quarta-feira, 14 de setembro de 2022

 




FACE OCULTA

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Contemplo do alto a floresta de edifícios de Natal e me sinto soterrado nas fundações. Não consigo emergir à superfície de suas vaidades. A cidade virou feira de remarcações e os falsos valores estão arrematando caráter em banda de lata. Nunca a urbe dos reis magos sofreu tanto da coluna vertebral. Prefiro aquela pacata cidadela que não depositava caráter em conta bancária. Havia concórdia entre os cidadãos e amizade entre os vizinhos. Era o tempo em que a insônia provocada pela riqueza fazia emagrecer. Hoje, os sócios ocultos do erário público dormem com a justiça e celebram com a crônica social.

Dia passado, num escritório de advocacia assisti uma cena típica dos novos tempos. Ao telefone, um conhecido causídico homenageava o seu escritório revelando que recebia a visita de fulano de tal, político, médico e agora vivendo apenas da profissão. Era uma carta fora do baralho das riquezas emergentes. O obstetra aguardou curioso do outro lado da linha uma referência elogiosa mas não veio. O advogado desligou parecendo constrangido na fisionomia como se arrependido estivesse pela citação do visitante. Constrangimento. Ao lado, entendi que o médico passará a figurar como paciente da UTI dos novos lisos do Rio Grande do Norte. Virava estatística entre os decaídos. Assim é Natal, a cidade que mais negocia apartamentos no nordeste do País. Onde se conhece o preço de tudo e não se sabe o valor de nada. Muitos cobram comissão e não pagam dízimo a igreja mais próxima.

A difusa fluidez temporal da vida não comove o insensato que segrega o próximo e que não pensa na noite sem face e derradeira do ataúde. Outro dia foi a vez de um mequetrefe, assessor funcional de uma fundação estadual, que demonstrou sua vocação mórbida de bajulador e subserviente por dissimular e “resguardar” o seu chefe de contato com os que desejam dialogar sobre o serviço público. Deve viver numa jaula, limitado às imposições de uma vida miúda, repleta de frustrações. Outro aspecto digno de nota é o daqueles que, diante do infortúnio alheio, ancoram suas amarras na mais profunda indiferença. Amizade para eles virou interesse, esbulho, vantagem, lucro, contrato leonino, no qual é sempre beneficiário. Perderam a densidade moral, a identidade, a musculatura dos gestos e dos passos que fazem história.

Hoje, em nossa capital, ainda se fala sobre Zé Areia, Newton Navarro, Câmara Cascudo, Alberto Maranhão, Augusto Severo, Albimar Marinho e tantos outros nomes da boemia, da política, da literatura, da medicina, da advocacia, etc. Mas os atuais poderosos da elite social que impõem iniqüidades à mídia não serão lembrados amanhã porque nada fazem por Natal. Saqueiam-na. São os predadores de plantão, os negocistas.

Ante o espanto de uma Natal de alma dilacerada preciso recuperar minha auto-estima. Deduzo que a burguesia não fede. Abomináveis são as rugas de sua infinita vaidade e grave insensibilidade estampadas no rosto dos jornais. Enquanto isso, nós, cristãos imolados do “baile fiscal” continuaremos lavrando o nosso campo ensanguentado de acácias douradas dos jardins de Natal.

Para encerrar, após um chatérrimo fim de semana de longa travessia do horário eleitoral, lembrei-me que até agora as autoridades da saúde municipal, nada fizeram para enfrentar a invasão iminente dos mosquitos da dengue. Os infectologistas já alertaram sobre o perigo dos imóveis desocupados, mas fechados. Enquanto isso, do fundo eleitoral tem dinheiro pra tudo. Essa vida é mesmo um ziguezague de contradições. E por outro lado, os pobres gemem nos hospitais sob o peso da matéria maldosa do escárnio.

(*) Escritor.


segunda-feira, 12 de setembro de 2022

 

Reluz e é ouro
É difícil classificar a obra de William Shakespeare (1564-1616). Ela transcende época e lugar. Não pertence a qualquer religião, filosofia, ciência ou profissão, embora perpasse e instigue quase todas elas, aqui incluindo o que chamamos de “direito” (aliás, os elisabetanos da época do bardo eram fascinados por temas jurídicos). Isso é fato.
Todavia, embora o direito esteja presente em quase todas as peças de Shakespeare, a comédia “O Mercador de Veneza” (1597), ao lado de “Medida por Medida” (1604), é considerada uma das duas obras marcadamente “jurídicas” do maior escritor da língua inglesa. Isso é o que nos diz Daniel J. Kornstein, em “Kill All the Lawyers? Shakespeare’s Legal Appeal” (University of Nebraska Press, 2005), expressando o que parece ser um consenso entre os especialistas.
Quanto ao enredo de “O Mercador de Veneza”, assim o resume o site do British Council no Brasil (instituição à qual sempre serei grato): “Na peça, o nobre Bassânio está falido e precisa de dinheiro para viajar e conquistar Pórcia, uma rica e bela herdeira. A fim de ajudar o amigo, o comerciante Antônio pede um empréstimo a Shylock, um agiota judeu. Shylock aceita fazer o acordo, desde que os rapazes concordem com uma proposta insólita: se o pagamento não acontecer como combinado, Antônio terá de quitar a dívida com uma libra de carne do próprio corpo! É que Shylock vê nessa negociação a chance de se vingar de Antônio, que várias vezes o ofendera por sua origem judaica. Como o mercador não consegue honrar seu compromisso, o caso vai parar no tribunal. Para defender Antônio, Pórcia se disfarça de advogado e acaba encontrando uma solução surpreendente!”.
Desde o princípio da trama de “O Mercador de Veneza”, o direito aparece na sua multiplicidade de aspectos. Com a ajuda do “Cambridge Student Guide – Shakespeare – The Merchant of Venice” (por Robert Smith, Cambridge University Press, 2006), posso distinguir alguns deles: (i) a questão do recorrente preconceito para com o judeu Shylock, o que faz deste, modernamente, um misto de vilão e vítima e, quiçá, o grande protagonista da peça (e faz de Shakespeare, para alguns, um antissemita); (ii) o direito contratual, decorrente da qualidade de agiota/usurário de Shylock e exemplificado no contrato de mútuo/empréstimo entre este e Antônio com a inusitada forma de pagamento em uma libra de carne; (iii) a crítica à tradicional e vingativa visão de justiça “olho por olho, dente por dente”, imaginada por Shylock, em prol de uma justiça tendente à misericórdia e ao perdão; (iv) a forma como as profissões legais eram exercidas à época; (v) o tipo de “justiça” exercida in casu, que se afasta do direito comum de então (baseado em precedentes) em direção a uma decisão por equidade, a partir de um senso natural de justiça aplicado às especificações do caso (como se fazia na Corte de Chancelaria elisabetana de então); (vi) a cena de julgamento em si, o que faz da peça também um verdadeiro “courtroom drama”; (vii) e, no que posso considerar o clímax (geral e sobretudo jurídico) da peça, a lição de hermenêutica de Pórcia, que, embora atenta à “letra da lei” e aos “exatos termos” do contrato, chega a uma interpretação deste, em prol de Antônio e para a punição de Shylock, verdadeiramente revolucionária. E mais sobre o direito na estória eu não digo, seja para não causar spoiler, seja para não criar algum tipo de prejulgamento e mesmo para atiçar a curiosidade de vocês.
No mais, “O Mercador de Veneza” não é só direito. Com o apoio da minha edição anotada de “The Merchant of Venice” (editores Jonathan Morris e Robert Smith, Cambridge School Shakespeare Series, Cambridge University Press, 2008), posso relacionar inúmeros outros temas: comércio e usura, amor e ódio, pais e filhos, comédia e tragédia, aparência e realidade (“Nem tudo que reluz é ouro”, lembremos). E ainda ouso acrescentar: a história dos judeus, a bíblia, o papel das mulheres na sociedade, a amizade masculina e por aí vai.
Na verdade, Shakespeare joga luz sobre quase todos os aspectos da ambiência humana, da nossa relação com as instituições e as ideologias, com os outros seres e com a nossa própria psique. Shakespeare é ouro e reluz sobre todos nós. Isso também é fato!
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL