quinta-feira, 28 de abril de 2022

 

DUAS HORAS

      Pas de Deux

 

 

A HORA RASA

 

não há mais onde abrigar-se

o quarto é um símbolo mudo

e a calmaria

sinal de perigo

 

os odres estão vazios

e muita cautela é preciso ao pisar

as nuvens de silêncios inflamáveis

 

outrora havia rumor de tambores

que anunciavam a chuva

mas os ventiladores pararam

 

o quarto está despido

sem sombras e sem luz

sem qualquer movimento de espera

exceto a expectativa

de que uma porta se abra

e exponha o jazigo                       

à exterioridade dos ruídos

 

 

-  Horácio Paiva     (Brasil) 

 

 

É ESTA A HORA...

 

É esta a hora perfeita em que se cala

O confuso murmurar das gentes

E dentro de nós finalmente fala

A voz grave dos sonhos indolentes.

 

É esta a hora em que as rosas são as rosas

Que floriram nos jardins persas

Onde Saadi e Hafiz as viram e as amaram.

É esta a hora das vozes misteriosas

Que os meus desejos preferiram e chamaram.

É esta a hora das longas conversas

Das folhas com as folhas unicamente.

É esta a hora em que o tempo é abolido

E nem sequer conheço a minha face.

 

 

-  Sophia de Mello Breyner     (Portugal)  

 

 

 

 

 

 

 

                              

 

EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

 

Valério Mesquita*

Mesquita.valerio@mail.com

 

Revisito o poeta Orides Fontela que, parafraseando o Eclesiastes, nos lega uma lição maravilhosa de vida quando diz que “há um tempo para desarmar os presságios; há um tempo para desamar os frutos e também um tempo para desviver o tempo”. Nos meus 50 anos de vida pública vivi a minha circunstância, no melhor dizer orteguiano: “ Eu sou eu e minha circunstância. E se não a salvo, não me salvo eu”. Sempre assumi riscos no jogo da política. Convenci-me do pensamento de Corneille de que “Vencer sem perigo é triunfar sem glória”. Conforta-me haver atravessado as noites escuras do tempo sem haver sofrido nenhuma derrota eleitoral em minha terra, à despeito do quinhão usual de tristezas, de alguns equívocos, produzidos pela difícil condição humana e política de ser.

Heródoto, historiador grego, deixou escrito que “são as circunstâncias que governam os homens e não os homens que governam as circunstâncias”.

Em 1970, ingressei no meu primeiro partido, a Arena, tendo me elegido prefeito de minha terra. Com a sua extinção, fiquei no PFL e nessa legenda conquistei o primeiro mandato de deputado estadual em 1986. No ano seguinte, por ter sido preterido na eleição da Mesa da Assembleia Legislativa, rompi com o partido e filiei-me ao PL, uma costela do PFL, ou uma dissidência em forma de legenda, àquela época. Neste partido aprendi uma amarga lição de que “na política não há só amigos e inimigos, mas conspiradores que se unem”. Nesse partido me reelegi deputado em 1990. Nele fui punido por ser livre e por não ter deixado de me indignar com os medíocres e superficiais. Permanecendo no mesmo sistema gravitacional da política do Estado, voltei ao PFL. Descartei os convites que me fizeram à época outras legendas. Retornei às origens para retomar o ritmo e fui em busca do tempo perdido, à maneira proustiana.

Mas se a política não fosse um jogo de conquistas, ela não seria tão fascinante. É justo que todos tenham pretensões no limite exato em que não prejudiquem a concorrência dos outros. Lembra-me Sartre ao dizer que: “O inferno são os outros”. Porisso é que, existem ambiciosos tanto para o bem como para o mal. Vi-me nesse processo eleitoral no dilema que me fez recorrer ao estadista Tancredo Neves depondo sobre Petrônio Portela: “Ele nunca foi arenista, governista, oportunista ou coisa que o valha. Ele teve o senso da sobrevivência. E o político que não o tem está morto”. Mesmo dissidente do PFL nas eleições de 1994, conquistei o terceiro mandato que o povo me conferiu por ter aprovado a minha atuação nos dois mandatos anteriores de deputado estadual.

Por fim, em 1998, cheguei pela quarta vez a Assembleia e posso, como poucos, após todo esse tempo de vida pública, proclamar que trabalhei pelo Rio Grande do Norte e tenho uma imensa gama de serviços prestados a minha terra Macaíba no âmbito da cultura, do social, da saúde e da educação. É o patrimônio mais expressivo que posso deixar para os meus filhos. É a minha paz cósmica satisfeita, lição maior do meu pai Alfredo Mesquita Filho que morreu pobre e com a dignidade intacta.

No começo do ano 2000, fui indicado por unanimidade pelo Poder Legislativo para servir ao Tribunal de Contas do Estado por quase 12 anos e lá me aposentei ao completar 70 anos, servindo-o também como presidente. Sou servidor público de uma só aposentadoria, pois no desempenho do meu segundo mandato parlamentar votei contra a aposentadoria de deputado. Deixei a vida pública. E assim respondo a legião de amigos que me indagam o retorno e a razão do porque recusei convites para disputas de mandatos eleitorais.

(*) Escritor

 

Monsenhor Flávio Medeiros, protonotário apostólico

Padre João Medeiros Filho

Talvez, poucos tenham conhecimento dessa honraria e sua importância na História Eclesiástica. Depois do cardinalato, trata-se da mais elevada distinção que a Igreja concede a seus clérigos. O episcopado não é título honorífico, mas o último grau do sacramento da Ordem, portanto, um ministério a ser exercido junto ao Povo de Deus. Recentemente, o Papa Francisco nomeou Padre Flávio José de Medeiros Filho cônego efetivo da Basílica de São Pedro (Vaticano), elevando-o consequentemente e “pari passu” à dignidade de protonotário apostólico. Atualmente, este galardão só é concedido a eclesiásticos membros da diplomacia e a servidores da Santa Sé. Monsenhor Flávio tem suas raízes em Acari. Há quase dezessete anos, vem prestando relevantes serviços à cúpula da Igreja, notadamente como cerimoniário papal. É um representante do Rio Grande do Norte, no Vaticano. Há unanimidade em apontar sua fidalguia e presteza. Cabe ressaltar o seu empenho para que a Sé Apostólica elevasse à qualidade de Basílica Menor a Matriz de Nossa Senhora da Guia do Acari, pertencente à diocese de Caicó. “O zelo de tua casa me devora” (Sl 69/68, 10).

Os protonotários apostólicos podem igualmente ser chamados de prelados, o que, por vezes, dava margem a dúvidas de que fossem bispos. Isso acontecia devido às vestes, insígnias e a alguns privilégios, como o uso da mitra episcopal, em missas solenes. Há mais de meio século, o Rio Grande do Norte não conhecia eclesiásticos com tal distinção. Foram os últimos: Monsenhores José Alves Ferreira Landim, falecido em 1968 e Paulo Herôncio de Melo, que nos deixou em 1963, tendo sido o primeiro (do qual se tem notícia) José Paulino de Andrade, em1904.

Até Paulo VI, havia três categorias de monsenhores: os camareiros secretos de Sua Santidade, os prelados domésticos e os protonotários apostólicos, subdivididos em: numerários (apenas sete, exercendo funções importantes na Cúria Romana) e os supranumerários, podendo residir, fora de Roma. Paulo VI modificou a nomenclatura, denominando os camareiros secretos capelães de Sua Santidade e prelados de honra os prelados domésticos. Esta última classe foi extinta pelo Papa Francisco. Este modificou as normas para a concessão do título de capelão de Sua Santidade e restringiu a outorga de protonotários apenas a clérigos diplomatas da Santa Sé ou exercendo funções específicas, em órgãos do Vaticano.

Câmara Cascudo escreveu em sua Acta Diurna um magistral texto intitulado “O primeiro norte-rio-grandense com o título de bispo?” Nele, procurou esclarecer dúvidas e elucidar uma questão local. O historiador potiguar explica o uso da expressão “prelado urbano”, como era chamado Monsenhor José Paulino de Andrade, um mipibuense, nascido em 1861. Nas primeiras décadas do século XX, assim eram denominados os protonotários para distingui-los dos prelados domésticos. Muitos imaginavam ter sido ele o primeiro potiguar a ascender ao episcopado. Por algum tempo, Padre José Paulino foi pároco de Pouso Alegre (MG), hoje sede arquiepiscopal. Naquela cidade, nosso conterrâneo dinamizou a paróquia para torná-la sede diocesana. Recebeu os incentivos do bispo de Mariana (Dom Silvério Gomes Pimenta), ao qual estava subordinado. Padre José Paulino preparou com esmero a matriz pouso-alegrense para se tornar catedral, construiu o seminário e o paço episcopal, organizando o patrimônio do futuro bispado. Seus paroquianos esperavam que o ilustre norte-rio-grandense fosse escolhido bispo pelo seu dinamismo pastoral.

A nova diocese mineira foi criada em 4 de agosto de 1900. Entretanto, em maio de 1901, o Papa Leão XIII designou Dom João Batista Correia Nery seu primeiro bispo, transferindo-o de Vitória (ES). Padre José Paulino deixou o sul de Minas, retornando ao RN. A pedido de Dom Nery e dos fiéis da sua antiga paróquia, ele voltou às Gerais, em 1904. Numa tentativa de fixá-lo em sua antiga paróquia, foi muito festejado e agraciado com as honras de protonotário apostólico. Foi o reconhecimento pela sua dedicação à Igreja. O eminente potiguar retornou a Natal, onde terminou os seus dias. Em Pouso Alegre, é nome de rua e de escola. É preciso ter sempre em mente o que escreveu o apóstolo Paulo: “Tudo o que fizerdes, fazei-o para o Senhor e não para os homens” (Col 3, 23).

  


SALTO ALTO É SÓ SALTO ALTO

Tomislav R. Femenick - Jornalista


Minha primeira viagem de avião foi em 1946. Eu e minha mãe fizemos uma viagem fantástica. De madrugada, tomamos um voo da Cruzeiro do Sul no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, com escala em Vitória, Ilhéus, Salvador, Aracajú, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal e, finalmente, Mossoró, nosso destino final. Tudo era novidade. No Rio eu estudava interno no Instituto Guararapes, em Lins de Vasconcelos, então quase zona rural da antiga capital federal. O que me fascinou foi um fato inusitado para mim: todos os passageiros homens usavam ternos brancos, gravatas e sapatos pretos. Parecia uma farda.

Como minha mãe tinha enviuvado recentemente, em Mossoró fomos morar na casa de meus avôs, o coronel José Rodrigues e Dona Mariquinha. Solteiros lá moravam, também, os meus tios Mota Lima e José Vicente. Todas as noites eu os via vestir seus ternos brancos, de linho irlandês S120, calças suas meias Lupo e seus sapatos Fox pretos, para fazer o footing na Praça Vigário Antonio Joaquim. 

As mulheres usavam mais variedade. Seus vestidos iam da saia e blusa, tradicionais, aos tubinhos franceses e melindrosas “made in USA”, porém adaptados; menos apertados e com saias abaixo do joelho. Já os sapatos femininos eram um caso à parte. Sandálias, só em casa e em convívio amigo. Fora disso, sapatos de salto alto, por mais incômodos que fossem O importante era seguir o império da moda.

Em determinado instante, tudo mudou: os hippies impuseram as calças jeans (depois os estilistas e a indústria delas se apropriaram), as camisetas e os tênis viraram peças unísseis. E os ternos brancos? “Morreram de morte morrida”. 

Daquela época, somente os saltos altos sobreviveram. As mulheres continuam fiéis a esse instrumento de tortura. Porém o mais bizarro é que nós, os homens, também os usamos. Aliás, para quem não sabe, eles foram inventados no século XVI para uso masculino, para os soldados de exércitos asiáticos. Chegaram e se instalaram na realeza europeia. Basta ver os retratos dos reis franceses pintados por pintores famosos. 

Mais recentemente, na segunda metade do século passado, houve uma verdadeira febre em busca de botas com salto carrapeta, principalmente as fabricadas pela Motinha, uma indústria paulista, que apresentava um pequeno salto externo e mais uma espécie de plataforma interna, escondida no calçado. Nos bailes do América era só o que se via, era uma febre, parece que contagiosa.  

 Já falei neste espaço sobre a minha insônia, em média somente conseguia dormir três horas. Hoje durmo um pouco mais. Lá na minha Mossoró eu tinha um colega da mesma irregularidade. O meu amigo Rafael Negreiros também dormia pouco e, como morávamos bem perto, usávamos essas horas para conversarmos. Certa noite começamos a falar de um fato que dominava as conversas da cidade: um amigo comum que havia sido nomeado para um importante cargo na Prefeitura, só recebia os subordinados e munícipes com hora marcado e exigia ser tratado por DOUTOR. O diagnóstico de Rafael foi preciso: “subiu nos saltos altos”.  

De lá para cá sempre que me deparo com alguma arrogância, uma suposta superioridade moral, social, intelectual ou de comportamento, classifico tudo como o que realmente é: prepotência, desprezo aos outros, orgulho ostensivo, altivez besta.


Tribuna do Norte. Natal, 27 abr. 2022


 Os conselhos de educação 

Padre João Medeiros Filho 

Em maio próximo, o Conselho Estadual de Educação do Rio Grande do Norte –CEE/RN fará sessenta anos. Criado pela Lei 2.768/62, abriga, ao longo desse período, inúmeras histórias de notáveis educadores, comprometidos com a lide educacional de interesse coletivo. Atendendo a amigos e pessoas ligadas e estudiosas do tema, estou publicando este texto, parte de um pronunciamento proferido, há alguns anos, naquele colegiado. Os conselhos de educação (nacional, estaduais e municipais)são órgãos de Estado, não de governos. Têm por finalidade precípua representar a sociedade civil. Constituem-se em fóruns representativos da vontade plural para superar o arbítrio do desejo singular. Objetiva propor a estratégia de continuidade das políticas públicas no campo educacional. Por isso, é de bom alvitre e desejável que a indicação de seus membros busque a renovação não coincidente com os mandatos dos governantes, evitando-se a quebra de continuidade. Tais colegiados devem ser constituídos de pessoas de notório conhecimento teórico e comprovada vivência no campo pedagógico para refletir a concepção educacional da sociedade como um todo e não de uma fração dela. Os conselheiros são designados e não nomeados pelos agentes executivos. Do ponto de vista administrativojurídico, distinguem-se designar e nomear. Há que ter em mente o caráter normativo, deliberativo e consultivo dos conselhos na regulação de políticas públicas, em termos da oferta de ensino. Sua missão é alvidrar a legislação de regência, interpretando-a e iluminando a caminhada das instituições educacionais, por meio de normas claras e atualizadas. Portanto, para cumprir seu papel um conselho de educação necessita de autonomia plena em suas funções e competências próprias. Não deve ser um apêndice da estrutura administrativa de governos. Estes, não raro, são tentados a representar um segmento da sociedade. Não cabe ao poder executivo interferir direta ou indiretamente em assuntos de competência própria e privativa dos colegiados. Estes, enquanto órgãos de Estado, caracterizam-se como espaço de diálogo, exercendo função mediadora entre o ente público e a sociedade. Eles não comportam debates característicos da Academia, onde costumam avolumar-se questionamentos, teorias, hipóteses, correntes e metodologias. Tampouco, podem tornar-se instrumentos meramente políticos, refletindo posições e posturas de setores governamentais. São essencialmente órgãos normativos, cuidando da legislação edo estatuído como política educacional de Estado. Não se pode esquecer o que está determinado em leis e deverá constar de seu corpo regimental. Trata-se de um colegiado responsável e capaz, nos termos da legislação de regência, de assegurar a legítima e efetiva participação da sociedade na execução e no aperfeiçoamento da educação. No que tange aos diplomas legais vigentes, vale ressaltar que a Carta Magna se refere aos sistemas de ensino nos Artigos 211 e 212, ao tratar de sua organização. O Artigo 8º, da Lei 9394/96, em vigor, também trata do mesmo tema. Cabe destacar o estabelecido nos Artigos 9º, 10 e 11 do citado diploma, conferindo aos entes federados, por meio de seus sistemas de ensino (nos quais se inserem os conselhos) as incumbências de regular, supervisionar, avaliar e editar normas complementares para o funcionamento de instituições educacionais e cursos a elas vinculados. Outrora, Louis Pasteur sugeriu gravar no pórtico de um hospital parisiense estes dizeres: “Ao paciente: Não quero saber qual é a sua etnia, religião ou ideologia. O que interessa é a sua dor”. “Mutatis mutandis”, palavras similares poderiam se inserir no direcionamento dos conselhos de educação. Não importa se a escola é pública, particular, confessional ou filantrópica. O que deve contar é o propósito sério de educar, a busca incessante da qualidade de ensino e o cumprimento das normas que visam ao bem comum. É oportuno lembrar as palavras de Ariano Suassuna: “Vivemos de modismos e nomes, faltam-nos princípios e convicções. Pensamos que isto é educar. Neste país, criam-se ídolos e se desconhecem os esforços anônimos e edificantes de plêiades de mestres abnegados fincados nesses sertões brasileiros. Quem educa mais: o modismo ou o amor de quem transmite o saber? Quem sabe, não repete coisas ultrapassadas”. Aos educadores convém lembrar o ensinamento bíblico: “Ensina ao jovem o caminho certo a seguir e ele não se desviará, mesmo quando envelhecer” (Pr 22, 6).

 Uma voluntária da pátria Daladier Pessoa Cunha Lima 

Reitor do UNI-RN 

Diante da fraqueza das forças armadas brasileiras, no tocante a armas e a efetivo, o Império do Brasil, à frente o grande Dom Pedro II, a fim de se preparar para a Guerra do Paraguai (de 1864 a 1870), abriu o voluntariado para homens aptos para esse desafio. Estava criado o Corpo de Voluntários da Pátria, e o primeiro a se alistar foi o próprio Imperador, que chegou a atuar na frente de batalha. Cabia aos Presidentes das províncias, nomeados pelo Governo central, a formação dos seus grupos de Voluntários da Pátria. À época da guerra do Paraguai, o presidente da província do Piauí era Franklin A. de Menezes Doria, futuro barão de Loreto, que permitiu a uma mulher sentar praça no batalhão de V. da Pátria, no posto de segundosargento. Tratava-se da cearense Jovita Alves Feitosa (1848-1967), que fora morar no Piauí a fim de se alistar para participar da guerra contra o Paraguai, principalmente para defender a honra da mulher brasileira, vítima das atrocidades dos invasores. No intuito de ser logo aceita como V.P., Jovita cortou o cabelo e vestiu roupa de homem, pois a missão era vedada às mulheres. O disfarce deu certo e Jovita Alves Feitosa foi aceita como voluntária. Porém, durou pouco seu regozijo, pois alguém notou suas orelhas furadas e a presença de seios, motivos para a rejeição do seu sonho. Mas a Joana d’Arc (1412-31) brasileira não desistiu do seu heroico intento e apelou para o Presidente da província do Piauí, que, sensível ao gesto, ordenou a inclusão da jovem de 17 anos, ao segundo grupo de Voluntários da Pátria. A essa altura, Jovita já recebia muitos aplausos públicos, na condição de heroína nacional. O segundo corpo de Voluntários do Piauí, com 460 praças, entre eles, a segundo-sargento Jovita Alves Feitosa, partiu de Terezina a 10 de agosto de 1865. O destino era o Rio de Janeiro e o percurso, feito de navio, levou 37 dias, com escalas em São Luís, João Pessoa, Recife e Salvador. Em cada uma dessas cidades, Jovita recebeu grandes homenagens das autoridades e do próprio povo. Em São Luís, o grupo foi homenageado em peça teatral e, ao final, foi exigida a presença da segundo-sargento no palco, quando a cobriram de flores, sob intensos aplausos. No Recife, Jovita foi hospedada no Palácio do Governo, e, no Teatro Santa Isabel, houve um espetáculo em sua honra, inclusive declamações de poesias. A 04 de setembro, o vapor chegou a Salvador, e a voluntária voltou a receber grandes homenagens. No entanto, como sempre existem as “vozes dissidentes”, foi o que ocorreu com todo aquele louvor à figura de uma mulher humilde, nordestina, além de pouca instrução, e Jovita Alves Feitosa sofreu muitas decepções (assunto para outra crônica). Mas seu nome consta, desde 2018, no Livro dos Heróis e das Heroínas da Pátria, depositado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 28/04/2022

segunda-feira, 25 de abril de 2022

 

RELEMBRANDO TIA SOFIA DE ANDRADE DUARTE

 

Valério Mesquita

Mesquita.valerio@gmail.com

 

Rua Voluntários da Pátria 722, Cidade Alta, Natal. Telefone: 2901. Era o endereço do casal Temístocles Duarte e Sofia de Andrade Duarte. Corria o ano de 1954. Eu chegara de Macaíba aos 12 anos para estudar no Colégio Marista e neste lar me hospedei, trazido pelos meus pais. Sofiinha, assim chamada carinhosamente por todos, era a filha caçula de Dario Jordão de Andrade e Sofia Curcio de Andrade, filha de imigrantes italianos. Mas, em minha tia, pontificavam os traços ineludíveis dos ancestrais europeus, cuja juventude em Macaíba e Natal chamava a atenção pela beleza. Herdou, ainda, de sua mãe a coragem espartana, quando enfrentou a viuvez – ainda muito jovem – genitora de uma prole de seis filhos: Clóvis, Nair (minha mãe), Dario, Floriano, Nilda e a própria Sofiinha.

Clóvis Jordão de Andrade foi funcionário federal da Alfândega em Recife, além de escritor e poeta com vários livros publicados. E Dario Jordão de Andrade destacou-se na magistratura como juiz de Direito e jurista de reconhecido valor no Rio Grande do Norte. Do casamento com Temístocles, funcionário concursado do Fisco Estadual, nasceram Sililde e Ticiano Duarte. Emerge, agora, como uma saga da memória, a primeira residência à rua 13 de Maio, hoje Princesa Isabel. Ali próxima, a modesta mercearia de minha avó, pois, a família Andrade sempre foi unida e pacífica sob o comando seguro da sua matriarca. Mas, Sofiinha, era a líder inconteste dos irmãos. A sua palavra soava como a última em qualquer assunto, fosse familiar, político, religioso, comercial, etc.

Recordo o seu desempenho pragmático e ostensivo quando saía às compras com a mana mais velha Nair. Na “Nova Paris” de Nivaldo Bonifácio, avenida Rio Branco, após a sessão de prova de perfumes, minha mãe, antes de escolher, por hábito consuetudinário, consultava a irmã: “Sofia, esse perfume parece o melhor. O que acha?”. Sofiinha, envolvente e itálica, gesticula e convence: “Nair, minha mana, é porque você não provou este”. Sob o olhar curioso de Nivaldo, a obediente Nair assentia docilmente.

Relembro Sofiinha, católica apostólica romana e sua fé fervorosa na Virgem Maria. Acompanhava-a no terço semanal do Patronato da Medalha Milagrosa, na Praça André de Albuquerque. Ela se destacava pelo espírito nato de liderar, opinar e persuadir. Sililde, Ticiano e eu não escapávamos de suas repreensões domésticas. Ali perto, na Voluntários da Pátria, a vizinhança amiga, a Padaria União de Avelino Teixeira Filho, e seu marketing aliciante: “Impera pelo estoque, domina pelo trato e convence pelo preço”.

Por outro lado, testemunhei sua altiva disposição de luta e coragem espiritual na superação de obstáculos que ficaram em mim como radiosas manifestações do seu temperamento peninsular. A propósito dessa imagem recorrente, foi singular sua atitude de socorrer em Recife o irmão Clóvis, gravemente enfermo, tal qual uma rosa mística. O primogênito faleceu segurando as suas mãos samaritanas num momento trágico e emocional. Sofiinha me impressionava pela visão beatificadamente lírica da fé cristã, no exercício diuturno da recitação do terço e da condição humanitária de ser.

Outra postura de sua incomparável beleza de procederb era a dramática e quase teatral exibição de se confessar macaibense, como se quisesse provar uma verdade científica, universal e superior de sua cidadania. Isso, comovia a todos. Ela foi, apenas, uma mulher simples, do lar, da gente, despretensiosa, mas líder e responsável pela integração democrática da família que irradiava luz rara e personalíssima.

 

 

OS BAOBÁS BRASILEIROS

 

Diogenes da Cunha Lima

 

Por serem árvores sagradas na África, os baobás não podem ser cortados, danificados e merecem homenagens místicas, velas votivas, fitas e outros louvores. Perto deles não há maldade que resista, cura mau-olhado, alegra a vida. É símbolo reconhecido da resistência negra. Ao contrário das pessoas, não são, pois, discriminados, excluídos na participação social.

  Hoje, o baobá é brasileiro. Tanto quanto os afrodescendentes. Aqui vivem, multiplicam-se nos Estados, são estimados. Viram poemas, músicas, estudos biossociológicos.  

   Há 30 anos, comprei um terreno na rua São José para, assim, evitar a construção de um belo edifício, salvando o mais antigo habitante da nossa cidade, chamado de “O Baobá do Poeta”. Venho pagando, sem sofrer, o imposto predial devido porque, em três décadas, a árvore só me tem dado alegrias.

Professores e alunos de colégios potiguares fazem a festa ao seu redor. Então, converso com eles sobre a preservação da natureza, a beleza das flores que a árvore produz, a história de “O Pequeno Príncipe”. Normalmente, as crianças retribuem com desenhos, pinturas, observações graciosas e muitas perguntas.

  No local, são promovidos eventos especiais: apresentação de teatro infantil, lançamentos de livros, acontecimentos culturais variados. Entre os quais, são notáveis o circuito de bike, do baobá de Natal ao baobá de Nísia Floresta; celebração da consciência negra e festa de instituição de invisuais, os cegos.

O baobá de Natal inspirou o conjunto de danças Cisne Negro, que fez 50 apresentações do espetáculo em São Paulo. A exposição do tema no Ibirapuera atraiu milhares de visitantes.

Jornais e revistas do Brasil e de vários países registram e celebram o maior baobá do país, com seus 19,5 metros de circunferência. Ele é mulher. No documentário elaborado por Woldney Ribeiro, a atriz afrodescendente Tony Silva sai de dentro da árvore e conta magistralmente a história do “Baobá do Poeta”. Ganhador de prêmios, o curta-metragem foi apresentado no Festival Brasil-Áustria, em Gmund, cidade das artes, e aplaudido de pé. Com legendas em alemão, foi exibido em escolas. 

Ativistas e idealistas criaram o Fundo Baobá para a equidade social, construindo um senso de justiça e o reconhecimento das virtudes da negritude brasileira.  

O Brasil teve cinco Independências: a comercial, a política, a heroica formal, a estética e a Independência negra, que ainda se busca alcançar. Todo brasileiro é beneficiário das origens africanas nos costumes, nas artes, na dança, na música, na literatura. Precisamos retribuir, abraçando a nossa identidade africana.

 

 

LIBERDADE: POEMA E CANÇÃO

 

Os que elegem e lutam pela LIBERDADE, como valor básico e prioritário, gostarão desta homenagem que ora faço, composta pela transcrição de um poema e uma canção, ambos célebres; esta,  adotada pelos partigiani  -  combatentes da Resistência italiana, na luta conta o nazifascismo  -, e, aquele, de um grande poeta francês, Paul Éluard, partisan que lutou nas fileiras patrióticas da Resistência francesa. E tudo durante a Segunda Guerra Mundial, conflito que teve como resultado a vitória da DEMOCRACIA, e do qual também participaram os nossos heroicos pracinhas. E viva a LIBERDADE, a DEMOCRACIA e a JUSTIÇA SOCIAL!

 

Mas comecemos pelo poema, intitulado “Une seule pensée”, em tradução dos mestres Manuel Bandeira e Carlos Drumond de Andrade:

 

UM ÚNICO PENSAMENTO

 

Nos meus cadernos de escola

Nesta carteira, nas árvores,

Nas areias e na neve

Escrevo teu nome

 

Em toda página lida

Em toda página branca,

Pedra, sangue, papel, cinza,

Escrevo teu nome

 

Nas imagens redouradas,

Na armadura dos guerreiros,

E na coroa dos reis

Escrevo teu nome

 

Nas jungles e no deserto,

Nos ninhos e nas giestas,

No céu da minha infância

Escrevo teu nome

 

Nas campinas, no horizonte,

Nas asas dos passarinhos

E no moinho das sombras

Escrevo teu nome

 

Nas veredas acordadas

E nos caminhos abertos,

Nas praças que regurgitam

Escrevo teu nome

 

Na lâmpada que se acende,

Na lâmpada que se apaga,

Em minhas casas reunidas

Escrevo teu nome

 

Em meu cão guloso e meigo,

Em suas orelhas fitas,

Em sua pata canhestra

Escrevo teu nome

 

No trampolim desta porta,

Nos objetos familiares,

Na língua do fogo puro

Escrevo teu nome

 

Em toda carne possuída,

Na fronte de meus amigos,

Em cada mão que se estende

Escrevo teu nome

 

Em meus refúgios destruídos,

Em meus faróis desabados,

Nas paredes do meu tédio

Escrevo teu nome

 

Na ausência sem mais desejos,

Na solidão despojada,

E nas escadas da morte

Escrevo teu nome

 

Na saúde recobrada

No perigo dissipado

Na esperança sem memórias

Escrevo teu nome

 

E no poder de uma palavra

Recomeço minha vida

Nasci pra te conhecer

E te chamar

LIBERDADE.

 

(Paul Éluard)

 

 

Quanto à canção, popularíssima, e que consagra a grande festa cívica italiana, il GIORNO DELLA LIBERAZIONE (Dia da Libertação, feriado nacional), realizada, anualmente, a 25 de abril, é BELLA CIAO, que pode ser ouvida e admirada, acompanhada de tradução,  através do link que ora transcrevo. Portanto, toque no link para tocar a música:

 

https://www.letras.mus.br/banda-bassotti/1080528/traducao.html

 

Acrescento, para finalizar, com “pingo nos is”, minha OITAVA SOCIAL, profissão de fé e afirmação de valores pelos quais ofereço o meu combate poético e existencial:

 

OITAVA SOCIAL

 

se quereis saber olhai

não vos falte o senso lógico

em três palavras tereis

meu viés ideológico

o que logo encontrareis

nessa trindade ideal:

liberdade democracia

e justiça social

 

-  Horácio Paiva

 

Vai o texto da crônica publicada hoje, 24 de abril de 2022, no jornal Tribuna do Norte (Natal/RN):
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O policial siciliano
Conheci Andrea Camilleri (1925-2019) por intermédio do meu conterrâneo e amigo Marcelo Navarro Ribeiro Dantas. Toda vez que se fala sobre literatura policial/detetivesca, o outro Marcelo cita – e muito elogia – Camilleri e o seu comissário Montalbano. O amigo tem toda razão.
Andrea Calogero Camilleri nasceu na Sicília, a famosa ilha que é “chutada” pela não menos famosa “bota” italiana. Mais precisamente em Porto Empedocle, comuna batizada em homenagem ao filósofo Empedocles (106-46 a.C.) e que foi a inspiração para a ficcional cidade de Vigata, onde estão essencialmente ambientadas as “investigações” do tal comissário. Essa mistura fez sucesso: legalmente, chegaram até a amalgamar os nomes das duas cidades, virando, a comuna verdadeira, durante um lustro, Porto Empedocle Vigata. Digo tudo isso porque essa ambientação na Sicília italiana é muito importante para a construção tanto das estórias como da linguagem dos policiais de Camilleri.
Curiosamente, Andrea Camilleri foi durante muito tempo autor, roteirista e diretor de TV (incluindo a badalada RAI) e de teatro. Viveu décadas em Roma até o seu recente encantamento (2019). A TV e o teatro eram as suas praias, pelo menos publicamente, tendo até alguns de seus romances, quando originalmente escritos (lá pelos anos 1960), sido recusados por editoras mais desavisadas. Sua ficção em prosa só ganhou espaço tardiamente. Como informam os meus guias “Tutto Letteratura Italiana” (De Agostine Editore, 2005) e “Gli spilli fissano le idee – Letteratura Italiana 3” (Edizione Alpha Test, 2016), foi com seus romances e contos de ambientação siciliana, tais como “Un filo di fumo” (1980), “Il birraio di Preston” (1995) “La concessione del telefono” (1998) e “Il re di Girgenti” (2001), e especialmente com os seus romances policiais/detetivescos, centrados na figura sanguínea do comissário de polícia Montalbano, elaborados fazendo uso de uma linguagem fictícia, uma mistura da língua nacional e do dialeto siciliano, tais como “La forma dell’acqua” (1994), “Il cane di terracota” (1996), “La voce del violino” (1997), “L’odore della notte” (2001) e “La Pazienza del Ragno” (2004).
Entretanto, embora tardio, o Camilleri romancista foi um sucesso estrondoso. Sobretudo em fins dos anos 1990 e, solidamente, nestas primeiras décadas do século XXI. Foi e é muito popular na sua Itália e fora dela. Foi naturalmente bater na TV com o seu comissário Montalbano. A RAI mesma produziu duas séries bem conhecidas: “Il commissario Montalbano” e “Il giovane Montalbano”. A BBC e outras redes menos votadas retransmitiram as temporadas. Essa mistura livro, cinema e TV é tudo.
Para vocês terem uma ideia, já no meu excelente “Giallo: poliziesco, thriller e detective story” (Editore Leonardo Arte, 1999), livro publicado sobre a direção/edição de Sergio Giuffrida e Riccardo Mazzoni, era anotado que, “para chegar à atualidade, não se pode esquecer o fenômeno Andrea Camilleri, um caso editorial sem precedentes: oito de seus livros nos primeiros doze lugares na lista dos best-sellers de 1998. Um sucesso que veio tarde para ele e para seu herói Montalbano (o primeiro romance, ele o havia escrito, sem encontrar editores dispostos a publicá-lo, nos anos sessenta), mas a espera foi mais do que recompensada”.
Bom, para terminar, tomando por mote a história do Andrea Camilleri romancista e do seu comissário Montalbano, devaneio com um sucesso tardio. Quem sabe não mudo de praia? Viro outrem: de cronista para ficcionista. Vou me inspirar anotando, página por página, o clássico “A forma da água” (numa edição da BestBolso, de 2011, que tenho em mãos). Nunca é tarde para se apreender. E, pelo visto, nunca é tarde para se fazer sucesso contando crimes, mistérios e assemelhados. E, se sucesso nas letras não for o destino do Marcelo de agora, quem sabe não o é para o outro Marcelo?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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