quinta-feira, 29 de agosto de 2024
BATO OUTRA VEZ
Valério Mesquita*
mesquita.valerio@gmail.com
O rio Jundiaí, no trecho em que atravessa a cidade de Macaíba, perdeu o solo, o curso, o chão, o cheiro, a visão e ameaça o bem-estar dos habitantes. Entre o parque governador José Varela e a praça Antônio de Melo Siqueira deixaram crescer no leito poluído imensos manguezais que enfeiam um dos mais bonitos logradouros urbanos. Essa selva esconde lixo doméstico, carcaças de animais, marginais do tráfico de drogas em todo o seu percurso e os galhos já ultrapassam a altura da ponte e das balaustradas. A Tribuna do Norte publicou, excelente matéria sobre tudo que ameaça e destrói os rios Potengi e Jundiaí. Mas, o foco da minha questão e, creio, dos cidadãos macaibenses, reside exatamente neste aluvião de perguntas: por que o Idema não evita, aparando, podando, somente nesse trajeto o “matagal” entre o antigo cais do porto até a outra lateral da ponte? Por que não licenciam a prefeitura para fazê-lo? Não tem nada a ver com agressão ao meio ambiente? Tem? Tem não.
A praça e o parque perderam o charme de antigamente. Ninguém enxerga ninguém, olhando de um lado para o outro. A conscientização ambiental deve ser obedecida até onde não prejudique a funcionalidade urbanística e o senso prático e plástico do mapa citadino. Desde quando, em 1950, se planejou e se construiu a estrutura de pedra e cal das duas margens, o choque do progresso jamais prejudicou a superfície do rio. Nem, tão pouco, o molestaram, a expansão e o desafio do crescimento habitacional. Pelo contrário, as balaustradas de proteção ordenaram a trajetória das águas e defendeu as ruas periféricas contendo os transbordamentos das enchentes. Contemplo, hoje, que os problemas das inundações estão equacionadas com a construção da barragem de Tabatinga. Por que o Idema, tão preocupado com o meio ambiente, não permite, apenas, nesse, pequeníssimo trajeto fluvial o corte da poluição visual da paisagem urbana e memorial de Macaíba?
Ali, a vegetação gigantesca e desproporcional encobre um dos pontos históricos do município. Refiro-me ao cais das antigas lanchas que faziam o percurso fluvial entre Macaíba e Natal: a lancha do mestre Antonio, o barco de João Lau, além da lancha “Julita” que transportou tantas vezes Tavares de Lyra, Eloy, Auta e Henrique Castriciano de Souza, Augusto Severo, Alberto Maranhão, João Chaves, Octacílio Alecrim e tantas outras figuras notáveis da vida social, cultural, política e econômica. Todos se destacaram nos planos estadual, nacional e internacional. Ali, o centenário cais, jaz sob os escombros de verdes balizas envergadas e fantasmagóricas. A visão noturna é tétrica e arrepiante. Desfigura e mutila os padrões estéticos do planejamento da urbe que a faz parecer abandonada e suja. Até a lua cheia que nasce lá por trás do Ferreiro Torto foi encoberta. A turma do “Sempre-Macaíba” e da nossa Academia de Letras convidam o pessoal do Idema para uma visita à noite ao tétrico ambiente para assistir um filme de terror.
Assim como se deve obedecer a educação ambiental, do mesmo modo, exige-se o tratamento e o corte do matagal por parte dos órgãos públicos responsáveis a fim de evitar o represamento do lixo no leito, exclusivamente urbano. Nas capitais e cidades importantes do Brasil banhadas por rios não se vê tratamento tão displicente e indiferente da parte dos setores responsáveis. Sei que o prefeito de Macaíba, não postulou a solução do assunto, nem uma vez. Ao redimensioná-lo neste texto, cabe aos órgãos prefalados uma reflexão, um reestudo sobre o cenário dantesco do rio Jundiaí na parte descrita. O povo tem o direito de ouvir e a coragem de duvidar que essa selva fantasmagórica que devora e perturba a todos seja explicada e resolvida, sem slogans, clichês, palavras de ordem, lugares comuns, peças de marketing ou princípios dogmáticos. Que venha à lume as boas intenções e que não fique Macaíba submersa na má fama da poluição de manguezais aterradores. Porisso, bato outra vez, tal qual Cartola, com esperança no endurecido coração do Ministério Público. Há mais de dez anos nada mudou: o rio Jundiaí continua punido.
(*) Escritor.
terça-feira, 27 de agosto de 2024
Pedra e fé em Cristo Jesus
Padre João Medeiros Filho
Carlos Drummond de Andrade escreveu em um de seus poemas: “No meio do
caminho tinha uma pedra...” Alguém já disse que “a poesia é a menina dos olhos da
literatura.” Houve, entre os críticos literários, quem quisesse comparar os versos
drummondianos com a poesia primitiva a ser burilada pelo autor. Seria semelhante ao
granito, com o qual o escultor faz brotar sua obra de arte. Abgar Renault em “A lápide
sob a lua” afirmou: “O poeta é artesão e bruxo das palavras.” A poesia, assim como a
escultura, seria um trabalho artesanal do artista paciente e perseverante, evitando a
inspiração apressada, fortuita e alienada. Ao contrário, é fruto do empenho “das
retinas tão fatigadas”, segundo o vate de Itabira. Diante de tais interpretações,
Drummond intervém, afirmando que ali ele tratava mesmo de pedra.
João Cabral de Melo Neto era considerado um poeta de estilo contido e seco.
Em sua obra “Pedra do Sono” afasta-se da tradição do simbolismo da linguagem,
tornando a objetividade da prosa escrita envolta em poesia. Para esta transporta a dura
realidade dos canaviais pernambucanos, também retratada nos pedregulhos em “Morte
e Vida Severina”. A luta árdua pela vida traduz-se na estética do drama. Pode-se
perceber o desafio compreendido por Cristo, quando usa a metáfora pétrea ao designar
o primeiro papa. O granito inspira-nos a ser firmes, mas quando transformado em arte,
leva-nos à admiração e ao amor. Deste modo, a fé deve ser inspiradora, capaz de
suscitar atitudes de entrega, solidariedade e perdão, como o mármore que se presta a
vários tipos de escultura. Vale lembrar o romance de Ariano Suassuna “A Pedra do
Reino”, ao descrever a vida como uma pedra, “mas doce como uma cajarana madura.”
Se ela chega a comover poetas e romancistas, não deixaria de chamar a atenção do
autor das Bem-aventuranças. “Olhai as aves do céu... Aprendei dos lírios do campo...”
(Mt 6, 26). Quanta beleza nesses textos bíblicos, que amenizam a aridez da existência!
Cristo emprega várias expressões e imagens do cotidiano de seu tempo: terreno,
rocha, grão, pastor, ovelha, senhor, servo etc. Revelava com alegorias e muita
simplicidade o Reino dos Céus, que Ele veio pregar. Como é importante retornar à
simplicidade das analogias evangélicas para se compreender o pensamento de Jesus! A
realidade da rocha, mantida na retina ou na memória, é um desafio e encanto. Um olhar
poético sobre ela a verá com mais profundidade e transcendentalismo. O Filho de Deus
a tornou parábola do Príncipe dos Apóstolos, em cuja fé colocou os alicerces de sua
Igreja. “Tu és Pedro e sobre esta pedra, edificarei a minha Igreja” (Mt 16, 18).
Encontramos a palavra pedra vinte e sete vezes no Novo Testamento e vinte e quatro, o
vocábulo rocha. Eis como Cristo é preconizado no Antigo Testamento: “A pedra que os
construtores rejeitaram, tornou-se a pedra angular” (Sl 118/117, 22). O próprio Deus é
assim lembrado: “E quem é a Rocha, senão o nosso Deus?” (2Sm 22, 32).
Há algum tempo, o Sumo Pontífice, dirigindo-se a um grupo de freiras
contemplativas, propôs-lhes “uma fé sólida e útil como a rocha”, contrapondo-a a um
caminho “demasiadamente espiritualizante, abstrato e místico.” Com o significado da
rocha o Salvador do mundo procurou definir a dimensão transcendente do ser humano.
Queria mostrar nossa fé, inabalável e profunda, burilada pela graça divina, sem falsa e
alienante espiritualidade. A pedra é ícone de nossa existência espiritual, desafiadora e
objetiva, que se molda na firmeza da gratuidade sobrenatural. Ela também acolhe, serve
de assento, referencial e repouso no cansaço da caminhada. Por isso, Cristo a constituiu
símbolo de sua Igreja. Portanto, a condição pétrea de nossa humanidade não serve apenas
para a poesia moderna, mesmo não sendo engajada na problemática social, segundo o
pensar de alguns teólogos. É indispensável à fé, que deverá ser autêntica e testemunhada,
isto é, fundamento da caridade e propulsora da esperança, nutrindo a transcendência do
homem, cidadão do Infinito. Convém refletir sobre as palavras do apóstolo Pedro: “De
igual modo, também vós, como pedras vivas, formai um edifício espiritual” (1Pd 2,5).
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