O SONHO DO POETA
- Horácio Paiva*
Há
na poesia do saudoso amigo e poeta Gilberto Avelino, que releio neste Natal de 2022
(vinte anos após sua morte), a sensação de profundidade espiritual, de evocação
de instantes perdidos, porém magicamente recuperados na memória lírica.
Recordo
o nosso último encontro pessoal, em nossa querida e lendária Macau, centro do
mundo, porto a que sempre ancorávamos em nossas divagações existenciais. E
isto, certamente, mais uma vez nos colocava em harmonia com a eternidade.
Mas
não sabíamos que ali havia, também, uma despedida, um adeus, já que logo, em 21
de julho de 2002, o poeta faleceria. E vivemos aquele encontro na plenitude da
poesia e do trabalho profissional.
Chegara
à sua casa da Rua Pereira Carneiro às nove horas do dia 17 de julho, uma
quarta-feira, e a encontrara iluminada com a sua alegria.
Gilberto,
embora muito bem humorado, estava ansioso por revelar-me um sonho que tivera na
noite anterior e, antes da leitura de seus novos poemas, passou a narrá-lo. Contou-me que tivera um sonho impressionante
com o meu pai, Horácio de Oliveira Neto, já falecido. Durante toda a noite
sonhara com ele, nos velhos tempos da agitada política macauense. E este,
insistentemente, chamava-o: “Preciso de sua assessoria, com urgência, aqui.” Ao
que respondia o poeta que logo iria, assim que concluísse determinado trabalho.
Gilberto
admirava o meu pai, o seu caráter, a sua idoneidade, a sua coragem pessoal.
Ingressara na política macauense através dele, ainda muito jovem, acadêmico de
Direito. Prestava-lhe preciosa ajuda, com o seu talento e habilidade, porque
acreditava nele e o julgava o mais apto para administrar Macau.
O
escritor argentino Jorge Luis Borges, em seu “Libro de Sueños”, narra inúmeros
e impressionantes sonhos de vultos históricos, sem adentrar-se em
interpretações. Ali há relatos magistrais de sonhos de Nabucodonosor, Jacó, José, Salomão, Confúcio
(que sonhara com a própria morte), Cipião, Coleridge, Abraham Lincoln, dentre
outros.
Eu
e Gilberto também não nos fixamos em interpretações e, logo após a sua curiosa
narrativa, passamos a outra modalidade de sonho: a poesia. Em seguida, o labor
profissional da advocacia consumiu o restante do dia, para sempre memorizado.
Mas
não quero terminar sem antes pôr em relevo a beleza e a lúcida singularidade
desses versos do grande lírico espanhol Juan Ramón Jiménez, que tanto falam ao
meu coração:
“Como aprendemos a morrer em ti, sono!
Com beleza magistral
nos vais levando - por jardins,
que parecem cada vez mais nossos -
ao conhecimento profundíssimo da
sombra!”
Relembro
a nossa profunda amizade, que a morte não acabou, as nossas conversas
infindáveis, as nossas divagações sobre política e projetos para Macau, sobre
literatura, sobre o amor, sobre Deus. Relembro quando dizíamos que, assim,
conversaríamos eternamente.
Macau
e a poesia não perderam: ganharam Gilberto.
........................................................................................................................
(*)
Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do
Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN
e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.