Um encontro com Rizolete Fernandes
[…] quando uma mulher está consciente de como se tece o mundo ao seu redor, obriga-se a dizer sua parte de verdade em benefício de toda mulher que nasça no futuro.
Joan Don Chittister
Dividida entre o apelo de um trabalho que chegara de última hora e o
convite de uma amiga para ir ao cinema, decidi adiar as duas coisas para
o dia seguinte e atender a um terceiro chamado: prestigiar a última
edição da temporada de verão do Insurgências Poéticas no Bardallos.
Desde que foram anunciados os homenageados do mês de janeiro, havia me
programado para assistir a essa edição do projeto; mas os compromissos
daquele dia realmente me deixaram em dúvida se eu deveria ou não sair de
casa. No entanto, uma ligação de um amigo que eu não via há algum
tempo, foi exatamente o impulso de que precisava para ir ao evento.
Explico. Por estar bastante ocupada quando Antônio me telefonou,
querendo me fazer uma visita, sugeri que nos encontrássemos em outro
horário. Ficamos de tomar um café no final da tarde e acertar a revisão
de um livro de contos que ele estava concluindo e pretendia inscrever em
um concurso literário.
O encontro foi ótimo! Além de matar a saudade, alimentamos nossa alma
com um papo delicioso sobre algumas descobertas literárias recentes e
nossas pretensões de leitura para os próximos dias. Falei do meu encanto
com o escritor uruguaio Horacio Quiroga, cuja narrativa me fascinou
desde o primeiro instante. Por intermédio de um amigo também escritor,
Edmar Claudio, tomei conhecimento desse mestre da narrativa cuja vida
foi marcada por uma série de tragédias. O livro em pauta era “Contos de
amor de loucura e de morte” (assim mesmo, sem vírgula). Faz parte dessa
antologia um dos seus contos mais famosos, “A galinha degolada”.
Antônio, por sua vez, falou com entusiasmo do mexicano Juan Rulfo, autor
da novela “Pedro Páramo”.
Depois desse papo literário e de acertamos a revisão do seu livro,
falei do meu desejo de ir ao evento no Bardallos e ele se prontificou a
me dar uma carona. Tudo parecia estar convergindo para uma noite muito
agradável. Mas antes de ir ao evento, ainda degustaria um saboroso café
na agradável companhia de Antônio. Sim, porque esquecemos de pedir o
café logo que chegamos, tamanha a nossa empolgação com o papo sobre
Horacio Quiroga e Juan Rulfo, que acabou nos conduzindo para outros
autores de língua espanhola. Antônio é aquele tipo de pessoa que sempre
tem um assunto interessante para conversar. Além de ser um mestre na
arte da narrativa, é um leitor inveterado e sempre tem ótimas dicas de
leitura. Outro dia, por exemplo, me emprestou um livro muito
interessante do paraibano Hildeberto Barbosa Filho, “As palavras, minha
vida! (memorial)” (Ideia, 2017).
Voltando ao nosso café. Como sempre, ele pediu somente um café
espresso e eu, um café e uma tapioca. Ele diz que não gosta de se
alimentar fora de casa (“no máximo um suco de laranja ou um café”), e
sempre dá verdadeiros sermões sobre os malefícios do glúten, da lactose e
do açúcar. Após o café, seguimos para o Bardallos, um famoso bar do
centro histórico de Natal, onde estava acontecendo o Insurgências
Poéticas. A homenageada da noite seria a poeta Rizolete Fernandes. Uma
noite recheada de poesia, música e artes plásticas era o que me
aguardava por lá.
Além de querer prestigiá-la porque admiro seu trabalho, meu intuito
era compensar de alguma forma minha ausência no lançamento do seu último
livro: “Tecelãs/Tejedoras” (Sarau das Letras; Trilce, 2017), uma
primorosa edição bilíngue (português-espanhol) em homenagem a vinte
mulheres, a maioria delas escritoras, as quais ganham voz através dos
poemas/autobiografias de Rizolete Fernandes, intercalados com textos, em
verso e prosa, escritos por essas tecelãs da palavra, destacados em
letra menor, como faz questão de frisar a autora na apresentação da
obra. Os poemas são escritos em primeira pessoa. Nomes como Chiquinha
Gonzaga, Frida Kahlo, Nísia Floresta, Cora Coralina, Emily Dickinson,
fazem parte dessa obra cuidadosamente elaborada que narra com maestria a
trajetória de vida e literária de cada uma das homenageadas. Histórias
narradas por uma mulher que conhece profundamente a luta por direitos
desse grupo. Afinal, estamos falando de uma escritora/poeta que é também
socióloga e militante dos movimentos feministas desde os anos 1980.
A tradução dos poemas para o espanhol foi feita por Jacqueline
Alencar, que também assina o prefácio do livro, um texto que aliás
merece toda a atenção do leitor. Como já disse em outra crônica, tenho
verdadeiro fascínio por prefácios e orelhas de livros. Ao contrário de
alguns leitores, não penso que podem influenciar negativamente minha
visão da obra. E não foi diferente com o prefácio de
“Tecelãs/Tejedoras”, um texto agradável, informativo e muito didático,
que aliás começa de forma encantadora: “Abrir o livro ‘Tecelãs’, de
Rizolete Fernandes, é como reencontrar-se com um desses poemas de Homero
ou de Virgílio, que em forma de corpo em versos nos relatam as mais
insólitas histórias […]”. Incrível como a autora consegue falar de um
tema espinhoso como é a luta das mulheres por direitos de uma forma tão
leve e poética e ao mesmo tempo. Jacqueline Alencar cita boa parte das
mulheres homenageadas por Rizolete Fernandes e encadeia muito bem a
descrição de cada uma delas, demonstrando profundo conhecimento do tema
em discussão. Ao reforçar a importância das mulheres homenageadas por
Rizolete Fernandes, ela diz: “A poeta nordestina nos vai mostrando
mulheres que foram capazes de deixar um legado para seus descendentes,
ainda que à custa de não ter o prazer de desfrutá-lo. Elas vão unidas
pelo cordão umbilical da valentia, da dignidade e de uma fé
insubornável, em seu valor e no transcendente”.
Na chegada ao Bardallos, uma agradável surpresa: encontrei um casal
de amigos que estava passando por ali casualmente. Depois de
cumprimentá-los, conversei um pouco com o artista plástico Pedro
Pereira, que estava com uma exposição de quadros e outra de camisetas
pintadas à mão. Ele e a esposa (Alda) estavam vendendo as camisetas na
calçada do bar, junto a vários outros artistas que ali expunham sua
arte. Os quadros estavam expostos no interior o bar, onde permanecerão
por alguns dias.
Os shows e o sarau em homenagem a Rizolete Fernandes começariam em
pouco tempo. Enquanto isso, do lado de fora do bar, uns tomavam uma
cerveja, outros fumavam um cigarro. Fiquei ali por um tempo apreciando
as peças do bazar e os livros de poesia que estavam à venda. Havia
também um rapaz vendendo alfajor e uma moça comercializando blocos e
cadernos com capas artesanais, um trabalho primoroso. Aliás, muito me
agrada essa ideia de poder contribuir com vários artistas cada vez que
prestigio uma edição do evento, cuja entrada colaborativa custa R$ 10.
Depois disso, entrei no bar e procurei um lugar para sentar; enquanto
aguardava alguns amigos. Ao cumprimentar Rizolete, ela gentilmente
convidou-me a sentar à mesa onde estava com algumas amigas. Agradeci e
juntei-me ao grupo. Em pouco tempo, começaria a apresentação do grupo
Agô e o recital dos poemas dela. O convite foi a deixa para uma conversa
agradável e um mergulho na sua poética. Falamos sobre a qualidade da
música do grupo Agô, cujo vocalista, Felipe Nunes, teve a delicadeza de
musicar um dos poemas dela (“Multiface”). Quando falávamos sobre o
grupo, ela lembrou sua descendência negra por parte dos avós, os quais
não conheceu. Também lamentei por não ter conhecido meus avós. Nesse
momento, falamos de um sentimento comum: a nostalgia de algo que não foi
vivido, “o que para alguns parece algo meio louco”, como ela mesma
disse. Falei do meu desejo de escrever sobre isso; no meu caso, traçando
um paralelo entre a história de alguém que teve uma boa convivência com
seu pai e a minha experiência, que praticamente não convivi com o meu.
Os assuntos foram os mais diversos; saindo um pouco do âmbito
literário, falamos de cabelos brancos (e da pressão social sofrida pelas
mulheres para mantê-los tingidos), velhice, qualidade de vida. Ela diz
aceitar a velhice com naturalidade e destaca que “o mais importante é a
vida que está levando”. Reforçou a importância de cultivarmos boas
amizades e de estarmos sempre perto das pessoas que nos fazem bem.
Um encontro que serviu para aumentar ainda mais minha admiração pela
escritora, mas sobretudo pela mulher sensível e forte que é Rizolete
Fernandes. Humildade, simpatia, delicadeza, são algumas das palavras que
descrevem muito bem a poeta de “Luas Nuas” (Una, 2006) e a cronista de
“Cotidianas” (Sarau das Letras, 2012). Aquela foi uma noite de
partilhas, não somente literárias, mas também de vida…
Na volta para casa, plena de alegria e gratidão, cheguei à conclusão
que ter ido ao Bardallos naquela noite foi realmente a melhor coisa que
fiz. O trabalho esperaria pela manhã seguinte, o cinema com a amiga,
também.