sexta-feira, 9 de junho de 2023

 RELEMBRANDO LAURO DA ESCÓSSIA

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Em 1981, o plano editorial da Fundação José Augusto, a qual presidia, contemplava a publicação do livro “Memórias de um Jornalista de Província”, do mossoroense Lauro da Escóssia, profissional da imprensa e então diretor do Museu Municipal de Mossoró. A obra foi composta e impressa na Gráfica Manibu da Fundação José Augusto e lançada em Natal, na livraria Universitária sob a bandeira desfraldada de Walter Pereira com a presença do mundo cultural de Natal e de Mossoró. Raimundo Augusto da Escóssia, seu filho, meu colega do Tribunal de Contas, trouxe-me a foto do evento para a minha curiosidade e alegria no ensejo da data do centenário do seu pai. Prometi-lhe que faria o registro público para resgate do relato autobiográfico daquele que foi não somente um marco na imprensa mossoroense mas que deixou o legado primoroso de discípulos como Dorian Jorge Freire e Jaime Hipólito Dantas que enobrecem a intelectualidade da terra de Vingt-Un Rosado.

O livro tomou o número CLVI da Coleção Mossoroense e a capa confeccionada pelo competente artista plástico Vicente Vitoriano. O prefácio de Dorian Jorge Freire foi inexcedível no estilo e na forma emocional que só ele sabia fazer, dizer e sentir quando o assunto era Mossoró e seus ídolos. A orelha foi de Raimundo Soares de Brito, monstro sagrado do tabernáculo da cultura daquele “país”. Senti-me, partícipe desse banquete de reminiscências do mestre Lauro da Escóssia porque decidi, à época, imprimir as estórias vindas de sua infância à maturidade, entre 1905 até aqueles dias do ano da graça 1981. A narrativa do autor se confunde com a própria história de Mossoró na diversidade dos temas focalizados.

Relembro-o quando o conheci pessoalmente, do alto dos seus 76 anos, aqui em Natal, na manhã luminosa dos autógrafos. O corpo, pouco curvado, pareceu-me advinda da forma da postura repetida, à máquina de escrever. Os olhos expressivos procuravam detalhes nas coisas que enxergavam como todo bom escriba provinciano. A cabeleira leonina revelava as lutas vencidas e outras adiadas porque ninguém vence todas. Exalava por todos os poros o jeito de ser, o jeito inconfundível do ser mossoroense. Ninguém melhor do que Dorian traçou o seu perfil, como amigo, colega, compadre e aluno no seu memorável prefácio. Superar o brilhante colega e imortal quem há de? A impressão que Lauro me deixou é só minha, exceptuando-se a alegria singular de haver contribuído para a impressão do seu primeiro livro.

Nasceu, como bem afirma, na madrugada friorenta de uma quinta-feira 14 de março de 1905, no número 16 da rua Almeida Castro, centro de Mossoró. A sua marca registrada, em meio a tantos fatos notáveis ligados a sua vida, está fincada na trincheira jornalística de “O Mossoroense”, verdadeira universidade onde se formou e educou gerações na arte e na lide de informar, servir e defender sua urbe, como diria o velho e saudoso alcaide Dix-Huit Rosado. 

Nas comemorações dos 100 anos, “Memória de um Jornalista de Província” mereceu a 2ª edição de parceria com outras pertinentes homenagens ao velho repórter. Ao redigir a ata dos meus sentimentos pela primeira edição, eu o faço com o orgulho de haver também modestamente contribuído para que se revelasse a força evocativa de um baluarte do bravo povo de Mossoró.

Como jornalista, Lauro tinha rara luz singular que provinha de dentro de si mesmo, sem reflexo político de ninguém. Cresceu e se firmou entre as raízes de sua terra, com a tez queimada no cristal do sol de Mossoró. Na lide jornalística, Lauro honrou e dignificou o jornalismo de sua terra.

 

 

(*) Escritor


quarta-feira, 7 de junho de 2023

 

A solenidade de “Corpus Christi”

Padre João Medeiros Filho

É uma festa móvel, celebrada numa quinta-feira, após o Domingo da Santíssima Trindade. A Eucaristia é um gesto sublime do amor de Cristo. Nela, repete-se o mistério da Encarnação, de forma intensa e profunda. Jesus transforma elementos materiais na sua pessoa. Consagra assim o universo, através dos três elementos que o representam: o trigo (pão), a uva (vinho) e a água. Seres inanimados tornam-se suporte da divindade, ali presente, abscôndita aos olhos materiais, mas patente à visão da fé. Na beleza da presença silenciosa, Ele deixa sua palavra repercutir no íntimo daqueles que dele se achegam para mitigar a sede e fome.

No sacramento do altar, a humildade assumida pelo Verbo na Encarnação é levada ao ápice. Por isso, entende-se o motivo pelo qual os judeus, ao ouvirem o Senhor anunciar que deveriam “comer a sua carne e tomar o seu sangue” (Jo 6, 51-52), consideraram tais palavras demasiadamente duras. E não podendo ou querendo aceitá-las, foram se retirando. Diante dessa reação, Cristo desafiou os apóstolos: “Vós também quereis ir embora?” (Jo 6, 67). Pedro respondeu-lhe: “A quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna” (Jo 6, 68). Teologicamente, sua resposta converte-se em profissão de fé.

A Eucaristia perpetua os ensinamentos do Senhor, máxime no que tange ao serviço e à humildade. “Com efeito, o que entre vós for o menor, esse é o maior” (Lc 9, 48). Nela, o Filho de Deus continua o seu ensinamento do amor fraterno: “Este é o meu mandamento: que vos ameis uns aos outros, assim como eu vos amei” (Jo 15,12). No Pão Eucarístico, Ele se oferece como alimento igual para todos: pobres e ricos, eruditos e iletrados, santos e pecadores. E nesse augusto sacramento, faz-nos compreender o seu gesto de perdão, doando-se indistintamente a todos. Perdoar é difícil, pois ultrapassa por vezes nossos temperamentos e limitações. Naquele alimento sagrado, Jesus ensina como deve ser o homem: despojado, disponível e de braços estendidos. Assim aceitou a Cruz, gesto este precedido do grande mistério de amor, perpetuado na missa. Nesta, continua milagres de vida. Durante sua permanência neste mundo, curou doentes e ressuscitou mortos. Hoje, pela Eucaristia reanima os desfalecidos pela dor, tibieza na fé ou ausência de Deus. 

Cristo é nossa fortaleza. Quanto mais dele nos aproximamos, mais necessidade sentimos. É uma lenta caminhada até a realização definitiva no banquete celestial. Ao receber Jesus eucaristicamente, já não somos nós que existimos, mas é Ele em nós. “Eu vivo, mas não eu; é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20), expressou o apóstolo Paulo. A Eucaristia é o plantão permanente da eterna solidariedade divina; meiguice de um Pai que envia seu Filho Unigênito para dialogar com os irmãos. Ali, Ele nos diz: “Quem vem a mim, jamais terá fome” (Jo 6, 35). A Eucaristia é a espera de Deus por nós, o abraço celestial que nos é reservado. Beijo carinhoso de um Pai cheio de bondade, que no silêncio da Hóstia nos revela amor e perdão. Eis o sublime sacramento, continuidade da presença transcendental a partir da Encarnação do Verbo. Este quis se unir à humanidade, mostrando-nos que ela tem valor infinito, não importando suas fraquezas. Deus nos perfilhou por ato de sua inefável misericórdia e generosidade.

A Eucaristia antecipa a eternidade, na qual alcançaremos a plenitude de nossa história. “Sem ela, o homem é pequeno demais para o Céu. Com ela, demasiadamente grande para a terra”, afirmou Cônego Luiz Gonzaga Monte. Ela é Deus – em seu Filho –abrandando em nós as saudades do Eterno. É impossível não ficar extasiados diante de tão admirável mistério! Interrogações e inquietudes poderão surgir no coração de alguns. Entretanto, encontrarão a paz na intimidade com o Mestre, presente no altar, de forma sacramental. Sustentados pela fé e sua luz, que ilumina nossos passos na noite de dúvidas e dificuldades, poderemos proclamar, como o saudoso Monsenhor Paulo Herôncio de Melo, no Congresso Eucarístico de Currais Novos (RN), em 1937: “Glória a Ti, ó Mistério querido, Ó Milagre sublime de amor! Glória a Ti, ó Jesus escondido, Cristo Rei e dos povos, Senhor!”

terça-feira, 6 de junho de 2023

 

Sorte minha
​Fazia algum tempo que não recebia uma mensagem do Goodreads. Para quem não conhece o dito cujo, criado em 2007, ele se intitula “o maior site do mundo para leitores e recomendações de livros”, com a missão específica de “ajudar as pessoas a encontrar e compartilhar os livros que amam”. Segundo seu fundador, o Goodreads “é um lugar onde você pode ver o que seus amigos estão lendo e vice-versa. Você pode criar ‘estantes’ para organizar o que leu (ou quer ler). Você pode reciprocamente comentar as avaliações dos demais usuários. Você pode encontrar seu próximo livro favorito. E nessa jornada com seus amigos você pode explorar novos territórios, reunir informações e expandir sua mente”. Um pouco autoajuda esse final, mas tá joia.
​Fiquei felicíssimo com a mensagem, sobretudo porque ela trazia consigo uma lista de 80 recentes “romances de mistério”, com as devidas recomendações, para que o usuário/leitor possa se enfronhar em novas aventuras do tipo: “você está procurando os romances de mistério mais populares dos últimos três anos? Oitenta deles? Em ordem? Temos uma coincidência extraordinária a relatar. Reunimos abaixo os novos mistérios e thrillers mais populares em circulação recente, conforme determinado pelo que seus colegas Goodreads recomendaram e adicionaram às suas prateleiras. Os livros aqui são classificados como os mais populares e cada um tem uma classificação média geral de 3,5 estrelas ou melhor. Normalmente melhor”.
Realmente, a proposta era/é instigante. E caí para dentro da lista.
Todavia, qual foi a minha surpresa ao descobrir que, dessa lista de mistérios do Goodreads, tidos como os mais badalados dos últimos três anos, pouquíssimos eu conhecia ou mesmo tinha ouvido falar. E olhem que a lista era/é bem diversificada: os tradicionais whodunits, cozy mysteries da moda, thrillers, cold cases, com títulos de escritores do momento e dos famosos ases da turma (tipo Stephen King, James Patterson, Harlan Coben). Conhecia talvez uma meia dúzia: “The Thursday Murder Club” (por Richard Osman), “The Cartographers” (Peng Shepherd), “The Guest List” (Lucy Foley), “The Woman in the Library” (Sulari Gentill), “The Boy from the Woods” (Harlan Coben) e “State of Terror” (Louise Penny e Hillary Rodham Clinton, a outrora primeira-dama e Secretária de Estado dos EUA). Dois deles porque tinham me chamado a atenção título e enredo, que associei à minha amiga Agatha Christie, um deles em razão da autora estadista famosa e os outros porque havia topado com eles (até nas traduções em português) em livrarias daqui e d’alhures.
Por falar em Agatha Christie, devo reconhecer, resignado, que a minha praia são mesmo os clássicos – além da minha amiga, Conan Doyle, C.K. Chesterton, Ian Fleming, Georges Simenon, Raymond Chandler, Dashiell Hammett e por aí vai –, que, graças às venturas da vida, já tive a oportunidade de ler e apreciar.
Fiquei decepcionado comigo mesmo por essa falta de familiaridade com “contemporâneos”. Quase triste. Até que me lembrei de um “slide” do nosso Américo de Oliveira Costa no seu maravilhoso “A biblioteca e seus habitantes” (Achiamé/Fundação José Augusto, 1982): “‘Homem feliz que ainda tem alguma coisa de Eça para ler’, disse, um dia, Afonso Arinos a Tristão de Athayde, ante a informação negativa deste à pergunta se lera certo volume do autor de Os Maias. Carta de Claudel a Gide (1910): ‘Você é feliz por não haver ainda lido as Mémoires d’Outre-Tombe, tendo por isso, em reserva, uma grande satisfação’. O que é uma paralela à pergunta de Eduardo Prado a Batista Pereira: ‘Já leu as Mémoires d’Outre-Tombe?’. E como a resposta não fosse afirmativa, Prado exclamaria como Arinos e Claudel: ‘Que homem feliz! Ainda pode ter esse prazer de ler pela primeira vez!’”.
Pensando bem, tudo sorte minha. Ainda tenho todos esses mistérios para desvendar, todas essas aventuras para sonhar.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

domingo, 4 de junho de 2023