quinta-feira, 1 de julho de 2010


Charge – José Carlos

O sol não manda arautos à frente para anunciar-se, mas a sua luz (Zalkind Piatigórsky)


DIÓGENES, INVENTOR DE CRIATURAS, COLECIONADOR DE AMIGOS

(RETRATO 3 X 4 DE UM AMIGO-POSTER MERECEDOR DE OUT-DOOR)

Ninguém foi mais biografado, referido, louvado e amado que Diógenes da Cunha Lima, filho.
É o modo que os seus muitos amigos encontraram de expressar o seu bem-querer e a sua
gratidão pela amizade-sombra-guarda-chuva de tão querido parceiro. Quem chegou tarde
encontrou pouco espaço para dizeres, querências e louvações. Restaram os entretantos
e vieses. Pouco mais que uma ou outra pose para um retratinho no lambe-lambe das feiras
interioranas. Nesses espaços, confins e lindes ainda assim aventuro-me, temerário e desajuizado, sovinando
ouro, incenso e mirra por pauperismo de origem, carecendo até mesmo de riqueza narrativa
ou vocabular para fazer o enfrentamento das circunstâncias. Mesmo assim, rendo merecidas loas
porque o santo não é de barro nem o andor colado com cuspe.


Trouxe a lume o dia mais claro e mais azul que pudesse ser. Alumiou mais ainda a claridade para observar a criatura. Descobriu-se um Diógenes diferente do grego, amante da criação e da criatura. Não mais buscava, anunciava. Tornou-se poeta, de frase curta, rima incidental, palavra grávida de beleza e de intenções, precisa. Suficiente.
E por amar o mundo e os seus habitantes, fez-se, naturalmente, generoso. Largo de gestos, talvez, parafraseando a poeta, gesticule seu pensamento, de sorte que mesmo estando parado é já ter compreendido ou não ter dúvidas.
Com um abraço, transfere-se, com um sorriso se explica. Com a palavra constrói amigos e abrigos, inventa alvores e ainda reúne os escombros do dia para fundear a noite.
Em suas lidas, “... reparte a côdea, o boi (...) e sobretudo e mais que tudo, a palavra sem fel”. Uma pomba seria a imagem mais adequada para o seu verbo – branca, plumosa, digna, no bico um ramo de algaroba anunciando o fim da estiagem e os rigores do inverno.
O sorriso sempre pronto, freqüente e estimulante, mal comparando, como as portas automáticas que se abrem quando o sensor indica a presença humana, e, bem comparando, qual o girassol que se volta na direção da luz. Um sorriso a meio caminho do vicariato, no rumo do hospitaleiro interiorano. Com gosto, sempre. Um meio aguado quando de simpatia, apenas. Mas cheio de sol nos portantos e portentos.
Todavia, cautela é recomendável, sem pressa conclusiva quando o virem assim, na tarde, sorridente, imaginando-o sem propósito. Jorge Fernandes adverte:

Habitualmente vivo assim, sorrindo.
O riso para mim exprime tudo...
E no ato mais sério, estando rindo
Sou mais sério rindo que sisudo.

Porejado por uma santidade profana, porque aceitou, melhor dizendo, acoitou os pecadilhos como contraponto de sua natureza e fatalidade inelutáveis. Legítima defesa. Afinal, tornara-se mortal e nordestinado desde que viera á luz num vale de lágrimas, cuja tanta profusão formou o Curimataú, recorrente rio da infância. Nessas águas, dessalinizadas e adoçadas no sobejo da boca do Diógenes-pai, e Eunice-mãe, navegou até o Potengi.
Primeiro, desembarcou no refoles de Riffault. Quando, que nem Crusoé espiando as sextas-feiras, descobriu as margens ramosas. Um dia, teve vontade de continente e, conduzido pela maré, fincou raízes provisórias à beira do cais da Tavares de Lira.
Depois, transplantou-se pelas ribeiras e alecrins e pelas alturas e baixios da cidade. Virando homem-árvore (imponderável baobá) danou-se cabeça arriba para as dunas, mergulhou a folhagem mística no mar de arrebentação pouquinha, recolhendo a sutil renda branca tecida pelas ondas para formar as nuvens, e, fiado no farol de Mãe Luiza, aventurou-se por mares nunca dantes navegados.
Conheceu os sábios do Sião, os Reis Magos, o santo Cascudo de muitos saberes e muitos charutos, os mitos e as lendas de um Natal memorável, seiva de suas raízes – Navarro, Dorian, Rabelo, Veríssimo, Djalma Marinho, Jorge Fernandes, Zila Mamede, Onofre Lopes, Nei Leandro, Lula Capeta (também louvado como Guimarães), Sanderson, o almocreve de sextante apontado para as estrelas...fábula, fábula.
(De Itajubá, o Ferreira, só conheceu a poética, mas foi suficiente. Rendido pelas tantas belezas dos versejados, num culto à sua imortalidade, mandou restaurar a casa onde nasceu. Como mandou esculpir e pintar quadros dos seus cultuados, num ritual pagão pré-franquado por Deus. É assim o magnífico Diógenes.)
Com aprendizado bem posto e afamado, foi ensinar o que aprendeu, para não sovinar a ciência. Capitulou-se à universidade e ficou sendo seu Reitor. Refém do seu ofício, entregou-se escravo de ventre livre à sua terra e à sua gente. Foi mais além, foi deão de todas as universidades brasileiras, e é presidente do Panteão de Letras Potiguares, sem perder o sotaque, nem perder de vista o verde oceânico potiguar, a fascinação das dunas caprichosas e o aleitamento do Curimataú.
Porque foi sempre e a vida toda uma criatura compromissada com a sua aldeia, que nem o santo besouro cascudo Luís da Câmara e o Fernandes que Jorgeou com os pássaros.
Andou por Seca e Meca, Oropa, França e Bahia. Foi condecorado, enaltecido, honrado e comendadorado, mas, no terceiro dia sempre ressurge dos céus mais luminosos e promissores e planta-se nos quintais da sua terra adotiva. Toca o sino, como os nativos dos mares do sul sopravam os búzios, para as celebrações dos amigos, em Pirangi – o mar embaixo, caminho de navegação, carta de alforria da alma viajora.
Homem que bota fé nos compromissos assumidos, leal, pastoreador de amigos e de sonhos delirantemente perseguidos e realizados, surpreende os alheados e se assombra, ele próprio, com a o tamanho e a extensão dos seus devaneios.
Decidiu criar o projeto Rio Grande do Norte, em que faria a Universidade debruçar-se sobre os problemas de sua terra e oferecer-lhes alento e cura. Assim o fez. Enfrentou o desafio de executar o maior programa de editoração da produção intelectual dos docentes e discentes da sua academia. Foi feito.
Beiradeiro de Nova Cruz, fez propósito de liderar os dirigentes das instituições de ensino superior do país. Tudo gente bem letrada e bem falante. E foi. Quis ser dono de um baobá, ao menos tutorar um espécime dessa árvore-útero, sementeira da raça, instituir-se o seu poeta e oficiante, e deu no que deu. O “baobá do poeta” é atração turística de Natal. É, por isso mesmo, o homem-árvore referido nos prolegômenos desse escrito.
Deu até nome de Estação Ferroviária, a da Ribeira, de mor valia. Quem já emprestara seu nome a tanto alvoroço, gente de indo e vindo, lendo na plaquinha o porto seguro de partida e de chegada: Diógenes da Cunha Lima? Só um predestinado a ser.
Coleciona amigos como outros o fazem com coisas ditas muito importantes sem importância nenhuma.
Diz que até inventa pessoas, descobre um quê embutido em cada um e, por artes d´alquimia, faz florescência desse intuitivo insuspeitado.

Cada causo tem três estórias: a sua, a minha e a verdadeira.
Mas esse causo eu conto, como o causo foi. Rei é rei e boi é boi.

Conto um causo de vera acontecência como romance sem rima, seco que nem o chão da catinga, aqui e acolá, um respiro de uma macambira e de um mata-pasto. Lá vai:
Malsucedido numa fábrica de ração para aves, certo advogado, ainda jovem, mas já renomado, desfez-se do seu patrimônio para saldar as dívidas comerciais e aceita convite para administrar um grupo de empresas na distante Teresina, capital de Piauí.
Corria o ano da graça de 1976/1977, por aí...
Dito causídico que tinha até veleidades literárias, um poeta passivo e militante de sonhos vários, de repente vê-se degredado para um sítio ermo de praia e de brisa, os floreios convertidos em atos de gerência, haveres e deveres, exilado da sua aldeia. Os filhos, todos mui pichotos, deram para emagrecer e apresentar um calundu de fazer dó. Saudades da terra Natal, textualmente.
Passou ano e meio cabeça baixa, sem olhar o céu, impondo-se ofício missionário: já que a quimera havia murchado, que recuperasse viço o patrimônio perdido.
Em fins de 1978, recebeu a convocação do amigo, então candidato a Reitor – que voltasse para Natal, que era o seu lugar. Quando chegasse os problemas seriam solucionados a contento, sob seu patrocínio.
Vendeu o que tinha e atendeu, confiante, ao chamamento do seu patrono. Incorporou-se à campanha para conquista da Reitoria da UFRN, participando de um grupo com centenas de militantes e após dura batalha, hoje mitigada mas dantes celebrada como encarniçada, Diógenes foi nomeado para o cargo.
Nesse meio tempo, sentou praça como editor-assistente do Rn-Econômico, que atravessava uma extraordinária fase de expansão, não por seu auxilio, mas porque confirmava-se a excelência da parceria Marcelo Fernandes-Marcos Aurélio Sá, dois grandes amigos e profissionais competentes, que se completavam.
Certo dia, o amigo-reitor comunica que quer tê-lo como o seu substituto na cátedra de Direito Comercial. Que buscasse Amaury Sampaio Marinho, então chefe do Departamento de Direito Privado, para os acertos.
Pouco mais de um ano depois, o inventor de gente consultou Marcos Aurélio Sá, seu também amigo, porventura o desfalque do editor assistente era perda irreparável, ou suportável em curto ou médio prazo. O jornalista respondeu que preferia manifestar opinião depois de conversar com o seu editor, para aferir as suas conveniências e sugestões e avaliar a conjuntura.
Deu-se então que Sanderson Negreiros havia pedido exoneração do cargo de Pró-Reitor de Extensão e Diógenes, inconformado com a perda, queria ter o amigo, a quem creditava a qualidade de bom executivo, para ocupar a vacância do notável intelectual.
Um complexo de inferioridade apossou-se logo do convidado, pari passu com a preocupação de deixar os dois amigos que lhe confiaram a editoria da revista em dificuldades. E porque substituir José Sanderson Adeodato Fernandes de Negreiros, era tarefa para kamikaze, tamanha a criatividade, a inteligência e a referência de boa gestão na área responsável pela cultura da UFRN.
Afinal, feita as ponderações necessárias, e tirado os nove-foras, decidiu conforme o que é sempre dito como lugar comum em tais situações – aceitar o desafio.
O resto é história conhecida.
A Pró-Reitoria de Extensão, graças às idéias e ao apoio irrestrito de Diógenes, converteu-se em modelar, mantendo cinco programas inovadores que mudaram a feição dessa unidade acadêmica: Programa de Editoração do Trabalho Intelectual da IES (Peti), gerenciado por Dona Salete e Amaral; Programa de Aplicações Científicas e Tecnológicas (Pacto), pelo Professor Adilson Gurgel de Castro, com ajutório de Uilame Umbelino, Liacir Lucena e Glaucus Brelaz; Programa Memória, pelo professor Iramar Araújo e Programa Vanguarda, pelo professor Ari da Rocha.
Além disso, o afoito desafiado tinha sob sua guarda, o Crutac, menina dos olhos do sempre-reitor Onofre Lopes, a Editora Universitária, o Núcleo de Arte e Cultura, o Núcleo de Estudos Panamericanos, a Televisão Universitária, e o Centro de Convivência. Era um mundéu de coisas para cuidar e tocar, tudo feito com dedicação e carinho por uma equipe memorável: Fernando Lira, Airton de Castro, Vilma Sampaio, Lúcio Brandão, Carlos Lira – ah, meu Deus, Carlinhos Lira, ele próprio Memória Viva, vivo e eterno na memória. E Franco Maria Jasiello, romano erudito de chapéu de couro e gibão. Tão “magnífico” amigo quanto Diógenes que encarnou e deu essência afetiva a esse título acadêmico.
Graças a essa equipe e ao apoio do Reitor, o titular da Pró-Reitoria alcançou tal prestigio e notoridade que se habilitou a disputar a sucessão do próprio Diógenes, merecendo dos conselhos superiores o maior número de votos e a primeira posição da lista sêxtupla na disputa pela sua sucessão.
Esse tal fui eu, também criatura “inventada” por Diógenes.

Fim do causo e continuação das loas de merecimento

Há nessa criatura-criadora, também, e um tanto sobretudo (literalmente reforço e abrigo), um advogado de tanta maestria e alquimia que é capaz de tocar Midas e convertê-lo no que quiser, um abre-te sésamo que é univitelino com o direito regente no país. Cortez Pereira, injustiçado e fustigado indignamente como fosse, com licença da má palavra, boi-de-piranha, foi tocado por esse-um.
Mas, até esse dom é diluído em tantas vertentes, quantos heterônimos de Fernando Pessoa, tributando-se a jusante e a montante a uma corrente que é principal e essencial: o poeta-escritor, que magicamente, valendo-se do próprio ofício e dele recorrente, inventa gente e coleciona amigos.
É também compositor, escreve estórias infantis, e, se brincar, casa, batiza, faz chover no seco e no molhado e inventa uma lua três vezes sol.
Cogito que é espécie dissemínula, diáspora. Reproduz-se em outras tantas espécies, transplanta-se, transmuda-se, transfigura-se ocasionalmente. Transfere-se grão no bico de ave-palavra-pomba, não mais algaroba, mas sementeira de baobá robusto e frondoso, sagrada habitação telúrica onde as oferendas são plantadas em demanda da beleza.
Eis porque mordo a língua...
“ ...e deixo minha fala secar comigo,
e cair como poeira
sobre os olhos famintos”
monte de cinzas
uberdadivosas
adubo de bem quereres

OBS. Quando me ponho e me colho a transfigurar os amigos, inventando personagens e cenários onde pudessem caber, vejo sempre um Diógenes olímpico, boêmio e cristão: túnica e louros de tribuno romano, harpa a tiracolo, como os tangedores de violão, sentado à mesa da santa ceia no mesmo lugar do Divino Mestre, os amigos ao redor aguardando a multiplicação dos pães e do vinho, com gestos largos e solenes, como é seu jeito de ser.


PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado, escritor e advogado.

domingo, 27 de junho de 2010

DONA MILITANA: CHEIRO DE ANCESTRALIDADE
Rizolete Fernandes, mrizolete@yahoo.com.br

O mundo cultural nem tinha absorvido a perda, na semana que passou, de José Saramago, o grande nome da literatura portuguesa e nós aqui do Rio Grande do Norte já acrescentamos outra dor à tristeza generalizada. Estou falando da partida, no sábado, 19, da romanceira Dona Militana Salustino.
Descoberta do folclorista Deífilo Gurgel, em São Gonçalo do Amarante, Dona Militana era considerada a maior expoente viva do folclore em terras brasileiras, memória dos romances ibéricos entre nós. Em 2005, recebeu das mãos do Presidente da República a Medalha do Mérito Cultural, cobiçada distinção que a colocou de vez no rol dos grandes nomes da cultura no país. Apesar da notoriedade, era humilde, de pouca fala e tinha no cachimbo um companheiro inseparável, o que lhe acarretaria problemas de saúde e, no ano passado, uma internação hospitalar.
Conheci-a por ocasião do lançamento em Natal do livro “Mulheres Negras do Brasil”, do qual ela faz parte. Transcorria 2007 e a líder feminista carioca, Schuma Schumaher, autora da obra (em conjunto com Érico Vital Brazil) estava presente ao evento, promovido pelo Coletivo Leila Diniz, que eu então presidia. Nessa condição, compus a mesa coordenadora dos trabalhos da solenidade, para a qual havia sido especialmente convidada nossa romanceira, que sentou, ao lado da filha Benedita, bem à nossa frente. Prestava atenção em tudo.
Terminada a primeira parte e, antes de passar à exposição de fotografias montada no mesmo espaço, a platéia seria brindada com os cantares da senhora artista de 82 anos, à época. Mas ela não atenderia de imediato ao convite da mesa, nem aos apelos de Benedita para iniciar a apresentação. Já se ouvia um discreto coro de “canta, canta!”, mas a filha de seu Atanásio Salustino, entre assustada e como se não entendesse, permanecia calada. Aguardava-se. Um misto de ternura e compreensão me envolviam quando fui em sua direção, pus a mão em seu ombro e num impulso lhe disse ao ouvido: só cante se quiser, está bem? Ela me olhou com um olhar de quem se sente acolhido e na mais inocente simplicidade perguntou: é? Reafirmei com a cabeça para, em poucos segundos, ouvi-la emocionar o público com o repertório do seu cancioneiro. Durante todo o tempo da apresentação, permaneceria apoiada em meu braço.
Quando terminou e antes das dezenas de braços que a procuravam, enlacei-a demoradamente, ocasião em que senti o cheiro forte nela entranhado, do seu cachimbo. Algo se passou nesse instante, que definirei como que uma bacia de lembranças da infância entornada sobre minha cabeça, uma invasão ruidosa dos olores exalados pela fumaça de cachimbos antepassados. Do meu pai, que depois de anos pitando os seus, de diferentes tamanhos, modelos e cores, houve por bem substituí-los pela praticidade do charuto artesanal, não eliminando o ritual do corte do fumo de rolo que eu gostava de presenciar; das tias e tios sempre com seus pitos à boca, dando baforadas a torto e a direito a embaçar rostos infantes; e até do meu avô materno que, segundo relatos, pitou com voracidade e dos longes onde já pairava, continuou espargindo sobre a neta que não chegou a conhecer, aromas imaginários de nostalgia.
Fumaças essas mais tarde esmaecidas em mim, pela ação dos ventos litorâneos, na correria diária da luta pela vida, mas ali evocadas repentinamente, face aos eflúvios daquela fumante que eu enlaçava com ternura. Submergi numa onda de pranto.
Acorreram amigas querendo saber o que se passava, pressurosas na oferta de consolo. Respondi com evasivas na hora. Como iria lhes explicar que chorava por estar sentindo cheiro de ancestralidade?
Cheiro doravante cada vez mais tênue. Já seu canto, registrado, vai perdurar.
É sempre bom lembrar coisas passadas!


Vou-me embora pra Pasárgada



MANUEL BANDEIRA

Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada

Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca da Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive

E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
Mando chamar a mãe-d`água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou-me embora pra Pasárgada

Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
-Lá sou amigo do rei-
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada.
A IMPORTÂNCIA DO DIÁLOGO

Carlos Roberto de Miranda Gomes - Professor e advogado

Um dos assuntos atuais na seara jurídica potiguar é a PEC que extingue a Consultoria Geral do Estado, incorporando-a à Procuradoria Geral do Estado.

Sobre o tema fui contatado para oferecer opinião. Contudo, ao adiantar que era contra a proposição, fui desconvidado para ser ouvido por um órgão da imprensa, o que não me causou preocupação.

Dias depois, sendo do conhecimento de muitos a minha posição, aliás externada em meu blog, fui indicado para defender o meu ponto de vista em sessão na OAB/RN para confrontá-la com outras opiniões na referida sessão. Para isso dei-me a uma pequena pesquisa e estive presente na aprazada reunião para o salutar diálogo.

Estranhei o atraso, em uma hora, para o início da sessão, quando vi o trânsito de alguns Procuradores do Estado pelos corredores da OAB/RN e em seguida a informação de que os mesmos tinham solicitado o adiamento daquele encontro. Claro que fiquei frustrado, pois me preparei para o encargo.

Nos jornais do dia seguinte vi a notícia do ‘lobby’ dos Procuradores junto ao Presidente da Assembléia Legislativa, o que me deu a certeza de que a discussão da Casa dos Advogados estava sem finalidade. Diante disso, resolvi apresentar neste modesto texto os fundamentos que pretendia expor e fui tolhido.

A Consultoria é uma Instituição secular. Mas não é por isso que a defendo, pois não sou blindado às necessidades da modernidade, nem devoto das atitudes demolitórias precipitadas.

A sua concepção, no Brasil, vem do tempo do Império, através da escolha de pessoas juridicamente competentes e iluminadas para a nobre missão de orientar as grandes decisões do Imperador. Na República não foi diferente e os Pareceres elaborados pelos Consultores, em diversos momentos da nossa História, firmaram convicções inabaláveis e peças de extrema grandeza, acolhidas pelo Estado e pelos cidadãos como se verdadeiras leis fossem.

No Rio Grande do Norte, dentro da mesma simetria, foi criada a figura do Consultor Geral do Estado, provavelmente, nos primeiros anos do Século XIX e com o mesmo escopo de emitir parecer sobre as controvérsias de direito público, informar reclamações e recursos puramente administrativos e dirimir dúvidas em relação à aplicação de leis, respondendo às consultas que fossem formuladas.

Oficialmente foi criada em 26 de novembro de 1912 pela Lei n° 319. Sofreu interrupções em 1917, retornando em 1933. Desde então, figuras de maior grandeza ocuparam esse tão eminente cargo, a saber, Antonio José de Mello e Souza, Kerginaldo Cavalcanti Albuquerque, Luís da Câmara Cascudo, Raimundo Nonato Fernandes, Ivan Maciel de Andrade, Múcio Villar Ribeiro Dantas, Francisco de Assis Fernandes, Armando Roberto Holanda Leite, Diógenes da Cunha Lima e Tatiana Mendes Cunha, cujos pareceres também compõem vasto repertório de jurisprudência administrativa, invocadas para as grandes controvérsias jurídicas no âmbito estadual.

Com a atual Carta da Federação a missão da Consultoria Geral da República foi substituída pela Advocacia Geral da União. Contudo, no art. 69 do seu ADCT foi permitido aos Estados manter consultorias jurídicas separadas de suas Procuradorias Gerais ou Advocacias Gerais, desde que à data de sua promulgação tais órgãos existissem. Assim, não há que se falar em proibição da Constituição Federal.

Por outro ângulo, é fundamental verificar as finalidades de cada um desses órgãos, cabendo à Consultoria, dentre outras competências, assessorar o Governador em assuntos de natureza jurídica, de interesse da administração estadual; pronunciar-se, em caráter final, sobre matérias de ordem legal que lhe forem submetidas pelo Governador; orientar os trabalhos afetos aos demais órgãos jurídicos do Poder Executivo, com o fim de uniformizar a jurisprudência administrativa; elaborar e rever projetos de lei, decretos e outros provimentos regulamentares, bem como minutar mensagens e vetos governamentais. É, portanto, um órgão de Governo.

A Procuradoria, por sua vez, tem o escopo de defender os interesses do Estado, exercendo a representação judicial e extrajudicial e o assessoramento jurídico ao Poder Executivo. É órgão de Estado.

Em sua missão oficial a Procuradoria defende os interesses do Estado e para isso os seus Procuradores têm plena liberdade de interpretação, motivo que permite, de quando em vez, conflitos de pensamentos e conclusões diferenciadas ou, sempre existirá um entrave quando estiver em jogo direitos do cidadão em conflito com as diretrizes do Estado, notadamente nas ações de execução fiscal, direitos de servidores e outros. Nesse instante é que surge a missão da Consultoria, a pedido do Governador, para dirimir controvérsias, as quais muitas vezes são concluídas em sentido contrário ao que antes provia a Procuradoria.

Não vemos nenhuma incoerência, até porque as competências de cada um desses Órgãos já preenchem exuberantemente todos os espaços do entendimento jurídico do Estado e cumular em um só deles as duas missões, certamente irá reduzir a eficiência das soluções encontradas, no tempo e espaço ansiados.

Para que tal união venha a acontecer não será através de apenas uma PEC, transferindo competências e aumentando poder, mas primeiro promovendo uma ampla reestruturação da Procuradoria Geral do Estado e ampliação do seu quadro funcional para então ser possível uma condição sustentável para não haver descontinuidade nas soluções das questões jurídicas e possa ser mantida a eficiência preconizada no art. 37 da Lei Maior.