Por Rosivaldo Toscano Jr. - 10/06/2015
Ontem, o Conselho Nacional de Justiça – CNJ – aprovou uma Resolução determinando que no mínimo 20% das vagas em concursos públicos para a juízes e servidores sejam ocupadas por pretos e pardos (
aqui).
Primeiramente, achamos melhor traçar o panorama atual para, depois, buscarmos as razões dessa desigualdade e, tão somente, concluirmos com o aprofundamento do nosso entendimento sobre a questão. Vamos limitar a abordagem aos afrodescendentes, sob pena de escrevermos um texto inadequado para a postagem de uma coluna. Mas adiantamos que, em relação aos índios, não há muitas diferenças históricas quanto à condição de seres humanos explorados e oprimidos. Embora a Resolução fale em negro como gênero das etnias preta e parda – que engloba os caboclos (com ascendência de branco com índio), os cafuzos (com ascendência de negros e indígenas) e os mulatos (os que descendem de brancos com negros), dentro de um critério de isonomia, enquanto minoria étnica igualmente empobrecida e sub-representada, os índios devem ser protegidos pela mesma Resolução.
Fazendo uma reflexão sobre os afrodescendentes no mercado de trabalho e na vida social, uma constatação local foi fácil: na magistratura do Rio Grande do Norte, por exemplo, em um universo de cerca de duzentos magistrados, identificamos como fenótipo preto apenas três, duas juízas e um desembargador. Incluindo os pardos, seguramente não teremos mais que trinta. Isso equivale a quinze por cento, apesar dos negros (os pretos e os pardos) representarem, seguramente, mais da metade da população brasileira.
[1] Nossa magistratura tem mais olhos azuis do que pele negra. Dentro da classe política, a sub-representação também é gritante. Dos 513 deputados federais, 80% se declararam brancos.
[2] O salário médio dos negros no Brasil é praticamente a metade
[3] do recebido pelos brancos; os negros são 70% dos pobres e 70% dos indigentes do Brasil (
vide aqui). E na USP, a mais prestigiada Universidade do país, nos cursos de ponta, os negros representam apenas, 0,9%.
[4] Isso mesmo. Menos de um por cento. Como disse Bob Fernandes, “não faltam números. Mas números são até desnecessários. Basta olhar em volta; nas boas escolas privadas, nos ótimos shoppings, nos belos restaurantes… na Mídia”.
[5] Não dá para mantermos mais essa tremenda e histórica desigualdade. Aproveito para fazer uma breve viagem no tempo.
Ao contrário do que o senso comum imagina, para cá veio, acorrentada para sobreviver como escravos, a elite pensante de muitos povos africanos. E atravessaram o Atlântico, humilhados e famintos, nos porões infectados de ratos e pulgas, alguns grupos, incluindo os malês, que sabiam ler e escrever em árabe, fato inusitado em um Brasil em que a maioria da população, incluindo a elite, era analfabeta. Nações inteiras aqui aportaram tão somente pelo fato de terem sido vencidas em batalhas e serem compradas pelos traficantes europeus de escravos africanos, na maioria dos casos, de companhias inglesas e holandesas.
[6]
Mas bastaram algumas poucas gerações nascidas no cativeiro para que o mesmo povo que um dia conheceu a álgebra e a astronomia involuísse para uma condição pré-histórica, afinal de contas, era proibida a educação formal do escravo. Nos termos da Constituição Imperial de 1824, somente faziam jus à educação os cidadãos e os filhos de cidadãos.
[7] (art. 179, XXXII da Constituição Imperial de 1824). Os escravos, obviamente, não eram cidadãos
ex-lege, mas os ingênuos (os nascidos livres) e os libertos (os que obtiveram a alforria) também não o eram nem passiva e nem ativamente cidadãos de fato porque a elegibilidade e o voto eram censitários (art. 45, inciso IV, e art. 92, inciso V, da Constituição Imperial de 1824) e, invariavelmente, eles eram pobres. Assim, os cativos, os ingênuos, os livres e os filhos deles não tinham nenhum acesso à educação formal.
Com a abolição da escravatura negra somente no século XIX e cuja tardança fez o Brasil assumir o desonroso posto de último país do mundo a fazê-lo, a única “política pública” implementada pouco mais de um ano depois para essa massa de miseráveis recém saídos das senzalas foi um novo Código Criminal que dedicou o Capítulo XII à punição dos “Mendigos e Ébrios” (e nem é preciso dizer que os negros “libertados” saíram das senzalas, literalmente, com uma mão na frente e outra atrás) e o XIII, aos “Vadios e Capoeiras”, punindo (art. 402) quem praticasse a conduta de “fazer nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”. Os negros continuaram escravos da sua condição pré-histórica. Não sabiam exercer qualquer arte ou ofício além do trabalho desumano e braçal que aprenderam à força, sob o chicote dos capitães-do-mato.
A imigração europeia em massa seguiu um caminho bem diferente. Com o fim da escravidão, o Brasil se tornou um país de extremos. De um lado, o baronato das usinas de cana-de-açúcar e os grandes cafeicultores; do outro, a massa pré-histórica e faminta de ex-escravos, desprovidos de recursos de qualquer natureza, sem terras, sem cidadania, sem dignidade. No meio, uma escassa classe média de pequenos comerciantes e dos poucos servidores públicos. O plano do governo era, por um lado, fomentar, através da imigração europeia, a construção de uma classe média relevante e o branqueamento da população. Oportuna a imigração em razão da crise na Europa. Ademais, a mão de obra imigrante era qualificada, com etnia, costumes e religiosidade semelhantes à da antiga matriz. E havia a necessidade de povoar a região Sul do país, sempre ameaçada de ocupação pelas nações vizinhas. Devido à política de branqueamento, os negros e o indígenas foram alijados desse processo.
Artesãos e agricultores europeus aportaram em nossas terras, fugindo da fome provocada pela revolução industrial. A política governamental foi a da distribuição de terras ou facilitação de colocação em postos de trabalho e deveriam vir com as famílias, para promover a eugenia, a difusão da etnia branca. Cabe reafirmar que aos negros e índios era vedada a distribuição de terras. Assim, o mesmo escravo que aqui nasceu e que sofreu no pelourinho, sequer tinha o direito a um pedaço de chão. Como acentua Florestan Fernandes Júnior, com a chegada dos imigrantes europeus, estes absorveram as ocupações de maior interesse econômico, fazendo com que os negros e os mulatos perdessem as únicas vias de possível ascensão social.
[8] E acentua:
“[…] a imigração adquire o significado e as proporções de uma calamidade social para o negro e o mulato. A escravidão não prepara o seu agente de trabalho senão para os papéis socioeconômicos do escravo e do liberto no seio da ordem social escravocrata. Quando esta entra em crise e se desintegra, com ela também desaparecem as únicas condições econômicas e socioculturais que protegiam e garantiam os ajustamentos socioeconômicos do “negro” ao sistema de trabalho. (…) sua falta de aptidão para o trabalho livre, a competição inter-racial e o estilo urbano de vida é agravada pela presença de massas de estrangeiros, ávidos por absorverem as oportunidades econômicas existentes (ou em emergência) e totalmente preferidos no mercado de trabalho. Acresce que o próprio “negro” tinha de aprender a agir socialmente como trabalhador livre e a lidar com o mundo da economia urbana sem ter tempo para isso. As coisas caminharam depressa demais. De modo que o desajustamento do “negro”, que poderia ser um fenômeno transitório, converteu-se em desajustamento estrutural. Em vez de ser reabsorvido pelo sistema de trabalho urbano e pela ordem social competitiva, ele foi repelido para as esferas marginais desse sistema, nas quais se concentravam as ocupações irregulares e degradadas, tanto econômica quanto socialmente.
Já o branco estrangeiro que imigrava tinha a política governamental de incentivo à imigração seu favor.[9] O darwinismo social e a eugenia racial se efetivavam, com o fim de “branquear a população”.
Assim, cara pálida, saiba que a representatividade deficiente do afrodescendente na sociedade brasileira não se dá por culpa dele, muito menos por preguiça ou incapacidade. Trata-se de uma condição de opressão histórica que os afeta hoje como reflexo do passado. Ou você já parou para pensar que há menos negros nas universidades porque eles frequentam menos escolas privadas porque seus pais também já são legatários de uma triste herança de desigualdade? E que isso é um círculo vicioso que não terá fim sem ações afirmativas?
Assim, cara pálida, saiba que a representatividade deficiente do afrodescendente na sociedade brasileira não é algo natural, fruto de uma suposta culpa individual, preguiça ou incapacidade derivada de algum fator racial. Trata-se de uma condição de opressão histórica que afeta essas etnias hoje como reflexo do passado, em especial os negros. Trata-se de uma segregação dissimulada sob o véu da “democracia racial”.
[10] Há menos negros nas universidades porque eles frequentam menos escolas privadas porque seus pais também já são legatários de uma triste herança de inferiorização econômico-social. Trata-se de uma violência sistêmica, que não é compreendida facilmente porque já foi introjetada em nossa normalidade. Termina sendo vista como algo corriqueiro, naturalizado no cerne das relações sociais quando comumente se entendem as abissais desigualdades econômicas e sociais do Brasil como “naturais”; quando se defende que o mercado dá iguais oportunidades a brancos e negros e que não temos que responder por fatos ocorridos no passado, porque os negros se encontram em tais situações por “culpa própria”, “inaptidão” ou “preguiça” (ou mesmo inferioridade racial, acreditem, pois ainda há quem, em pequenos círculos, pense assim).
Dessa forma, não se atenta para o fato de que o déficit de representatividade econômica, social e política dos pretos e pardos decorre de práticas que, por inúmeras gerações, os discriminaram negativamente. E não existe o explorado sem o explorador.
Trata-se de uma violência sistêmica, que não é compreendida facilmente porque já foi introjetada em nossa normalidade. Termina sendo vista como algo corriqueiro, naturalizado no cerne das relações sociais. Essa violência é ideológica, passando ao largo da percepção dos que as sofrem e, muitas vezes, também dos que as exercem. Caracteriza-se pela fabricação, através do discurso, de falsas crenças que induzem o indivíduo a acreditar, a consentir e a se comportar de acordo com os padrões desejados pelo estamento. E imersos nessa violência que atua como ideologia, até mesmo os submetidos a ela começam a crer que se tratam de fatos naturais ou inevitáveis, etapas de um processo civilizatório evolutivo ou constitutivo do mundo.
Há vozes contrárias a qualquer tipo de cota. A alegação principal é de, acreditem, racismo contra os brancos. Os principais argumentos estariam em dois dispositivos da Constituição Federal. Eis o que dizem:
“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
(…)
XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, COR ou estado civil;
“Art. 39, § 3º Aplica-se aos servidores ocupantes de cargo público o disposto no art. 7º, IV, VII, VIII, IX, XII, XIII, XV, XVI, XVII, XVIII, XIX, XX, XXII e XXX, podendo a lei estabelecer requisitos diferenciados de admissão quando a natureza do cargo o exigir”.
O argumento contra se fundamenta na isonomia. Com as cotas, estar-se-ia criando favorecimento indevido. Se estimularia a preguiça dos que não se afeiçoam aos estudos e desestimularia a salutar livre concorrência. Promover-se-ia, assim, um paternalismo indesejável e prejudicial ao progresso da sociedade. E há os que ataquem a viabilidade das medidas, sob o argumento de que não há como definir o público-alvo; afinal, quando se é contra, qualquer desculpa serve.
Os tempos exigem um olhar com alteridade, partindo de lá, além das nossas fronteiras individualistas e de conveniência, que somente uma viagem ao encontro do outro pode permitir. E quem sabe, reconhecendo o outro, possamos nos conhecer melhor, estranhando e evitando as posturas de apartheid.
E respondendo à objeção de pretensa violação de princípios constitucionais que vedariam a existência de cotas, trata-se de argumentação sem fundamento normativo.
Cotas não serão critério para admissão. Não se estará restringindo a admissão a negros. Pelo contrário, estar-se-á permitindo que haja uma representatividade social mínima, ainda incompatível com o contingente que representa na população brasileira, é bem verdade, mas que vise materialmente reduzir a desigualdade racial. Isso se chama isonomia. Não a isonomia formal – tão ardilosamente utilizada como razão instrumental para obliterar e verdadeira igualdade, a substancial. É o mínimo que podemos fazer, ainda que com tanto atraso, para promover esse resgate histórico.
Pesquisa realizada pelo próprio CNJ apontou que apenas 14% dos magistrados se declararam pardos, 1,4% pretos e 0,1% índios, em um universo em que os brasileiros que se declaram pardos e pretos atinge 53% da população (
aqui). Talvez a regulamentação afirmativa por parte do CNJ tenha vindo tarde porque cotas em concursos públicos já existem, atualmente, há tempos para portadores de necessidades especiais e foram recentemente adotadas cotas raciais em ações esparsas no próprio Judiciário (
aqui) e, generalizadamente, pelo Poder Executivo Federal (lei 12.990/2014).
Devemos passar a compreender o mundo numa perspectiva histórica. É ela que nos permite enxergar não a pobreza, mas a situação de empobrecimento, nem a inferioridade, mas a inferiorização, ambas socialmente e historicamente construídas e mantidas, bem como que somos responsáveis pela sua manutenção ou extinção. Nossa ação ou omissão é relevante nesse cenário porque nunca deixamos de ser atores sociais.
Materialmente, o que temos hoje, é “cotas” para brancos, ainda que sub-repticiamente impostas. Ou, talvez, até, “critérios discriminatórios” que se exercem e se depuram nas práticas sociais mais comuns e diuturnas. Apenas não existem na ordem do discurso. Elas se reafirmam nas listas de vestibular e de aprovação em concursos públicos. Ou todas as estatísticas mentem?
O Judiciário está dando um exemplo de como reconhecermos a opressão que até hoje causa efeitos negativos na democratização étnico-econômica do país e de como agirmos para pôr fim a esse violento e secular círculo vicioso. Chega de discursos de obliteração (deveria melhorar a escola, deveria haver cotas para pobres e outros chavões ou frases feitas do tipo). E nos perguntamos agora: quantos dos magistrados dos tribunais estaduais e federais no estado em que o leitor reside são mestiços? Seria um bom começo para uma reflexão sobre o tema. Ou melhor: quantos dos seus vizinhos de condomínio são negros (pretos ou pardos)? Nos restaurantes que o leitor frequenta há mais negros como clientes nas mesas ou como empregados na cozinha? Nos supermercados há mais negros nas filas, como consumidores, ou como caixas e embaladores?
Nossa última palavra é sobre a foto. Para quem não nos conheça e possa imaginar que argumentamos em causa própria, o menininho loiro é o autor deste texto, aos três anos.
Notas e Referências:
[6] Por falarmos em Inglaterra, mesma época, imperava o discurso de acusação contra o escravismo praticado nas Américas, mas se ignorava o importante papel da Inglaterra no comércio escravocrata e quando em meados do século XVIII se estimava em 10 mil o número de escravos na ilha europeia. Isso sem falar que no primeiro terço do século XIX, 3/4 do café, quase a totalidade do algodão, do açúcar e do tabaco do império britânico eram produzidos sob o regime escravista. Cf. LOSURDO, Domenico.
Contra-história do liberalismo. 2ª ed. Aparecida: Ideias & Letras, 2006, p. 25
[8] FERNANDES, Florestan.
O negro no mundo dos brancos. Ed. Digital Kindle. São Paulo: Global, 2013, posição 2165.
[9] FERNANDES, Florestan.
O negro no mundo dos brancos. Ed. Digital Kindle. São Paulo: Global, 2013, posição 1717.
[10] FERNANDES, Florestan.
O negro no mundo dos brancos. Ed. Digital Kindle. São Paulo: Global, 2013, posição 1082.
Rosivaldo Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz de direito em Natal, RN.