sábado, 9 de setembro de 2023

 NOSTALGIAS

 

Valério Mesquita

mesquita.valerio@gmail.com

 

Vivo o desconforto e a nostalgia de mim mesmo ao me deparar com o sonho dos meus vinte anos que a idade madura não confirmou. Sinto-me disperso, irrealizado, quando retorno às minhas origens telúricas. A meta de trazer o passado ao presente, reconstruí-lo pela palavra e pensamento a fim de reconquistar a minha autoestima, parece-me uma tarefa hercúlea porque constato que o personagem não sou eu mas, sobretudo, o tempo. Deduzo que, precisaria recriar os fatos e renascer as pessoas. Verifico que sou o resultado de todas as convivências e acontecimentos afins do passado. Por isso o vácuo e a irritação me arrastam ao entendimento inconcluso de que tudo foi ilusão e fantasia, ou infecção sentimental.

Mas, o patrimônio existencial da terceira idade, onde a memória olfativa, a auditiva e, principalmente, a visual, procuram restituir-me o universo perdido das fases inaugurais da vida. Aquela lua cheia, por exemplo, vista do cais do rio Jundiaí em Macaíba, como se estivesse pendurada por fios invisíveis, atrás dos coqueiros e eucaliptos, infundia-me na adolescência negro mistério do tempo da colonização dos escravos, índios e colonos, de escuridão e medo, como se as fases da lua chegassem naquele tempo por édito imperial. Como me perco na contemplação do Solar do Ferreiro Torto e os seus sortilégios de poder, carne, cobiça e paixão. E a descortinação surpreendente do Solar dos Guarapes. Quantas perguntas insaciadas não existem sobre o que ocorreu ali? Os seus fantasmas que subiam e desciam a colina sob a batuta do senhor de engenho numa cosmovisão ora polêmica, ora lírica, dentro do abismo da memória? “Tu não mudas o mundo. Mas o mundo te muda”. Talvez essa frase de Otto Lara Rezende explique e me convença que o futuro nada tenha a ver comigo, porque o passado está mais presente em mim do que o próprio presente. Em cada rua onde passo em minha terra revisito os mortos na lembrança tentando reconstituir os fatos com os quais dividi o tempo. Adquiri o hábito de rezar por quase todos eles, todas as noites. Faço-os prolongar no meu convívio pela relembrança. Para mim o chão dos antepassados é sagrado, mesmo que estejam sepultados nele resquícios enferrujados e rangentes de um antigo fausto. Mesmo debilitada pela decadência física, da feição das caras e das coisas, o que mais me dói nele é decadência das mentalidades e dos antigos costumes, como se fosse hoje um porão cheio de escuro, melancolia e solidão. Nostalgias, nada mais.

 

(*) Escritor.

quinta-feira, 7 de setembro de 2023

 


Porque me ufano do meu país”

Padre João Medeiros Filho

Dr. Hélio Galvão, quando professor de literatura brasileira no Seminário de São Pedro, em Natal (RN), indicou-nos a leitura do livro de Afonso Celso, cujo título é o mesmo do presente artigo. Tal fato ocorreu, por ocasião da Semana da Pátria, nos idos de 1950. Com várias edições, a obra em questão tornou-se cartilha de patriotismo. A partir de então, o termo ufanismo popularizou-se como amor exacerbado à pátria. Posteriormente, a publicação e o autor deixaram de ser apreciados, passando a ser contestados. A visão pouco realista de certos compatriotas, em não perceber aspectos sombrios do país, instigou os críticos. Décadas depois, o humorista Ary Toledo apresentou um espetáculo, tendo por título a mesma frase. Entre cantos e piadas de sua autoria, teceu comentários depreciativos sobre as ideias de Afonso Celso, assim como as de seus opositores. O ator desdenhou também a tendência dos que imitam os estrangeiros, subestimando a própria cultura, incorporando na dança e música elementos de outras nações, inclusive termos linguísticos e menosprezando o que é genuinamente nosso.

Nesta Semana da Pátria sente-se dificuldade de ufanar-se do país em vários aspectos. Mas, como devo e desejo encontrar razões para orgulhar-me da terra onde nasci e vivo. O país está dividido, polarizado e cindido em seu tecido social. Não se pensa prioritariamente na pátria, mas em conveniências e interesses políticos. Há os que defendem uma posição universalista, desejando abrir mão de nossas riquezas, patrimônio e território.

A alegria cedeu lugar à tristeza. A violência grassa, asfixiando a paz. O desânimo se instalou no lugar da esperança. A fé é solapada diante dos cenários de injustiças, fome, desemprego, demagogias, doenças, em suma, profundo desrespeito ao ser humano. Quem poderá se orgulhar, vendo corredores de hospitais, cheios de pacientes sem atendimento adequado? Qual a reação esperada diante de tantos desempregados e irmãos dormindo ao relento? Enquanto isto, bilhões do dinheiro público escoam para o fundo partidário. Milhões são gastos em publicidade dispensável. Toda essa quantia serviria para amenizar problemas graves e urgentes da população, por exemplo: segurança, habitação, água, educação e saúde.

Mergulhados em tristeza e desesperança, não se consegue vislumbrar uma solução a curto prazo para as ingentes desigualdades vivenciadas atualmente. Onde estão a fraternidade e a justiça, pregadas pelo cristianismo, religião da maioria dos brasileiros? “Todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8), apregoou o Mestre. Como Irmã Dulce, Padres João Maria, Ibiapina e tantos outros apóstolos da caridade fazem falta! Deve-se cruzar os braços e lamentar o infortúnio deste torrão natal tão amado? Não, ao pensar nas centenas de voluntários que se organizam e assistem as comunidades mais carentes. Não igualmente, ao fixar o olhar sobre tantos médicos e profissionais de saúde, que se arriscam nos hospitais para salvar vidas ameaçadas. Não, ao ver mestres dedicados à educação da juventude. São samaritanos sem condições condizentes de trabalho, com salários atrasados ou mal remunerados. Não ainda, quando se vê uma multidão que acorda cedo, viajando amontoada em transportes precários, trabalhando com dignidade e amor para nutrir e educar sua família, malgrado o descaso dos entes públicos e seus dirigentes. Não, ao saber de milhares de policiais que expõem e perdem sua vida para defender e salvar a população da violência.

O melhor do país está na bravura de muitos, lutando contra desmandos e arbitrariedades. É gratificante ver tanta gente travando uma batalha cotidiana e intensa para dominar a fome ou a doença. Encanta ver uma multidão que luta pela vida, repartindo o pouco que tem com os outros. É bom saber que há pessoas capazes de cantar e animar, mesmo em meio à tristeza. Esse povo é a reserva de esperança para o Brasil. É motivo para dele orgulhar-se. Esses cidadãos (cujo valor talvez não apareça) fulgem, apesar de tudo, com seu caráter, generosidade, solidariedade e otimismo. Por esses compatriotas e com eles, faz sentido celebrar o Dia da Pátria. Não se deve esquecer a Bíblia: “A justiça engrandece uma nação. Mas, a desigualdade é a sua vergonha” (Pr 14, 34).