas são as lágrimas das nuvens. Quando um cometa arremete contra o toldo, este se rasga, e temos as tempestades. O arco-íris é um aviso desse gigante de que a lona foi costurada e está tudo bem.”
A cada uma das questões que eu lhe apresentava a imaginação do meu pai mais burilava as respostas e mais o meu encantamento crescia com elas. E, naturalmente, o fortalecimento da minha confiança, de que a abóbada celeste estava segura, entregue ao mais forte e vigilante dos heróis.
(Alguns anos depois, já adulto, descobri na revista em quadrinhos “Asterix” que o rei dos gauleses tinha a mesma preocupação que eu: que o céu desabasse sobre a sua cabeça.)
Abandonei a divagação e retornei à questão da rosa. E desejei que os “olhos” da imaginação de minha netinha enxergassem a nova roupagem que eu adquirira, apropriada para o momento: vesti-me com um manto azul claro, sedoso, e um comprido chapéu cônico cheio de estrelas sobre a cabeça.
Assim caracterizado, encarei a minha neta por trás dos óculos de lentes e aros ovais, rezando para que ocorresse o milagre de torná-los redondos, cofiei os fios brancos da minha própria barba, e respondi, com a voz um tanto embargada pelas recordações:
“Um anãozinho, Belinha, um anãozinho trapalhão e daltônico (expliquei o que significava a palavra) pinta as rosas de acordo com o seu humor – se está zangado, pinta de vermelho, se alegre, de amarelo, quando não sente nada e está sonolento, deixa-as brancas. Como ele confunde as cores por causa do defeito da vista, às vezes o resultado fica ao contrário do que queria...mas ele nem percebe.”
Arrematei:
“Você se lembra de “Alice no país das Maravilhas”, onde as rosas eram pintadas de vermelho para agradar á rainha?”
Ela confirmou.
“E Então! Você pode dar às rosas o colorido que você quiser, usando um pincel mágico, especial, que só você o vê.”
Ela, um tanto insegura quanto ao resultado, argumentou:
“E se as tintas não “pegarem”? Porque em “Alice” as flores eram pintadas com pincel de verdade, não eram, vovô?”
Nem pisquei.
“Aí você fecha os olhos, pensa na cor que você deseja e se afasta. Quando estiver bem longe, você abre os olhos. Elas ficarão gravadas na sua cabeça, como uma fotografia, e então, você poderá vê-la na cor que você escolheu. E tem mais uma mágica - só você poderá vê-la na cor escolhida”
Ela me olhou com uns olhinhos miúdos e maliciosos e sentenciou:
“Já sei! Todas as cores estão na minha cabeça, então a gente escolhe uma e manda um recado pros olhos dizendo para eles verem do jeito que a gente quer, não é?”
Confirmei, e ela se deu por satisfeita.
Alguns dias depois ela me telefonou dizendo que tinha inventado uma nova brincadeira. Quando ela não gostava de uma certa cor em qualquer objeto – e até em pessoas - ela mudava, fazendo do jeito que eu havia ensinado e que estava se divertindo muito.
Sempre vigilante, o meu querido irmão José fez-me refletir sobre o sentido e a percepção, o real e o intuitivo. E veio na companhia do clarividente Rubem Alves, capaz de enxergar na escuridão, como o fazia o poeta Jorge Luis Borges. Atrevo-me, portanto, a navegar entre abrolhos.
Por minha conta e risco, mas balizado pelos mestres, faço uma distinção entre ver e enxergar, cuja distinção é desestimulada pelos dicionários, mas, ao menos o Houaiss, embora sutilmente, esclarece que no enxergar há mais acuidade que o ver.
No entanto, tenho para mim que o primeiro vocábulo é o atributo do sentido da visão, o ato de distinguir as coisas pela forma, cor e luminosidade, no mundo de relações denominado por nós como real. O segundo consiste num ato de revelação, numa percepção que ultrapassa o simples ato de captar as imagens desse universo real – vê-se também com o pensamento, com a projeção da imaginação.
Enxergar é ver além da distinção imagética, é ver com a alma. E esse modo, mais perceptivo que sensitivo de decodificar o universo, é tão ou mais importante que simplesmente entrevê-lo pelo órgão da visão, sem qualquer arrebatamento.
Enxergar é ver com a imaginação, como o fizeram os pintores impressionistas e surrealistas, ou os fotógrafos e cinegrafistas que trabalham com efeitos especiais.
Por que? A resposta está numa nova pergunta; por que nos sentimos tão atraídos pelas imagens ilusionistas, pelas “sensações” que elas nos transmitem? Certamente porque há um processo de empatia entre elas e o nosso inconsciente. Algo que transcende à lógica.
Defendo que não há barreiras entre o ilusório e o real, senão aquelas criadas por nós mesmos, por medo, conveniência, desesperança ou cegueira. Não teríamos energia elétrica ou nuclear, telefone, cinema e televisão, computador e outras miraculosas “invenções” se não fosse o sonho dos criadores.
As teorias ditas científicas são, na verdade hipóteses criadas pela nossa imaginação a que alguém, um visionário, deu crédito e as converteu de energia em estado sutil, em massa, energia em estado condensado. Ou as manteve em estado natural – as ondas eletromagnéticas...
Às vezes, vê-se o universo que chamamos de real, sem forçar a imaginação para mais além, distinguindo-o nu e cru, sem nenhuma fantasia. Mas se alongarmos o olhar buscando a essência mágica das coisas, poderemos perceber, por exemplo, que o efeito produzido pelo reflexo da lua, numa poça d’água, não se resume à imagem espelhada, mas às cogitações e divagações que esse fenômeno nos desperta.
Por que não cogitar que a lua é vaidosa e que se distrai vendo-se refletida na poça. Cuidar para que ninguém pise na poça, para não ferir a lua, que se transporta para o espelho d’água... situar-se além do plano visível, alcançando uma outra dimensão, a imaginativa.
Por que? Porque não satisfaz ao apetite da nossa porção espiritual apenas o registro das descobertas para o conhecimento do consciente, mas para a satisfação da nossa alma, para nutrição da nossa sensibilidade.
É necessário cuidar de dois processos no nosso aprendizado existencial. O do conhecimento e o da sabedoria, sendo o primeiro a educação das habilidades e o segundo a educação das sensibilidades. Dessa divisão, conclui-se que o domínio da habilidade sem o concurso da sensibilidade é inócuo, porque conduz o ser humano ao automatismo, ao invés da criatividade, que é da sua natureza.
O universo é recriado todos os dias, e por isso atende à sua essência dinâmica, pela ação da imaginação, da inventividade humana, que tem efeito transformador. A evolução, portanto, é fruto da criatividade e não da repetição. Einstein percebeu essa verdade quando admitiu que a imaginação era mais importante que o conhecimento.
Faço, portanto, uma convocação. Vamos enxergar. Quando estivermos diante da beleza. Quando nos roubarem as cores do arco-íris. Quando nos oferecerem um cavalo de tróia carregado de cores escuras para invadir os nossos luminosos quintais de sonhos multicoloridos. Quando quiserem emudecer o canto dos passarinhos que buscam pouso na nossa alma. Quando nos negarem o pão do espírito e nos condenarem à única opção do pão de trigo para a nossa sobrevivência.
Quando formos levados pelas circunstâncias a enxotarmos o menino que se esconde no sótão da memória, para abrigar apenas o adulto e o velho, sem lembranças ou sem fantasias...
Que jamais sejamos como as pedras, que não mudam, nem se transformam – permanecem pedras pela eternidade, sem florescerem jamais. Se nossa humanidade insistir na transmutação e não encontrar o vegetal ou outra espécie mutante, e o destino da pedra seja-nos reservado, que nos convertamos pelo menos no limo ou no fungo que as recobre, para sermos o testemunho de vida que habita o ser inanimado, imóvel e insensível.
Pedro Simões – Escritor. Avô de belinha e filho de Percílio.