A H O R A D O S Q U E S A B E
M M O R R E R
Gileno Guanabara, do IHGRN
Horácio
Arturo Ferrer nos deixou, no dia 14 de dezembro passado, um dos últimos suspiros
sentimentais do tango, em Buenos Aires. Nascido em Montevideo, em junho de
1933, foi letrista e o parceiro mais importante do genial Astor Piazzolla. Dentre
as criações que compuseram estão a Balada
para un loco (1968), ou loca, como se tornou conhecida na Argentina, ou louco, na versão difundida no Brasil pela voz de Moacyr Franco, e a Balada para mí muerte (1971).
Compôs inúmeras outras canções para os álbuns En persona; Maria de Buenos Aires – Primeira parte; Maria de Buenos
Aires. Poeta e escritor, registrou as origens do tango, sem distinguir
diferenças entre o tango portenho e o uruguaio.
Residiu
na capital Buenos Aires, para onde se transferiu em 1960. Chamou a atenção de
Piazzolla, que o apelidou El Duende e lhe
convidou para fazer uma parceria: Isso
que você faz na poesia, eu faço com a música. Venha trabalhar comigo. O que Ferrer se propunha fazer como poeta,
letrista e inovador, era senão perverter
o tango. Aceitou a parceria que durou mais de quarenta anos, a mais
duradoura e fértil da história musical oriunda das zonas portuárias de Buenos
Aires. Costumava dizer que o tango era imortal, mesmo que não se lhe
acrescentasse uma nota, um passo de dança, nem mais o acompanhamento de um
bandoneón. Equiparava-o em importância ao jazz ou ao flamenco.
A
partir dessa parceria, jamais o tango argentino seria o mesmo, difundido sem
fronteiras, ao que Jorge Luis Borges nominava essa forma de caminhar pela vida. Conhecedores e sócios na leitura dos
clássicos, os parceiros encartaram melhor do que os demais as transformações do
tempo, sem que o tango deixasse de ser da milonga e da nostalgia. Guardavam
semelhanças no jeito de viver as emoções. Igual ao parceiro, Ferrer era boêmio,
notívago e, em especial, demonstrava sensibilidade para com as artes plásticas.
Trabalhavam até quando o sol se punha, numa jornada de mais de doze horas por
dia, quando então juntos davam vazão ao prazer etílico, afinal ninguém é de
ferro.
Ferrer
considerava a Balada para un loco o
seu maior sucesso, cuja poética dizia ter influências do cubismo e do
surrealismo em voga ao final dos anos de 1960, como também tinha o apelo ao
visual que visualizava nos versos do poeta espanhol Garcia Lorca. A Balada estreou no Luna Park, centro de
Buenos Aires, no encerramento do Festival Ibero-americano de Dança e Canção, ocorrido
no ano de 1969.
Segundo
Ferrer revelou, numa pausa durante a montagem da ópera-tango Maria de Buenos Aires, a dupla foi
assistir ao filme Le Roi de Coeur (O
Rei de Coração), de Fillippe de Broca (1966). A fita trata de um soldado
britânico (Alan Bates) que se refugia num vilarejo da França, após o fim da Primeira
Grande Guerra. Lá estavam liberados os loucos do manicômio da cidade: o soldado viu que os loucos tinham um
enfoque da vida melhor que aqueles que viviam fora do manicômio. Eis a
inspiração para a Balada para un loco.
Ao afinar o concerto, como se estivessem em transe, num orgasmo alucinante, um fazia
a leitura teatral do seu poema, enquanto o outro fazia e refazia os reparos da
pauta musical, para enfim concluirem a melodia: temos um míssil em nossas mãos, disparou um para o outro.
Na
primeira apresentação da Balada para un
loco, a interprete Amelita
Baltar, a primeira esposa de Ferrer, foi tragada pela emoção da plateia que lhe
hostilizava. Começou a declamar os versos: Las
tardecitas de Buenos Aires tienen esse que sé yo, viste? salgo de casa por Arenales,
lo de siempre en la calle y en mí, cuando de repente... O público foi-se
tomando de profunda reverência e de pé passou a aplaudi-la até o final da
apresentação. Amelita de tanto forçar a respiração, enquanto cantava, rompeu o
vestido na parte de traz, tendo de ausentar-se do palco em marcha-ré, para
chegar na coxia. Embora não tenha granjeado a vitória perante o juri popular do
Festival, - de que o poetinha Vinicius de Morais era um dos jurados - a Balada vendeu 200 mil cópias, sucesso
imediato na semana que sucedeu a festa.
Horacio
Ferrer residiu no apartamento de Piazzolla, na Avenida Libertador e, com a morte
do seu parceiro, em 1992, passou a ocupar um dos apartamentos do Hotel Alvear,
no decaído centro boêmio de Buenos Aires, onde faleceu. Enquanto crescia a sua popularidade,
ao final da segunda metade do século, assistiu o crescimento da hegemonia política
do peronismo. Faz sentido o diversionismo da temática musical do tango, extravasando
o sentimentalismo imposto às massas obnubiladas, ao tempo em que se consolidava
o mito da la Dama de la Esperanza, La jefa Espiritual de la Nación, em que pontificava
Evita, a saldo do presidente Peron, na ação deletéria de
controle do país. A par da difusão radiofônica
dos efeitos vocais inebriantes de um Carlos Gardel, nada mais longevo do que a
criação poética/melódica de Piazzolla e Ferrer, para sublimar as dores do
coração sofrido, enquanto o peronismo se consolidava no poder político.
Na
vida atribulada de boêmio, compositor, cantor e poeta/letrista, Horacio Arturo Ferrer
antecipou a sua legião de admiradores o sentimento premonitório de sua morte. Buenos
Aires querida, a sua segunda pátria, dera curso ao seu talento, onde galgou o
prestígio popular de suas composições. Foi lá, entre os portuários enamorados
que caminhavam pela vida que, apesar dos pesares, no ano de 1971, compôs com
Piazzolla a Balada para mí muerte. Há
na canção um destino imanente, uma predeterminação de seu passamento ocorrer em
Buenos Aires, naquela rua e no momento em que assistia decair a boemia,
perenizadas as lembranças das casas de abajur lilás, a poesia, o tabaco e o
tango que lhe fizeram feliz a si a aos outros, por toda a vida. Saber morrer na
hora certa, em que morrem consigo as melhores tradições, no apagar do verso de
quem soube antecipar: Moriré em Buenos Aires,
será de madrugada, guardaré mansamente las cosas de vivir,/ mi pequeña poesia
de adiosas y de balas, mí tabaco, mí tango, mí peñado de esplin. ... /Moriré en
Buenos Aires, será de madrugada,/ que es la hora en que mueren los que saben
morir./ Flotará en mí silencio la mufa perfumada/ de aquel verso que nunca yo
te supe decir.