sábado, 2 de março de 2024

Jair Eloi de Souza 8 h · ASSIM ESCREVI SOBRE VELHOS ENGENHOS NO MEU SERIDÓ. Na idade meã do Século XIX, seguindo o exemplo dos paraibanos e cearenses, instalados e na sua plenitude, funcionavam os engenhos de banguê nas terras confins do Seridó. O estalar da quebradeira da cana de açúcar prenunciava o fabrico da rapadura de banco. Por esses tempos, a mão de obra era suprida das tendas cativas. As colônias latinas viviam a agudez do tráfico dos afro-descendentes, vindos das terras d’além mar, sitas na mama África. É bem provável que o cultivar da cana no Seridó, no contexto das terras massapesadas de baixio e nos brejinhos de revências de açudes, tenha sido influenciado pelos cearenses, pois estes, ocupavam com esta cultura o sopé da Serra do Araripe, no sul do Ceará, já que, na chã, havia o cultivo da mandioca para a farinhada e do próprio café. De outra feita, a aquisição de rapadura e da farinha no Cariri, embora ambas fossem de excelente qualidade, demandava custos altos, ante a longa viagem no coice da burrarada. E, ainda, riscos para os velhos matutos comboieiros dos Sertões do Seridó, face a presença de salteadores a partir do vale do Rio do Peixe e, principalmente, nas cercanias do entroncamento de todas aquelas cidades da vizinhança do Crato, como Barbalha, Missão Velha, Jardim e o próprio Juazeiro. Este, em razão das pregações do Padre Cícero, transformou-se numa urbe não só frequentada por fanáticos, mas, também, por cangaceiros, jagunços, gente de boa e má índole, que se albergavam nos feudos dos Coronéis, cuja truculência não guardava distância dos baianos e alagoanos do último quartel do Século XIX e das primeiras décadas do Século XX. Nos Sertões do Seridó, o fabrico da “rapadura de banco”, tinha destinação para o consumo da própria região. Aliás, o doce, que era utilizado para todas as serventias, era mesmo com exclusividade a rapadura, principalmente nos feudos rurais. Coadjuvante no torramento do café, na confecção de doces e bolos. Não é exagero se afirmar que a rapadura era o alimento mais presente em todas as formas e horas de refeição do sertanejo. No bisaco do caçador, no badaneco do vaqueiro, no saco de boca amarrada do enxadeiro, na carona do viajante e comboieiros, no bornal do cangaceiro, nos alforjes dos rastejadores ou matadores de onça no sertão antigo, sempre havia um naco de rapadura e uma porção de farinha para refeição rápida. No Município de Jardim de Piranhas e adjacências, conheci, ainda infante, alguns engenhos de moagens de cana: No Braz, o de Quinca Salvino; na fazenda Três Riachos, o do velho Manoel Ambrósio de Queiroz; nos Pocinhos, o de Vigolvino; no Góis, o do velho Cição; e, ainda, na Saudade, o engenho de Manoelzinho Cafunbó, este último já no Município de Timbaúba dos Batistas, e mais alguns que ouvia falar e, lamentavelmente, não cheguei a visitá-los. Antes da floração das craibeiras amarelas, na primavera setembrina, as velhas moendas começavam a produzir a garapa, que se destinava aos grandes tachos e gamelas, no fabrico da rapadura e de batidas temperadas. O engenho primitivo ou de banguê era movido a boi, um trabalho que começava no “quebrar da barra”. A estação das moagens tinha grande simbologia para o sertanejo. Era um trabalho coletivo, com funções especificadas, o permeio da garapa de tacho em tacho, finalizando na gamela. Todos tinham um conhecimento pragmático do momento em que a calda deveria passar para o tacho seguinte. No entanto, a última palavra era do mestre-da-rapadura, uma similaridade do mestre-de-açucar nas usinas de refino. As velhas moendas do meu Sertão foram aposentadas. Não se ouve mais o estalo do chicote no açoite da boiada: um avanço. Porém, de consequência, não se encontra mais a qualidade nas rapaduras ainda produzidas. Nas feiras livres, é comum se verificar o selo de terras pernambucanas, produto com teor significativo de açúcar refinado. A produção do Cariri perdera em qualidade. A brejeira de garajal está mais preta e salobra. O homem destruiu a nobreza das terras massapesadas e de baixio em revência. Que pena! Meu Sertão não era assim. J.E.S.

sexta-feira, 1 de março de 2024

ENCONTRO COM A POESIA: TRÊS JOIAS DO ROMANTISMO Horácio Paiva * Neste intervalo contemplativo, sob o domínio da emoção romântica, estampo três caros poemas, lidos e relidos no tempo que me coube: O INFINITO, do italiano Leopardi; TRISTEZA, do francês Musset; e ODE SOBRE UMA URNA GREGA, do inglês Keats. Os seus tradutores são, pela ordem: Vinicius de Moraes, Guilherme de Almeida e Augusto de Campos. No final, introduzo uma nota sobre o genial poeta romeno Eminesco, acompanhada de uma de suas poesias, um soneto traduzido por Nelson Vainer. Há uma segunda nota em que apresento a tradução d’O INFINITO feita por Ivo Barroso. Muito boa também. Mas dei preferência à de Vinicius por amá-la há muito tempo e sabê-la de cor. Vejamos então: GIACOMO LEOPARDI (1798-1837) O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma, e esta sebe, que de tanta parte Do último horizonte o olhar exclui. Mas sentado a mirar, intermináveis Espaços além dela, e sobre-humanos Silêncios, e uma calma profundíssima Eu crio em pensamentos, onde por pouco Não treme o coração. E como o vento Ouço fremir entre essas folhas, eu O infinito silêncio àquela voz Vou comparando; e vem-me a eternidade E as mortas estações, e esta, presente E viva, e o seu ruído. Em meio a essa Imensidão meu pensamento imerge E é doce o naufragar-me nesse mar. ALFRED DE MUSSET (1810-1857) TRISTEZA Eu perdi minha vida, e o alento E os amigos, e a intrepidez, E até mesmo aquela altivez Que me fez crer no meu talento. Vi na Verdade, certa vez, A amiga do meu pensamento; Mas, ao senti-la, num momento O seu encanto se desfez. Entretanto, ela é eterna, e aqueles Que a desprezaram - pobres deles! - Ignoraram tudo talvez. Por ela Deus se manifesta. O único bem que ainda me resta É ter chorado uma ou outra vez. JOHN KEATS (1795-1821) ODE SOBRE UMA URNA GREGA I Inviolada noiva de quietude e paz, Filha do tempo lento e da muda harmonia, Silvestre historiadora que em silêncio dás Uma lição floral mais doce que a poesia: Que lenda flor-franjada envolve tua imagem De homens ou divindades, para sempre errantes, Na Arcádia a percorrer o vale extenso e ermo? Que deuses ou mortais? Que virgens vacilantes? Que louca fuga? Que perseguição sem termo? Que flautas ou tambores? Que êxtase selvagem? II A música seduz. Mas ainda é mais cara Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom; Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara, O supremo saber da música sem som: Jovem cantor, não há como parar a dança, A flor não murcha, a árvore não se desnuda; Amante afoito, e o teu beijo não alcança A amada meta, não sou eu quem te lamente: Se não chegas ao fim, ela também não muda, É sempre jovem e a amarás eternamente. III Ah! folhagem feliz que nunca perde a cor Das folhas e não teme a fuga da estação; Ah! feliz melodista, pródigo cantor Capaz de renovar para sempre a canção; Ah! amor feliz! Mais que feliz! Feliz amante! Para sempre a querer fruir, em pleno hausto, Para sempre a estuar de vida palpitante, Acima da paixão humana e sua lida Que deixa o coração desconsolado e exausto, A fronte incendiada e a língua ressequida. IV Quem são esses chegando para o sacrifício? Para que verde altar o sacerdote impele A rês a caminhar para o solene ofício, De grinaldas vestida a cetinosa pele? Que aldeia à beira-mar ou junto da nascente Ou no alto da colina foi despovoar Nesta manhã de sol a piedosa gente? Ah, pobre aldeia, só silêncio agora existe Em tuas ruas, e ninguém virá contar Por que razão estás abandonada e triste. V Ática forma! Altivo porte! em tua trama Homens de mármore e mulheres emolduras Com galhos de floresta e palmilhada grama: Tu, forma silenciosa, a mente nos torturas Tal como a eternidade: Fria Pastoral! Quando a idade apagar toda a atual grandeza, Tu ficarás, em meio às dores dos demais, Amiga, a redizer o dístico imortal: “A beleza é a verdade, a verdade a beleza” - É tudo o que há para saber, e nada mais. NOTAS: (1) Dentre tais expoentes europeus - e outros de igual magnitude - uma estrela brilha na Romênia e seu brilho aquece o ocidente, embora pouco notado entre nós: MIHAIL EMINESCO, aquele que disse o seu epitáfio nesses versos: “Tenho ainda um desejo: Na tarde silente Me permitais morrer Na beira do mar.” Conheço-o graças à ANTOLOGIA DA POESIA ROMENA, traduzida e organizada por Nelson Vainer, editada em 1966 (pela Editora Civilização Brasileira), e que tenho a subida honra de possuir desde então, como presente do hermano Hermano. Dele faz rasgados elogios Giuseppe Ungaretti: “Raramente se encontra na literatura dos últimos dois séculos uma figura de escritor e poeta mais complexa e mais completa que a de Mihail Eminesco.” “(...) poeta de sentimento torturado e ardente até à conquista do mais alto esplendor, que faz dele um dos maiores poetas do seu tempo e de todos os tempos, através da humanidade, Eminesco permanece para sempre um dos mestres da palavra poética profundamente inspirado.” Bernard Shaw, em carta dirigida à escritora Sylvia Pankhurst que, em 1930, publicara, em Londres - e pela primeira vez em inglês -, uma coletânea de poemas de Eminesco, situa o poeta entre os maiores poetas românticos do século XIX. O meu amigo e poeta, o norte-rio-grandense Jarbas Martins, que acolhe e coleciona sonetos, certamente gostará deste, romântico. Não é a obra-prima de Eminesco, geralmente assim considerado o seu poema LÚCIFER (Estrela da Manhã), um longo de 46 quadras, ou seja, 184 versos. Mas o soneto escolhido é belo e traz, bem talhada, a medida do romantismo: SONETO Quando a própria voz dos pensamentos se cala, e em mim ressoa um canto doce e piedoso então, te invoco; ouvirás o meu apelo? Das brumas frias em que nadas, irás libertar-te? Irão iluminar a noite profunda os teus olhos grandes, portadores de paz? Ressurges da sombra dos tempos idos, Para ver-te voltar - como em sonho, assim, viva! Desces devagar... perto, mais perto, aconchegas-te novamente sorrindo à minha face, oh, teu amor com um suspiro mostra-o, com tuas pestanas tocas as minhas pálpebras, que eu sinta a vibração do teu abraço perdida para sempre, eterna adorada. (2) E, novamente, O INFINITO de Leopardi, agora na tradução de Ivo Barroso: O INFINITO Sempre cara me foi esta colina Erma e esta sebe, que de extensa parte Dos confins do horizonte o olhar me oculta. Mas, se me sento a olhar, intermináveis Espaços para além, e sobre-humanos Silêncios e quietudes profundíssimas, Na mente vou sonhando, de tal forma Que quase o coração me aflige. E, ouvindo O vento sussurrar por entre as plantas, O silêncio infinito à sua voz Comparo: é quando me visita o eterno E as estações já mortas e a presente E viva com seus cantos. Assim, nessa Imensidão se afoga o pensamento: E doce é naufragar-me nesses mares. ................................................................................................................................ (*) Horácio de Paiva Oliveira - Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.
VIROU ARAPUCA Valério Mesquita* Mesquita.valerio@gmail.com Mais do que o Imposto de Renda, o IPTU, a dengue, a chikungunya, o Covid, o furor das multas de trânsito é a nova virose que enerva o natalense. O Código Nacional de Trânsito está se tornando uma arma nas mãos dos guardas despreparados, muito mais perigosamente do que o próprio veículo na direção dos motoristas imprudentes. Como o trânsito é uma matéria altamente disciplinadora, um código que vem para punir os seus contraventores deve, de partida, merecer um inicial trabalho pedagógico de orientação e não, ser aplicado doidivanamente por agentes mal humorados. O Código de Trânsito, que é uma das melhores coisas que aconteceu nesse país de contravenções, está se transformando num abuso porque aplicar a lei já é difícil para juízes e desembargadores, avalie para um guarda de trânsito, desqualificados, com uma caneta à mão e o sentimento do mundo. Outro dia, eu descia a Hermes da Fonsêca no sol quente do meio dia e contemplei uma cena insólita no canteiro central da avenida, em frente a Escola Doméstica. Óculos no meio do nariz, como de costume, um jornalista e amigo manuseava as tórridas páginas do código para explicar ao guarda impassível e doutorável, as contradições da lex talionis. Comigo aconteceu na Prudente de Morais, sentido norte/sul. Antes do sinal luminoso da rótula do Arena das Dunas parei o automóvel quando o velho semáforo amarelou. Senti-me obediente e disciplinado. Pelo retrovisor, atrás de mim, flagrei um guarda rabiscando à bordo de uma moto verde-amarela. Procurei, assustado, a infração. Dois centímetros dos pneus dianteiros sombrearam a faixa branca do pedestre. Pensei protestar mais adiante. Lembrei-me da tolerância cristã. Recordei os arroubos parlamentares de Nélter Queiroz certa vez e desisti da contestação olímpica e retilínea. Às vezes, eu reflito que existe, uma deliberada intenção de transformar a STTU em empresa de economia mista. Com o volume de recursos provenientes das multas desvairadas, dificilmente nenhum outro órgão estatal suplantaria a sua receita. Não se trata de oposição ao sistema de trânsito. Mas, de uma postura cética ante uma avalanche de multas sem um critério orientacional que eduque o contraventor sem revoltá-lo. Sem que ele veja no manual um instrumento discricionário, antidemocrático e ditatorial. As infrações mínimas de trânsito estão sendo punidas de uma forma geométrica, caótica e até irracional. A situação é preocupante. O cidadão comum está sendo confundido com os contumazes irresponsáveis do trânsito. A multa virou rotina. O natalense, já pensa vender o seu carro, porque a multa ingressou no seu orçamento mensal assim como as taxas de luz, água, telefone, IPTU, cartão de crédito, supermercado, etc., além da ferocidade anual do leão do Imposto de Renda. Dirigir hoje em dia, além de ser perigoso para a vida também o é para o bolso. Tudo depende de uma acelerada ou de um freio brusco, no lusco-fusco, dos bruxos à espreita, de lápis e papel à mão. (*) Escritor

quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

OLAVO LACERDA MONTENEGRO, O MÚLTIPLO DESBRAVADOR  
A pessoa é para o que nasce. O dito cabe à perfeição na trajetória de vida do agropecuarista, empreendedor e político potiguar, Olavo Lacerda Montenegro. Nascido na cidade de Macau (RN), a 25 de dezembro de 1920, filho do pecuarista e salineiro, Manoel Pessoa Montenegro (Manezinho), também natural de Macau, e de Maria Lacerda Montenegro, a qual empresta o nome a uma das principais avenidas de Nova Parnamirim (avenida Maria Lacerda Montenegro), localizada na zona Sul de Natal.   Olavo foi o varão da família. Nasceu, a bem dizer, em berço de ouro. A infância foi na fazenda do pai, onde aprendeu as primeiras letras, vez que existia na propriedade um grupo escolar. Os estudos avançaram no Colégio Diocesano de Mossoró, onde tomou lições, inclusive de vida, por três anos. De Mossoró, veio para Natal estudar no Colégio Marista. Concluídos os estudos na capital, o jovem Olavo parte para o Recife com o intuito de cursar agronomia. Na Veneza brasileira, decepcionou-se com a faculdade que queria ensinar a ele o que já sabia na vida rural. Durante um São João, no Assú, comunica ao pai que não voltará mais para o Recife. Resolve fixar residência no Vale e assumir as duas fazendas doadas por Manezinho no nascimento.   Mas o destino quis que o adolescente fosse convocado para a Segunda Guerra. Retorna para a capital para servir na Base Aérea de Natal. Na torre de comando da Base, assistia toda manhã os aviões decolarem para Dakar, no Senegal, e da África para a Europa, com o escopo de combater o nazifascismo. No período da tarde, o pracinha presenciava a chegada das aeronaves vindas de Miami, via Belém do Pará, onde abasteciam para prosseguir voo até Natal. Eram cerca de dois mil aviões diariamente na Base, entre chegadas e partidas. O certo é que Olavo não precisou voar para combater o Eixo do Mal. Nos dias de folga da caserna, costumava flanar pela Ribeira, com os amigos do Assu, pilotando um automóvel conversível presenteado por dona Maria Lacerda. Gostava de frequentar a Rampa, o cais da avenida Tavares de Lira e a Confeitaria Vesúvio.   Em um sábado na Base, quando se preparava para partir para a Ribeira, o oficial do dia cortou suas asas e escalou Olavo para lavar os banheiros, mesmo de folga. O episódio mudou a vida do jovem, porque após cumprir com a obrigação, deu carona a uma pessoa em Ponte Velha, e no domingo conheceu a fazenda Boa Esperança, que elegeria como a sua Pasárgada. A propriedade abrangia mil hectares na região que hoje é conhecida por Nova Parnamirim. A partir daí ele idealizou o crescimento da cidade de Natal, no rumo sul. Relata o seu filho, o agropecuarista, advogado e ex-deputado estadual e federal, Manoel Montenegro Neto, o Manuca, que o pai comprou terras da BR-101, entre o Atacadão e a Cidade Satélite, até o rio Potengi.   Não satisfeito, adquiriu também terras, onde hoje está instalado o Carrefour, até a concessionária Natal Veículos. Visionário, convenceu o pai a comprar o Pium, incluindo a praia de Cotovelo, em uma área de 3,5 mil hectares. De posse da fazenda Boa Esperança, Olavo arregaçou as mangas e começou a plantar milho, mandioca, banana e coco verde, entre outras culturas. Um episódio que poucos sabem e muitos desconhecem é que o rio Pitimbu não existia. Foi Olavo quem criou o Pitimbu a enxadadas. Contratou uma equipe de técnicos e de trabalhadores para dar vida ao rio. Ainda na Boa Esperança, abriu uma vacaria com cerca de 400 cabeças de vaca. Tirava mil litros de leite por dia. Para a época, como também para os dias de hoje, um feito.   Com o seu espírito desbravador e empreendedor, foi de Olavo Montenegro o planejamento da avenida Maria Lacerda, em homenagem à mãe, além das avenidas Ayrton Senna e Abel Cabral, no extremo Sul de Natal. Ainda em vida, assistiu ao surgimento da rodovia estadual Olavo Lacerda Montenegro, que liga Nova Parnamirim a locais movimentados como a Coophab, Parque das Árvores, Liberdade, Parque das Nações e Cajupiranga. Para regozijo da família, Nova Parnamirim tem hoje 93 mil habitantes e a maior renda per capita de Natal, desbancando, por exemplo, os bairros de Tirol e Petrópolis, além de ter um papel decisivo no crescimento do vizinho município de Parnamirim. O político  Muito da paixão de Olavo Montenegro pela política deve ser tributada ao pai Manoel Montenegro. Quando assumiu pela primeira vez a Prefeitura do Assu em 1930, Manezinho se mudou da fazenda para a cidade para exercer sucessivos mandatos de chefe do executivo municipal por 13 anos. Importante ressaltar que Manoel Montenegro foi prefeito antes da Intentona Comunista de 1935, levante surgido para derrubar o governo do então presidente Getúlio Vargas; também no período do Estado Novo, e foi, ainda, eleito depois da ditadura de Vargas. Seu sucessor Edgar Montenegro foi eleito prefeito por Pedro Amorim para comandar os destinos do Assú. Manezinho se formou em Farmácia, no Rio de Janeiro, com dois irmãos que se formaram em Medicina. Eram amigos de Miguel Couto e montaram a primeira clínica médica em Copacabana.  Líder inconteste da região do Vale do Assu, atestam os íntimos que Olavo Montenegro foi um político correto, honesto, sincero e leal aos seus correligionários e eleitores. Talhado para a política, exerceu o mandato de deputado estadual em cinco legislaturas consecutivas: 1958, 1962, 1966, 1970 e 1974, sendo eleito nas primeiras legislaturas pelo Partido Social Democrata (PSD). O visionário Olavo Montenegro disputou, ainda, em 1982, o mandato de senador da República, pelo antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), sem obter êxito.   Quem o conheceu o cita como um orador primoroso. Reconhecidamente um político combativo (ele foi um dos responsáveis pela formação da Cruzada da Esperança que levou Aluizio Alves ao Governo do Rio Grande do Norte, em 1960), defendia especialmente os interesses do Vale do Assu, importante região da terra potiguar, que amava obstinadamente.  Montenegro foi também sócio-fundador da Associação Norte-Riograndense de Criadores (Anorc) chegando a ser presidente daquela instituição, contribuindo consequentemente para a agropecuária do Estado, bem como um dos sócios-fundadores da Rádio Princesa do Vale, uma instituição do seu Assu.   Um fato político importante que marcou a carreira de Olavo Montenegro foi a emancipação política de Carnaubais. O parlamentar foi o autor da Lei nº 2.927, aprovada pela Assembleia Legislativa e sancionada pelo governador Aluizio Alves, que emancipou Carnaubais política e administrativamente. Corriam as eleições municipais de 1963. Carnaubais pertencia a Assú. Olavo apoiava para o executivo assuense Maria Olímpia Neves de Oliveira (Maroquinha). Abertas as urnas, Maria Olímpia vence a disputa. Mas não demorou muito para o rompimento político entre os correligionários. Olavo entendia que a emancipação de Carnaubais seria melhor para o Assu, porém Maroquinha percebia o contrário, uma vez que a prefeita eleita não queria perder a receita gerada pela extração do sal pela firma Matarazzo nas salinas de Logradouro, hoje distrito de Porto do Mangue. Sacramentado o rompimento, Olavo usou o prestígio que tinha junto a Aluizio Alves e encaminhou o projeto de lei à Assembleia Legislativa a fim de emancipar Carnaubais.O projeto foi aprovado no dia 18 de setembro de 1963, marcando uma nova etapa na história carnaubaense.  O cidadão  Quem conviveu com Olavo Montenegro assegura que era um homem dedicado à família e aos amigos, sempre com gestos largos de solidariedade. Servir aos pares era um predicado. Inclua-se aí a assistência ao trabalhador da pecuária e da agricultura. Cidadão de hábitos simples, tratava a todos com cortesia. Conta o filho Fernando Montenegro que o pai não tinha vícios. Não bebia e não fumava. As paixões eram três: pecuária (vaca de leite), política e o Vale do Assu.   Olavo tinha o hábito de ler jornais, especialmente o noticiário político. Era adepto da culinária sertaneja. Apreciava leite, inhame, macaxeira, sopa e outros acepipes. Casou em 1947, com dona Neide Galiza Montenegro, na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Apresentação, antiga Catedral Metropolitana. Celebrou o casamento o então bispo de Natal, Dom Eugênio Sales. Do matrimônio, nasceram as filhas Iolanda Galiza Montenegro e Mary Montenegro Erthal e os filhos Fernando Antônio Galiza Montenegro, Manoel Montenegro Neto e Olavo Lacerda Montenegro Filho.  Olavo Montenegro faleceu de insuficiência cardíaca, no dia 31 de outubro de 1999, um domingo à tarde. Ao pressentir a morte, pediu ao filho Fernando para ser enterrado em uma cova rasa na terra abençoada e fértil do Assu, que tanto amava. Com o passar do tempo, a família providenciou um jazigo. Múltiplo e plural, deixou sua marca indelével na política e no empreendedorismo potiguar. Partiu para o plano superior com a alma tranquila dos sábios.  Carlos Frederico Lucas é articulista, poeta e contista.  Fonte  Fotografia: Olavo Lacerda Montenegro, acervo de família.  Texto: Depoimentos da família. 

quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Mossoró volta às origens religiosas? Padre João Medeiros Filho A indicação de Dom Francisco de Sales Alencar Batista, um frade carmelita, para bispo de Santa Luzia de Mossoró, reacende os questionamentos a respeito dos primórdios do povoamento e evangelização mossoroense. Padre Sátiro Cavalcanti Dantas incentivava os pesquisadores a aprofundar o tema. Destaca-se o artigo do professor Davi de Medeiros Leite – membro da Academia Mossoroense de Letras e da Academia de Ciências Jurídicas e Sociais de Mossoró – publicado no Jornal De Fato, em sua edição de 17 de fevereiro corrente. Há anos, conheci no Rio de Janeiro Frei Tito (Bartolomeu) Figueiroa de Medeiros, da Ordem do Carmo. Fora-me apresentado por um amigo comum: o procurador federal Carlos Davis, hoje sacerdote do clero da arquidiocese carioca. Frei Tito estava concluindo o doutorado em Antropologia no Museu Nacional, vinculado à Universidade Federal do Rio de Janeiro. Não raro, o erudito frade discorria sobre assuntos ligados à sua Ordem religiosa, dos quais era exímio conhecedor. Lamentava o desconhecimento de fontes eclesiásticas sobre a caminhada de seus confrades no Nordeste brasileiro. Assim se expressou: “Não se pode ignorar os arquivos da Arquidiocese de Olinda, da Província Carmelitana em Recife e da Casa Geral em Roma.” Porém, são ainda escassas as informações disponíveis sobre a presença dos frades no RN. Um desafio para clérigos e historiadores. É incontestável a importância dos filhos de Nossa Senhora do Carmo, no que tange à evangelização do Nordeste. Foram assumindo a catequese em diversas localidades, após a expulsão dos jesuítas do Brasil. É relevante a sua influência em algumas regiões potiguares. Padre Miguelinho, um dos líderes da Revolução de 1817, no início de sua vida clerical foi um frade carmelita, depois sacerdote secular, pertencendo ao clero de Olinda. Se o renomado norte-rio-grandense e líder político-religioso optou primeiramente por ingressar na vida carmelitana, trata-se de um indicativo de que os conventos eram atuantes em terras potiguares. Atualmente, há quatros prelados carmelitas, integrantes do Regional Nordeste II da CNBB, compreendendo Alagoas, Pernambuco, Paraíba e Rio Grande do Norte. Segundo Câmara Cascudo, os filhos da Virgem do Carmo aportaram no RN por volta dos anos de 1701-1702.  Foram enviados para cá, a fim de “pregar o Reino de Deus” (Lc 9, 2). À época, era bispo de Olinda Dom Francisco Lima (ou Lemos), membro da Ordem do Carmo, exercendo o ministério naquele bispado, de 1695 a 1704. Este dado relevante não é citado pelos estudiosos. Em 1692, o aludido dignitário foi ordenado bispo para a diocese de São Luís do Maranhão, entretanto não chegou a tomar posse canônica. Durante o seu pontificado na Sé de Olinda, os carmelitas floresceram bastante. Afirma-se ser ele o responsável pela vinda dos confrades para o rincão norte-rio-grandense. Em 1704, dá-se a restauração da Igreja do Carmo, em Olinda, danificada durante o período da ocupação holandesa no Nordeste. O convento de João Pessoa – cujo prédio serve hoje de sede do arcebispado da Paraíba – foi concluído no início do século XVIII, no pontificado de Dom Francisco Lima. Esteve à frente das obras Frei Manuel de Santa Teresa. A interiorização dos carmelitanos no Brasil acontece paulatinamente. As anotações cascudianas sobre a presença da Ordem no RN constituem um marco para as pesquisas. Narra aquele historiador natalense: “Frei Antônio da Conceição residiu muitos anos na fazenda Carmo. Sua sepultura foi na capela do lugarejo, dedicada à Virgem de Siracusa.” Em geral, eram anexadas aos conventos fazendas doadas ou adquiridas para a manutenção dos religiosos e de suas missões. Receberam da Coroa portuguesa sesmarias, cuja renda ajudaria na catequização indígena. A vinda dos frades do Carmo para o RN ocorreu após a expulsão dos holandeses no final do século XVII e início do século XVIII. Fixaram-se na aldeia de Gramació (Vila Flor) e perto do Rio Upanema, no território da paróquia de Apodi. A opção por essa localidade deve-se às condições favoráveis para o plantio e criação de gado, fundamentais para a manutenção da vida conventual e a catequese indígena. Os frades provinham dos conventos de Goiana e Recife (PE). Viveram a recomendação de Cristo: “Ide pelo mundo inteiro e proclamai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15).