sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

 A AUSÊNCIA

(HOMENAGEM A TICIANO DUARTE)

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Com a partida de Ticiano Duarte, encerrou-se um ciclo da boemia social, do humanismo e da confraria de papos e histórias da  vida natalense. Tudo começou no Grande Ponto, chão de reminiscências, de teluricidade, de mexericos da política de leva e trás, pulmão e coração da cidade dos Reis Magos dos anos cinquenta. Antes, era a Ribeira, no Cova da Onça, ruas Dr. Barata/Tavares de Lyra. A história oral do cotidiano subira para a Cidade Alta. Alguma novidade? Era a pergunta indefectível para início de qualquer assunto. Tardes e noites, o meu personagem ali era Ticiano Duarte, que à distância, na minha adolescência, o observava, como primo e hóspede estudantil dos seus pais Temístocles, Sofia, minha tia e Sililde, prima.

Ticiano, bacharel em Direito, depois com Djalma Maranhão, com Aluízio – na alegria e na dor, – com Walfredo Gurgel, cargos na gestão pública, professor universitário, jornalista, memorialista, diretor da TN, membro da Academia de Letras do RN, palestrante, líder maçônico de expressão nacional – enfim, uma vida em linha reta, com probidade e honradez. “Tício”, como o tratávamos na intimidade, não tem paradigma. Estamos órfãos. Ninguém narra um causo, um fato, um evento, com tanto sabor e tempero. Na performance, as feições acesas assumiam expressões teatrais de acordo com a tonalidade do dito. Ao derredor, onde estivesse, os ouvintes atentos e silentes, escutavam até a gargalhada final do desfecho.

Era um ator, na arte de conversar, convencer e presidir naturalmente o rumo e o prumo de qualquer reunião de amigos no “senadinho” do Natal Shopping, onde tornou-se a suave patativa vespertina da palavra facultada pelo saudoso e severo Meroveu Dantas, presidente da “instituição”. Outro foco impressionante do seu desempenho era a lucidez, a memória plantonista sobre os acontecimentos da nossa vida republicana, citando nomes, lugares e repondo verdades nos capítulos e entrelinhas das versões.

Natal perdeu, na sua figura humana, a contemporaneidade herdada dos últimos sessenta anos. Não apenas pelo seu perfil de escritor, articulista, intelectual, mas como vitrine de uma época, referência de um ser humano, marca registrada de si mesmo: pelo visual do vestir, andar, falar, agir, além de ser excelente pai, avô e amigo. Personalíssimo. Poderia falar mais sobre Ticiano Duarte principalmente pelo bom caráter de ter sido homem público e seguidor de um só líder e leal aos princípios e ideias que sempre defendeu. Porisso, eu não o comparo. Eu o separo, porque “naquela mesa está faltando ele”. Em vida, provou que os sonhos não envelhecem.

Inúmeros foram os fatos que ele me narrou e registrou. Como se o ouvisse, para concluir,  leia a história que narrei no meu livro “Causos 2010”: “Conversar com Ticiano Duarte é redescobrir o tempo e reviver figuras inesquecíveis. Num começo de noite, na calçada da Academia de Letras, vários colegas se reuniram em torno dele. Falava sobre o irrequieto poeta pernambucano Tomás Seixas, que marcou a boemia dos bares recifenses. Em pleno regime revolucionário, impressionado com o relato jornalístico do número de detidos pelos militares, decidiu procurar o quartel para prestar sua contribuição cívica, indigitando subversivos. “Quero falar com a Unidade de Informação Secreta, tenho algo importante a revelar”, disse Bebé, como era bastante conhecido, ao oficial de dia do Comando do 4º Exército. Imediatamente foi conduzido à presença do coronel responsável. Ao adentrar no gabinete, em pé, dedo em riste, o poeta logo desembucha: “Vocês estão esquecendo de prender o mais temível e perigoso comunista do Recife!!”. Sentado, o chefe militar de imediato despertou, curioso com a delação espontânea. “Quem é o sujeito?”, perguntou já reunindo à mão alguns papéis sobre o birô. “O poeta Tomás Seixas!”, exclamou o denunciante. Reflexivo por alguns segundos, o coronel informou desconhecer completamente o nome mencionado. Aí, o beletrista boêmio foi mais explícito: “Falo do poeta Bebé!”. “Ah, desse já ouvi falar. É um pobre coitado”, retrucou o militar desconversando sem dar a mínima atenção. Achado desimportante, o poeta pegou um jipão do Exército direto para o bar mais próximo.”

(*) Escritor.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

 Valério Mesquita 


NA MIRA DA VERDADE

Valério Mesquita
Mesquita.valerio@gmail.com
Aprendi a me contentar com o que sou e com o que tenho, como
falava o apóstolo Paulo. Até me compraz abordar esse tema que representa,
apenas, uma despretensiosa opinião entre milhares. Falo para lembrar que o
mundo precisa é de um bom retorno à moral, aos bons costumes e às boas
maneiras. O Brasil está grandemente desacreditado no exterior, tanto do ponto
de vista político e esportivo, bem assim com relação a segurança e a moralidade
pública. Hoje, se a polícia agir para manter a ordem social é logo acusada de
repressora. Se ela prender o criminoso ou o viciado, a legislação penal
permissiva e retrógada coloca nas ruas para repetirem tudo outra vez. O país
parece que não está mais acreditando em si mesmo.

Os princípios basilares da constituição de uma família, obra de
Deus, estão sendo confundidos e modificados pela opção individual de vida com
pessoas do mesmo sexo, em nome de falsa modernidade. Modernidade para mim
é o progresso da ciência médica, da informática, da engenharia, das
comunicações, etc. Mas, em desagrado com o que é sagrado e consagrado é
degradação, degenerescência. O direito individual de escolher a condição sexual,
é assunto exclusivo de cada um que deve ser respeitado. No entanto, tratar a
união de parceiros iguais tal e qual uma família constituída, significa destruir
uma geração que já está contaminada e descompensada pela perda da guerra
contra a droga. Aonde a sociedade brasileira quer chegar? Depois, recebe com
ceticismo o clamor popular para endurecer a legislação penal contra os menores
infratores que comandam hoje as estatísticas criminais! E ai? O governo está
criminalizando a pobreza porque falhou na educação dos jovens. Ou vamos nos
transformar numa imensa população carcerária ou tudo virar mesmo um caos.

As facções criminosas fazem “gato e sapato”. Invadem e
depredam tudo! Aliás, já ocorreu a invasão aos órgão públicos. Três de uma só
vez. Os índios já deram o bom exemplo intimidando a Câmara Federal. A
legislação brasileira sobre esses assuntos corporativos é frouxa e mixuruca. O
excesso de tolerância pode causar mortes por imprudência ou falta de autoridade.
A grande burrice da escolha nacional de gastar bilhões para salvar o falido
futebol - em vez do próprio brasileiro, ser humano, pobre, sem saúde e
segurança, é um absurdo. Viva o circo! Abaixo o pão! Um dia – o que não
desejo – mas prevejo, quando acontecer uma tragédia que atinja congressistas,
ministros da área jurídica ou suas famílias, aí sim! Será dada a largada. Os
jovens ocupam as ruas do Brasil com protestos, lutando e depredando mais para
tirar centavos de uma passagem de ônibus do que pela vida, pela punibilidade
das gangues dos crimes hediondos.

Nas antiguidades grega, romana e principalmente a judia,
revelada no Antigo Testamento, todas acreditavam em um Deus irado que punia
todos que ameaçavam os respectivos povos com catástrofes e sinistros. Na Bíblia
Sagrada, Moisés, Josué, Samuel, Ezequiel, Jeremias, Daniel, Isaías, além dos
profetas menores, todos escolhidos e inspirados por Deus, descrevem
intervenções divinas em defesa e preservação do povo judeu. Nos dias de hoje,
ante a derrocada moral do mundo, só temos a recorrer mesmo ao Altíssimo.
Esperar o retorno de Jesus Cristo, no final do milênio (se lá chegar), conforme
rezam as Escrituras, parece ser a única salvação para depurar, higienizar e
moralizar o planeta. Se não ocorrer uma medida preventiva do Céu, tudo o mais
vai piorar igual a cantiga da perua. Quem viver, verá: o diabo favorecendo os
maus e a gente pedindo a Deus que nos acuda.

(*) Escritor

 Valério Mesquita

mesquita.valerio@gmail.com
Ela ainda guardava uma beleza aflita que não morre.
De tudo quanto se esquece não pude esquecer o amor adolescente que havíamos vivido. Os seus braços ainda faziam lembrar meus cansaços e desatinos. Aquela mulher na fila comum do supermercado parecia que estava no estaleiro do tempo, estacionada nos 50 anos como se tivesse dissolvido a amargura das coisas. Os óculos escuros escondiam profundezas abissais de prazeres irrevelados e naufrágios conjugais. Ali estava plantada como uma árvore morta com raízes na minha alma. Ela que se tornara ausência em mim desde algum tempo, numa tarde morta de setembro. Não pude conter o ciúme retrospectivo. Apossou-se de mim, não mais que de repente, a fria solidão dos despossuídos. A poeira do tempo começara a lacrimejaros olhos de perdidas lembranças. Onde, aquele corpo juvenil de dançarina de mambo, rosto de Silvana Mangano e quadris de Ninon Servilha? O bongô oculto da orquestra invisível de Perez Prado cometia o milagre de resplandecer ali, as suas formas em movimento, à luz do ocaso. Ah! Tanta imaginação fugidia e ela nem olhava prá mim! Não. Ela não me vira. Com certeza. Não seria tão fingida. Outra surpresa me estava reservada.
Como se tivesse saído da multidão dos seus personagens, um jovem alto, louro, enlaçou-a num abraço afetuoso e mágico, fazendo descer pelo declive sonhos e ilusões de tudo o que já fomos. Valeria a pena dizer o nome de quem amei? Ou repetir a estrofe “de quem eu gosto, nunca falo”?
Conhecia-a na noite perdida da memória do Pax Clube de minha terra. Era a garota do baile. Isso é tudo como identidade e currículo.
Sai quando ela cruzou a porta e se enfiou no carro com o jovem marido. Um riso antigo ainda pude colher, de soslaio, da boca sensual e conhecida. O sol e o ruído, lá fora, despertavam-me para a realidade. Tudo acontecia rápido e me impelia prosseguir na sobrevida da lembrança que o tempo não desfez. Procurei o meu carro no estacionamento solfejando o samba “Recado” que junto cantávamos procurando inventar o nosso mundo. “Você errou quando olhou pra mim. Uma esperança fez nascer em mim. Depois levou pra tão longe de nós, o seu olhar no meu, a sua voz”... Brumas, nada mais.
(*) Crônica publicada no livro “Inquietudes”

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

 

Matrix filosófica
​Eu já afirmei e agora reitero: a ficção científica é o mais profundo dos gêneros literários (e cinematográficos, até por derivação). Cuida de questões eminentemente filosóficas, como as diferenças entre o ser humano e as máquinas, a própria identificação do indivíduo em si, as implicações do presente no futuro da humanidade, o conceito de tempo, os perigos da sacralização da tecnologia e de certos mecanismos de controle social, a possibilidade e os impactos de um contato com seres alienígenas etc. E dou como exemplos “Admirável mundo novo” (1932), de Aldous Huxley, “Fahrenheit 451” (1953), de Ray Bradbury, “1984” (de 1949), de George Orwell, “O Homem do Castelo Alto” (1962), de Philip K. Dick, “2001: Uma odisseia no espaço” (1968), de Arthur C. Clark e a série “Fundação” (iniciada em 1942), de Isaac Asimov. Coisas de craques.
Mas alguém pode objetar que eu fui buscar, para fundamentar minha tese, a crème de la crème da ficção científica e, de resto, obras e autores hoje pouco lidos pela população em geral. Pois, em resposta, vou tratar de uma obra cinematográfica que é sucesso de crítica e público. Assistida por milhões. A série/franquia “Matrix”, criada pelas irmãs Lana e Lilly Wachowski.
Além de outras coisitas (TV, quadrinhos, jogos etc.), são quatro filmes: “Matrix” (1999), o primeiro e o melhor da série, “Matrix Reloaded” (2003), “Matrix Revolutions” (2003) e “Matrix Resurrections” (2021). Com algumas variações, as estórias são protagonizadas por Keanu Reeves, Laurence Fishburne, Carrie-Anne Moss e Hugo Weaving. Maravilha de divertimento.
Vocês devem conhecer a trama, que gira em torno da realidade virtual, criada por máquinas/computadores sencientes de altíssima inteligência artificial, em que vivem aprisionados os humanos. E o fato é que esse mundo ciber distópico de “Matrix” está povoado de complexos temas filosóficos e religiosos. Qualquer pesquisa na Internet vai mostrar relações da Matrix com o “Mito da Caverna” de Platão, com as peripécias de “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll, com os “Simulacros e Simulação” de Jean Baudrillard, com o Budismo e por aí vai.
Vamos aprofundar um pouco a coisa com o apoio de Daniel Shaw e do seu “Film and Philosofy: taking movies seriously” (Wallflower Press, 2008). Segundo Shaw (que, por sua vez, pede ajuda a Carolyn Korsmeyer), “Matrix” invoca “aleatoriamente uma série de problemas clássicos de percepção, para os quais a mais óbvia referência é a Primeira Meditação/Filosofia de Descartes. Os dois principais argumentos céticos de Descartes (a inabilidade de se distinguir sonhos e experiências em vigília e a hipótese do gênio maligno) encontram os seus equivalentes cinemáticos em Matrix, que induz estados de sonho que são indistinguíveis de estados normais de consciência, e assim levando à ilusão da imensa maioria da humanidade sobre tudo o que eles pensam estar experimentando. As máquinas (que tomaram o controle da Terra e usam os seres humanos como suas fontes de energia) são o equivalente do gênio maligno [de Descartes], dirigidas que são pelo plano original do Arquiteto que as criou (como nós ficamos sabendo no fim de Matrix Reloaded, de 2003). O motivo para essa ilusão coletiva era tornar mais fácil subjugar os seres humanos. Estes são levados a acreditar que ainda estão vivendo o ápice da civilização humana (e antes da descoberta da Inteligência Artificial – IA)”. Esse é apenas um exemplo, entre outros tantos, da “filosofia” que podemos encontrar na série. A filosofia e a profundidade das temáticas de “Matrix” são de tal monta que livros são escritos para se tentar entender a coisa, a exemplo de “The Matrix and Philosophy” (2002), organizado por William Irwin.
Por fim, devo registrar que há também várias questões jurídico-filosóficas a serem exploradas em “Matrix”. Por exemplo, a importância da liberdade individual, a escolha individual ou coletiva sobre o tipo/concepção de “humanidade” em que se quer “viver” (ou “sonhar” ou “viver em sonho”) ou mesmo questões de moral/ética como trair/vender seus amigos para voltar a viver na desejada Matrix, algumas delas lembradas pelo já citado Daniel Shaw.
Dito isso, indago: quem se habilita a escrever um livro “A Matrix e o Direito”?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL