A AUSÊNCIA
(HOMENAGEM
A TICIANO DUARTE)
Valério
Mesquita*
Com
a partida de Ticiano Duarte, encerrou-se um ciclo da boemia social, do
humanismo e da confraria de papos e histórias da vida natalense. Tudo
começou no Grande Ponto, chão de reminiscências, de teluricidade, de mexericos
da política de leva e trás, pulmão e coração da cidade dos Reis Magos dos anos
cinquenta. Antes, era a Ribeira, no Cova da Onça, ruas Dr. Barata/Tavares de
Lyra. A história oral do cotidiano subira para a Cidade Alta. Alguma novidade?
Era a pergunta indefectível para início de qualquer assunto. Tardes e noites, o
meu personagem ali era Ticiano Duarte, que à distância, na minha adolescência,
o observava, como primo e hóspede estudantil dos seus pais Temístocles, Sofia,
minha tia e Sililde, prima.
Ticiano,
bacharel em Direito, depois com Djalma Maranhão, com Aluízio – na alegria e na
dor, – com Walfredo Gurgel, cargos na gestão pública, professor universitário,
jornalista, memorialista, diretor da TN, membro da Academia de Letras do RN,
palestrante, líder maçônico de expressão nacional – enfim, uma vida em linha
reta, com probidade e honradez. “Tício”, como o tratávamos na intimidade, não
tem paradigma. Estamos órfãos. Ninguém narra um causo, um fato, um evento, com
tanto sabor e tempero. Na performance, as feições acesas assumiam expressões
teatrais de acordo com a tonalidade do dito. Ao derredor, onde estivesse, os
ouvintes atentos e silentes, escutavam até a gargalhada final do desfecho.
Era
um ator, na arte de conversar, convencer e presidir naturalmente o rumo e o
prumo de qualquer reunião de amigos no “senadinho” do Natal Shopping, onde
tornou-se a suave patativa vespertina da palavra facultada pelo saudoso e
severo Meroveu Dantas, presidente da “instituição”. Outro foco impressionante
do seu desempenho era a lucidez, a memória plantonista sobre os acontecimentos
da nossa vida republicana, citando nomes, lugares e repondo verdades nos
capítulos e entrelinhas das versões.
Natal
perdeu, na sua figura humana, a contemporaneidade herdada dos últimos sessenta
anos. Não apenas pelo seu perfil de escritor, articulista, intelectual, mas
como vitrine de uma época, referência de um ser humano, marca registrada de si
mesmo: pelo visual do vestir, andar, falar, agir, além de ser excelente pai,
avô e amigo. Personalíssimo. Poderia falar mais sobre Ticiano Duarte
principalmente pelo bom caráter de ter sido homem público e seguidor de um só
líder e leal aos princípios e ideias que sempre defendeu. Porisso, eu não o
comparo. Eu o separo, porque “naquela mesa está faltando ele”. Em vida, provou
que os sonhos não envelhecem.
Inúmeros
foram os fatos que ele me narrou e registrou. Como se o ouvisse, para
concluir, leia a história que narrei no meu livro “Causos 2010”: “Conversar
com Ticiano Duarte é redescobrir o tempo e reviver figuras inesquecíveis. Num
começo de noite, na calçada da Academia de Letras, vários colegas se reuniram
em torno dele. Falava sobre o irrequieto poeta pernambucano Tomás Seixas, que
marcou a boemia dos bares recifenses. Em pleno regime revolucionário,
impressionado com o relato jornalístico do número de detidos pelos militares,
decidiu procurar o quartel para prestar sua contribuição cívica, indigitando
subversivos. “Quero falar com a Unidade de Informação Secreta, tenho algo
importante a revelar”, disse Bebé, como era bastante conhecido, ao oficial de
dia do Comando do 4º Exército. Imediatamente foi conduzido à presença do
coronel responsável. Ao adentrar no gabinete, em pé, dedo em riste, o poeta
logo desembucha: “Vocês estão esquecendo de prender o mais temível e perigoso
comunista do Recife!!”. Sentado, o chefe militar de imediato despertou, curioso
com a delação espontânea. “Quem é o sujeito?”, perguntou já reunindo à mão
alguns papéis sobre o birô. “O poeta Tomás Seixas!”, exclamou o denunciante.
Reflexivo por alguns segundos, o coronel informou desconhecer completamente o
nome mencionado. Aí, o beletrista boêmio foi mais explícito: “Falo do poeta
Bebé!”. “Ah, desse já ouvi falar. É um pobre coitado”, retrucou o militar
desconversando sem dar a mínima atenção. Achado desimportante, o poeta pegou um
jipão do Exército direto para o bar mais próximo.”
(*)
Escritor.