RIO - Falou em Miltinho, boa parte dos que o conhecem
imediatamente lembrará da “Mulher de trinta”, o seu grande sucesso,
lançado em 1958. Foi a música que transformou aquele crooner cheio de balanço, que batia ponto na boate carioca Drink, num dos cantores mais conhecidos do país.
— A minha mulher de trinta hoje está com noventa! — brinca
Miltinho, de 85 anos, há 60 casado com Odilla. — Nós nos conhecemos
jovens, no Ateneu São Luiz, no Catete, e logo começamos a namorar. O pai
dela jurou me matar, mas depois virou meu amigo.
Histórias de um astro que volta a brilhar com a reedição dos
LPs de seu período de maior sucesso: a primeira metade dos anos 1960,
quando chegou a lançar três discos num ano. Eles estão em duas caixas,
editadas pelo selo Discobertas, do produtor Marcelo Fróes. A primeira
junta “Um novo astro” (1960), “O diploma do astro” (1960), “Miltinho”
(1961), “Poema do adeus” (1961), “Miltinho é samba” (1962) e “Poema do
olhar” (1962). O “Vol. 2” traz “Os grandes sucessos de Miltinho” (1962),
“Eu... Miltinho” (1963), “Canção do nosso amor” (1963), “Bossa &
balanço” (1964), “Poema do fim” (1965) e “Miltinho ao vivo” (1965).
A voz ao telefone ainda é vibrante, embora entrecortada por
eventual falta de ar. Depois de um enfarto, o cantor descobriu ter um
enfisema pulmonar.
— Eu não fumava tanto, não em quantidade para ter enfisema —
reclama ele, que parou com o cigarro há cerca de cinco anos, mesma
época em que fez seu último show, em comemoração ao aniversário de 80
anos, na Sala Baden Powell, ao lado de Doris Monteiro, Pery Ribeiro e
Helena de Lima. — Hoje, vou empurrando com a barriga.
Repertório de ouro
As melhores lembranças daquela primeira metade de anos 1960,
Miltinho deve ao repertório dos seus discos. E aos compositores, como
Luiz Antônio, autor, sozinho, de alguns dos grandes sucessos reunidos na
caixa. Além de “Mulher de trinta”, ele fez “Menina moça”, “Ri”, “Poema
das mãos” e a favorita do cantor, “Eu e o Rio” (“A melodia mais linda
que alguém já fez, uma beleza de letra”, derrete-se ele).
— O Luiz Antônio era coronel do Exército, professor de
armamento e frequentador do Drink — recorda-se Miltinho. — Ele não tinha
nada a ver com a música, tocava bem era um copo de uísque. Foi ele que
me ensinou a beber. Uma pena o Luiz ter me abandonado (o compositor morreu em 1966), se não a gente estaria gravando até hoje.
Luiz Antônio pode ter sido o responsável pelas canções que
Miltinho, com seu jeito diferente, balançado, de cantar samba,
transformou em hits. Mas ele disputou a voz do amigo com outros grandes
nomes da época, como Ataulfo Alves (“Mulata assanhada”), Haroldo Barbosa
e Luís Reis (“Palhaçada”, “Só vou de mulher”), Evaldo Gouveia e Jair
Amorim (“Serenata da chuva”, “Samba sem pim pom”), Miguel Gustavo
(“Samba do crioulo”) e João Roberto Kelly, autor da ferina “Só vou de
balanço” (“Nada de twist / de twist e de chá-chá-chá / só vou de balanço
/ só vou de balanço / Vamos balançar”). Canções líricas, espirituosas,
que embalaram muitos romances e as pistas de dança.
Publicidade
— Eu tinha esse pessoal muito bom, que não volta mais. O
tempo anda para a frente. Hoje em dia não se faz mais nada, aquela turma
da antiga acabou — lamenta Miltinho. — As gravadoras viviam cheias de
autores, eles me procuravam, produziam para mim.
Conformado, o cantor conta que o sucesso só não lhe trouxe dinheiro.
— Mas isso não me importa, sempre tive meu trabalho no
Ministério da Fazenda, pelo qual me aposentei. Aqueles foram discos
feitos com cuidado, hoje em dia é tudo feito para vender. Mas não é
inveja, não. Eu fiz o meu, deu certo, me sinto honrado por ser um cantor
de samba — diz Miltinho, para quem “o segredo de um bom samba é
dissertar sobre um tema que atinja diretamente o coração do povo, o que
não é fácil”. — Mas o segredo mesmo é ser sambista, o que eu sou com
muita honra!
Pandeiro no Natal
Carioca, Miltinho nasceu em Botafogo, na Rua Dezenove de
Fevereiro. Seus pais nada tinham a ver com música: um contador geral da
República e uma professora.
— Eles esperavam que eu fosse um advogado, um médico, algo
assim — conta o cantor, que aos 5 anos pediu de Natal um pandeiro, para
surpresa da família. — Peguei e saí tocando. Sou um ritmista feito por
Deus!
Com seu pandeiro, Miltinho integrou os grupos Cancioneiros
do Ar (que existiu no fim dos anos 1930 na Rua Correia Dutra, no
Catete), Namorados da Lua (dirigido pelo cantor Lúcio Alves, sucesso nas
rádios e nos cassinos), Anjos do Inferno (que o levou ao México, onde
viveu alguns anos) e Quatro Ases e um Coringa (“O Coringa era eu”,
conta). Já como cantor, foi trabalhar no Drink, com Djalma Ferreira,
onde conviveu com músicos que acabariam se tornando famosos, como o
organista Ed Lincoln.
— O Djalma não o deixava aparecer muito, porque quando o Ed
tocava, dava um banho — confidencia Miltinho, que foi grande amigo de um
mito do samba, Ciro Monteiro. — Aquele era um sambista! O Ciro cantava
no tempo, quadradinho. Não tinha bossa, mas cantava bonito.
Em qualquer entrevista, não dá para evitar a questão da
bossa muito peculiar do cantor. De onde vem isso? Miltinho tem na ponta
da língua a resposta: “Normalmente, os cantores vão na cabeça da nota.
No meu caso, a harmonia vai na frente e eu canto dois tempos atrás.”
— Com pandeirista, eu tinha que tocar atrás do tempo. E aí
comecei a cantar. A Elis cantava dois tempos na frente, adiantada. É
mais difícil, porque, se ela errasse, jogava todo mundo no chão — revela
o cantor. — O Jamelão tinha raiva de mim, porque não sabia dividir como
eu!
Publicidade
Empenhado em recuperar as discografias das grandes vozes
masculinas do Brasil (já fez caixas com Cauby Peixoto, Pery Ribeiro,
Agnaldo Timóteo e Moreira da Silva), o produtor Marcelo Fróes fala da
emoção de reeditar Miltinho.
— A princípio, ele temia que eu fosse fazer mais uma
compilação de sua obra. Ficou surpreso quando informei que reeditaríamos
os álbuns tal qual eles eram, e então autorizou a reedição. Já foi
emocionante ouvir sua voz ao telefone, ela não mudou nada. Espero
encontrá-lo para entregar os CDs em breve.
— Graças a Deus, tive uma vida bem delineada — festeja o
cantor, que gravou pela última vez em 2006, no CD e DVD “Acústico MTV 2 —
Gafieira”, de Zeca Pagodinho.