sexta-feira, 1 de outubro de 2021

 


Minhas Cartas de Cotovelo – versão de 2021-43

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

       No vocabulário da natureza, a Primavera é o começo de um novo ciclo, que representa um nascimento.

       É o momento em que as plantas e a própria natureza se tornam exuberantes para outro processo de renascimento.

       Nesse clima de um sol primaveril, no primeiro dia de outubro, um espírito partiu para seu último voo deste plano terreno, que aqui foi uma artesã – Dona SOCORRO, minha vizinha da Rua Parnaíba de Cotovelo.

       Em seu corpo material era uma criatura profundamente admirada, pela sua simplicidade, sempre com a sua bata branca e chapéu, que costumava ir ao mar para molhar seus pés nas águas sagradas da praia maravilhosa que temos, que tive a sorte de vê-la,ainda, usar a passarela que construímos eu e Octávio Lamartine e, nas poucas horas vagas, limpava a rua e apanhava as folhas dos ventos do outono.

       Minha pranteada THEREZINHA tinha grande amizade com ela, talvez, até, pelas suas características com Dona Rosa, sua mãe e sempre travavam conversas cordiais sobre assuntos variados, mas com mais vezes sobre seus trabalhos com a costura de cortinas – numa dessas, tiramos a fotografia que está no início desta mensagem.

       Certamente vão se encontrar na Casa Celestial, e com muita alegria, dando continuidade a uma amizade de mais de uma dezena de anos.

       A primavera, que representa alegria, às vezes nos prega uma peça e nos provoca saudade, mas, igualmente, nos deixa a impressão da passividade com que carrega os filhos de Deus, pois as duas amigas partiram durante o sono.

       Hoje acordei com a claridade e o canto dos pássaros que povoam nossas cercanias.Talvez tenham vindo anunciar que outro pássaro deixou esta dimensão da existência.

       Esta noite, durante a missa, a minha oração será diferente – agora para agradecer a Deus por ter levado nossa irmã na paz de criança dormindo.

       São as coisas da vida com as quais convivo, mas sem a plena conformação.

       Senhor tenha piedade de Dona Socorro em sua nova morada e de todos nós, que continuamos neste espaço do universo terreno.

 

 

  



Este é o número de acessos ao nosso BLOG DO MIRANDA GOMES. 

OBRIGADO. Rogo ao Criador que me permita continuar essa missão, enquanto a memória ainda esteja íntegra.

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 Antuérpia 1920 e Tóquio 2020 

Daladier Pessoa Cunha Lima Reitor do UNI-RN 

 

Ao se comparar as recentes Olimpíadas do Japão e as realizadas em 1920, na Bélgica, nota-se que algo similar envolveu as duas: as pandemias virais causadas pelo SARS-Cov-2, com a Covid-19, e pelo H1N1 , com a gripe espanhola. Em ambos os Jogos houve protestos, tanto dos belgas quanto dos japoneses, para que a grande festa esportiva não ocorresse em seus países, com receio de se agravarem as condições de saúde de suas populações. Porém, no caso dos Jogos de 1920, um outro fator contra o evento foi até pior, pois o armistício que pôs fim à Primeira Guerra mal acabara de ser selado. Um estudo feito na Universidade Gent, da Bélgica, aponta a Guerra como o principal fator nas barreiras para as Olimpíadas de 1920, apesar da gravidade da gripe espanhola. Veja-se, por exemplo, a ausência dos países derrotados, Alemanha, Áustria, Hungria, Bulgária e Turquia, além da URSS, que preferiu ficar de fora. No rastro da Guerra, restou a pobreza em escala mundial e a consequente restrição de gastos com as Olimpíadas, a começar pelas acomodações dos atletas, que dormiam em camas sem colchões e em salas para 15 pessoas. A alimentação foi à base de pão, sardinha e café, ficando outras despesas por conta das delegações. Consta que grande parte da equipe dos Estados Unidos viajou para a Europa no mesmo navio usado para devolver corpos de soldados americanos mortos em combate, meses antes. O forte odor de formol muito perturbou a viagem dos atletas daquele país. Essas enormes dificuldades servem para mostrar a força do esporte, capaz de promover a paz por meio de competições renhidas e saudáveis. Tanto nos jogos de Antuérpia quanto nos de Tóquio, o COI apostou e ganhou com as decisões de manter os dois grandes eventos. Uma matéria na Folha de S. Paulo, assinada pela jornalista Anna Virgínia Balloussier, aborda esse assunto de forma bem interessante. Começa com uma foto da atleta norte-americana Ethelda Bleibtrey (1902- 1978), vencedora de todas as provas de natação, em 1920. Ela foi presa por retirar as meias que usava para nadar em uma piscina, até então uma prática obrigatória, e a sua ousadia venceu o atraso. As Olimpíadas de Antuérpia 1920, cidade histórica da Bélgica, terra natal do grande pintor Peter Paul Rubens (1577-1640), marcaram a estreia do Brasil nos Jogos. Os 21 atletas brasileiros fizeram uma viagem no navio a vapor Curvelo, numa travessia que durou quase um mês, sem conforto e desgastante. Os patrícios ganharam três medalhas, todas no tiro, inclusa uma de ouro, do tenente Guilherme Paraense. Foi na Bélgica que, pela primeira vez, tremulou a bandeira olímpica com os cinco aneis, houve a revoada de pombos da paz e ouviu-se o juramento dos atletas. Em Tóquio, a tecnologia dominou, haja vista os belos espetáculos na abertura e no encerramento, inclusive com a beleza dos origamis de papel no lugar e para o sossego dos pombinhos brancos. Texto publicado na Tribuna do Norte, em 30/09/2021

quinta-feira, 30 de setembro de 2021

 

Umarizal e a devoção ao Coração de Jesus

Padre João Medeiros Filho

 Eis uma das devoções mais antigas do catolicismo. Nasceu aos pés da Cruz, quando “um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, jorrando sangue e água.” (Jo 19, 34), simbolismo da Eucaristia. No século XVII, a freira Margarida Maria de Alacoque deu impulso ao culto, posteriormente difundido pelos jesuítas e membros do Apostolado da Oração. Este, desde 2013, integra com o Movimento Juvenil Eucarístico (Cruzada Eucarística) a Rede Mundial de Oração do Papa, cujo símbolo é o Coração de Jesus, ícone do amor de Deus pela humanidade. “Eis o coração que tanto amou os homens”, segundo a visão de Santa Margarida, em Paray-le-Monial (França). O Apostolado da Oração originou-se em Vals-les-Bains (França), num colégio jesuíta, dirigido por Padre Gautrelet, em 1844. No Brasil, o seu primeiro núcleo foi fundado na Igreja de Santa Cruz do Recife, em 20 de junho de 1867. Entretanto, foi em 1871, na cidade de Itu (SP), que o movimento religioso se solidificou, graças ao empenho de Padre Bartolomeu Taddei, S.J.

O Cardeal Dom Sebastião Leme, quando arcebispo do Rio de Janeiro, assim se expressou: “O renascimento espiritual do Brasil é obra do Apostolado da Oração”, o qual intensificou a vida eucarística com a prática sacramental das primeiras sextas-feiras. Marcou a espiritualidade e vivência litúrgica de muitas paróquias. Revitalizou a prática religiosa individual e familiar, por meio da consagração dos lares ao Coração de Jesus. O Brasil também lhe foi dedicado por ocasião do XXXVIº Congresso Eucarístico Internacional, celebrado em 1955, no RJ.

A solenidade litúrgica do Coração de Jesus é celebrada na sexta-feira, oito dias após a festa de “Corpus Christi”, entre maio e junho. Todavia, várias comunidades católicas comemoram-na, no mês de setembro. Isso acontece há cento e vinte anos em Umarizal, onde se mantém forte apelo devocional ao Sacratíssimo Coração. Existe uma explicação histórica para isso. Entretanto, cabe primeiramente lembrar que o Brasil conta com dezesseis dioceses que têm o Sagrado Coração como padroeiro, sediadas em diversos estados. No Rio Grande do Norte, existem cinco paróquias e dezenas de templos com esse orago. A primeira paróquia potiguar com tal título foi erigida em Mossoró, em 1926, por decreto do bispo diocesano de Natal, Dom José Pereira Alves. Em 1964, Dom Gentil Diniz Barreto a suprimiu, incorporando parte de seu território à recém-criada freguesia do Alto de São Manuel.

Deste modo, a paróquia de Umarizal passou a ser no RN a mais antiga e tradicional com esse patrono, criada em 04 de janeiro de 1959, no episcopado de Dom Eliseu Simões Mendes. No entanto, a antiga capela com tal invocação data de 1902, construída no lugarejo Gavião por Padre Abdon Odilon Malibeu de Lima. No ano de 1901, em sua primeira desobriga pastoral naquela localidade introduziu a devoção ao Coração de Jesus. Aquele sacerdote (também bacharel em Direito) era natural de Campina Grande (PB). Recém-ordenado, fora nomeado pároco de Piancó e, pouco tempo depois, transferido para Martins, onde permaneceu, até 1904. De lá, foi exercer o sacerdócio em Cametá (PA), a convite de seu conterrâneo Dom Santino Maria da Silva Coutinho, escolhido bispo de Belém (PA).

Dentre as comunidades que celebram a festa do Coração de Jesus, em setembro, Umarizal é fiel aos fatos, à história e tradição. Há um acontecimento determinante. Aos 18 de setembro de 1864, Pio IX beatificou Margarida Maria. Seus devotos brasileiros começaram a rezar uma novena, rogando a Deus pela sua canonização, ocorrida em 1920. O novenário era coroado com uma missa solene, no dia 28 do referido mês. Assim, explica-se a centenária festa do Sagrado Coração de Umarizal, em setembro.  Acrescente-se a esta motivação histórico-religiosa o período da safra nos sertões nordestinos, perdurando até o último trimestre do ano. Isso facilitava os festejos do padroeiro, pois proporcionava maior poder aquisitivo à população. Bíblica e liturgicamente o Coração de Jesus é a expressão do amor misericordioso, da solidariedade e ternura de Cristo. “Vinde a Mim vós todos que estais sobrecarregados e eu vos aliviarei. Meu fardo é leve, meu jugo, suave.” (Mt 11, 29).

 

O REPENTE NORDESTINO

 

Diogenes da Cunha Lima

 

Nenhuma região do país é tão pródiga na inventividade como o Nordeste. A arte do repente identifica a nossa região. É o exercício da poética popular, do sertão ao litoral, com versos de fazer inveja a poetas eruditos.

O repente nordestino é duelo verbal de cantadores com o acompanhamento de viola, rabeca ou pandeiro (embolada). Em todas as suas formas, participa do rico Patrimônio Imaterial do Brasil. É o diálogo do improviso e da liberdade vocabular.

Muito se discute sobre a sua origem. Como sempre, Câmara Cascudo vai mais longe. Para ele é o desafio oriundo do canto amebeu, grego, do tempo de Homero. É canto alternado, obrigando resposta às perguntas do companheiro.

Muitos poetas cantadores tornaram-se célebres. Pinto do Monteiro (sempre considerado o mestre da cantoria), um dia, recebeu Lourival Batista, crescente em versos quentes. Glosaram os dias da semana com o humor produzido por trocadilho. Pinto: “No lugar que Pinto canta/não vejo quem o confunda. / Que o rio da poesia/o meu pensamento inunda. /Terça, quarta, quinta e sexta, /sábado, domingo e segunda”. Lourival respondeu: ”Sábado, domingo e segunda, /quarta e quinta. / Na sexta não me faltando/a tela, pincel e tinta/pinto pintando o que eu pinto. /Eu pinto o que o Pinto pinta”.

Ninguém sabe dizer melhor das coisas da região do que o poeta mossoroense Antônio Francisco. É sempre expressiva a sua linguagem para fazer pensar. Brevíssimo exemplo: Falando sobre a fome, ele começa: “Engoli três vezes nada...”.

Fabião das Queimadas, escravo que tangia bem o verso e a rabeca, foi provocado para falar sobre a paga dos seus vinténs arrecadados. Que seria um poeta? Ele explicou: “Canta longe um passarinho/do outro lado do rio, /uns cantam porque têm fome, /outros cantam por ter frio. /Uns cantam de papo cheio, /outros de papo vazio”.

Não era cantador, mas poeta popular, popularíssimo. Aliás, Renato Caldas foi um lírico, improvisador, bem-humorado. Pediram-lhe que fizesse saudação ao escritor e pintor Newton Navarro. Versejou: “Adão foi feito de barro/mas você Newton Navarro foi feito de inspiração. / Dos passarinhos, das cores/da noite feita de amores/do luar do meu sertão”. Certa vez, o poeta tomou café em uma residência na cidade de Angicos e ao guardar suas coisas, distraidamente, incluiu uma colherinha. Já na sua cidade, em Assu, verificou o equívoco e voltou. Desculpou-se dizendo: “Eis aqui, dona Chiquinha, /devolvo sua colher. / De coisa que não é minha/eu só aceito mulher”.

Na função de conselheiro do Iphan, esforçar-me-ei para que o Repente Nordestino seja reconhecido como Patrimônio Imaterial Brasileiro.

 

A NUDEZ DA SOLIDÃO

Valério Mesquita*

Existe uma doutrina defendida pelos monges trapistas do Tibet – até hoje não superada – de que ninguém administra sozinho. E uma corrente mais ortodoxa complementa: não se ganha eleição sozinho. No Brasil, desde 1947, os pleitos majoritários e democráticos que elegeram Getúlio, Juscelino, Jânio, Fernando Henrique, Collor de Melo, Lula da Silva, Dilma Rousseff e Jair Bolsonaro, resultaram de uma miscelânea de partidos. Todos governaram (?) com as facções que davam suporte político, não apenas no Congresso mas também nos aluguéis dos ministérios. Os novos tempos da Lava a Jato e seus registros criminais sepultaram as disputas ideológicas além das político-partidárias. Abriu-se uma fenda abissal na cabeça do povo que sepultou imenso contingente de seletos malfeitores. Posturas de governos de cama e mesa morrem todo dia vítimas da inexorabilidade do tempo e do fastio do povo.

Levantando-se voo do aerofágico campo de aviação de Brasília, aterrisso no aeroporto Aluízio Alves. Logo na pista de pouso pergunta-se: pode um governante administrar o Rio Grande do Norte sem o apoio popular e com o silêncio do poder legislativo? Nesse quadro de incertezas, costura-se o longo caminho de alianças partidárias, políticas, lotéricas, familiares, sindéticas, assindéticas, históricas e histéricas. Fica evidenciado que governo não pode ser de uma pessoa só. E que a política nessa primavera é um mar de naufrágios fatais. Para o povo, o político continua sendo aquele indivíduo fraco e defeituoso. E não somente ele, mas todos os poderes institucionais. A máquina estatal tem que diminuir de tamanho e extirpar os privilégios. Vai ter que poupar mais ou tanto quanto a mulher de Patufas que era tão econômica em todas as coisas, que, mesmo fazendo amor, poupava o gemido.

A preocupação hoje é com a voz rouca das ruas para que não se torne amanhã uma bronquite pneumônica. É quando o verbo votar passar a ser intransitivo e irrefletido. Dir-se-á que os políticos abominam mudança eleitoral. Mas, são doidos pelo fundo eleitoral. O sufocamento da verdade e da transparência nessas transações eleitoreiras, eles consideram um charme e não uma feiura, uma paranóia, tal o corporativismo. No Rio Grande do Norte há um cheiro de pólvora no ar. As aparências não enganam. Vultos furtivos, à espreita, preparam escaramuças. Mãos anônimas tecem fios de discórdia. Há muita vaidade em jogo. A praça 07 de Setembro lança labaredas mais altas que as torres da telefonia celular lá nas dunas que serpenteiam Natal. A meu ver, a aliança da governabilidade está trincando. O compadrio do poder deixa escapar surdos gemidos e não nega, sequer, as flatulências. A temporada gastronômica que precede os abalos sísmicos da política estadual já começou. Querem almoçar bacurau ao molho pardo. E numa churrascaria um grupo de partisans pediram tucanos ao vinagrete.

O fato é que os observadores da cena política, mesmo sendo primavera um período floral, estão se surpreendendo sem razão. O ano da graça de 2022, está às portas. Aqui, hoje, sorrisos punhais escondem. Nessas incertezas, se outra for a leitura é porque tá todo mundo enrolando. E a sucessão governamental? Li numa coluna de estudos científicos que a seca no Rio Grande do Norte possui um estranho desígnio de engravidar os partidos políticos. As alianças repentinas sem uso de preservativo podem produzir efeitos deformadores. Estudiosos no assunto já classificam a promiscuidade política como transtorno de conduta. E se ocorrer inverno no início de 2022, a sua fúria pode romper adutoras e até velhos compromissos que não são eternos. Por enquanto, disse-me um prefeito, que “é melhor sofrer no poder do que longe dele”. Lembre-se o gestor público que o verdadeiro dono do mapa e da mina é o povo.


(*) Escritor.

segunda-feira, 27 de setembro de 2021

 

Um inimigo dos loucos
Henrik Ibsen (1828-1906), o genial dramaturgo, nasceu numa pequena vila portuária da Noruega. Mas o seu teatro (ele foi também diretor) e a sua poesia não mimetizaram a gelidez da sua terra natal. Ao contrário, ele foi um dos precursores do realismo e do modernismo nas artes cênicas. Fez escândalo, na verdade. Era um “denunciante” de falsos moralismos e coisas que tais. Algumas de suas peças são conhecidíssimas: “Peer Gynt” (1867), “Casa de Bonecas” (1879), “Um Inimigo do Povo” (1882), “O Pato Selvagem” (1884) e por aí vai. Alguns dizem ser ele, no seu métier, o segundo, apenas atrás de Shakespeare (1564-1616). E gigantes do teatro, gente como Gerhart Hauptmann (1862-1946), George Bernard Shaw (1856-1950), Oscar Wilde (1854-1900) e Eugene O’Neill (1888-1953), lhe pagaram tributo. Ibsen perambulou muitos anos pela Europa. Sobretudo pela Itália e Alemanha. Quem viaja, se sabido, enxerga longe. Faleceu, em glória mas já inválido, na capital Oslo.
Para se ter uma ideia do tamanho de Ibsen, colho um trecho do “Ensaio sobre Henrik Ibsen”, de Otto Maria Carpeaux, que consta de um pequeno livro de bolso, intitulado “Seis Dramas” (parte 1), coleção “Mestres Pensadores”, da Editora Escala: “Henrik Ibsen é o maior dramaturgo do século XIX. O superlativo – superlativos têm sempre qualquer coisa de exagero – justifica-se desta vez, com toda facilidade. Goethe, Schiller e Alfieri pertencem inteiramente, ou pela maior parte da obra, ao século XVIII; Tchekov significa um crepúsculo melancólico; Strindberg já é o século XX. E na época entre o começo e o fim do século? Os epígonos não contam; a glória do teatro romântico francês já passou. Kleist, Georg Buechner e Gogol, três gênios dramáticos, que não se realizaram inteiramente. Quem há mais? O teatro realista francês, Augier, Dumas Filho, só tem hoje interesse como precursor de Ibsen, que lhe tomou emprestados os processos cênicos e os ambientes burgueses; Hauptmann e Shaw já confessam que o próprio Ibsen foi o ponto de partida das suas obras. Ficam ainda dois grandes nomes: Hebbel e Bjørnson. Em Hebbel a crítica literária reconhece hoje a substância ibseniana, prejudicada pelos artificialismos do epigonismo classicista; Hebbel desapareceu do palco onde apareceu Ibsen. Bjørnson, o patrício de Ibsen, e seu companheiro e inimigo inseparável durante a vida inteira, empalideceu cada vez mais ao lado do rival maior; dia virá – já veio talvez – em que a vida e a obra de Bjørnson servirão apenas para esclarecer melhor a vida e a obra de Henrik Ibsen”.
O genial dramaturgo participa de todas as virtudes (e dos defeitos também, claro) do seu século. Um século, o XIX, que se orgulhava de ser o “século da ciência e da técnica”. Ibsen se preocupava com as descobertas da ciência, com as maravilhas e as angústias que os processos científicos provocam, e tinha a esperança, em razão das intervenções da ciência, num futuro melhor para a humanidade. E aqui jogo luz sobre a peça “Um Inimigo do Povo”, de 1882, cujo protagonista é um médico local que casualmente descobre e investiga a contaminação das águas de um balneário de uma pequena cidade norueguesa. O médico imagina ser aclamado por haver descoberto, através da ciência, a verdade. Por salvar a todos, locais e turistas, da infecção/doença generalizada. Mas “algo” fala mais alto. Do negacionismo a outros interesses menos confessáveis. Os habitantes se viram contra ele, o “inimigo do povo”. E a desgraça, individual e coletiva, está feita. Pelo menos para os de bom-senso, lembrando que a ciência, dizia o nosso Rubem Alves (1933-2014), nada mais é que o bom-senso organizado.
Se evitar contaminação e doenças parece bom-senso – pelo menos para os de bom-senso –, isso não se mostra tão óbvio para aqueles outrora chamados de fanáticos loucos, e hoje, eufemisticamente, apenas apelidados de negacionistas. Se na fábula de Ibsen foi assim, hoje, quem alerta para a gravidade da nossa situação sanitária, para o número absurdo de mortes, para o charlatanismo de remédios ineficazes, para o impacto atual e futuro da política/visão negacionista, inclusive sob o ponto de vista econômico, é taxado por alguns de torcer pelo “quanto pior, melhor”, pelo “vírus” ou de outras baboseiras/loucuras mais. É luta.
Afirmar a dura verdade e a ciência, ou simplesmente o bom-senso organizado, nos torna “um inimigo dos loucos”.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL
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