JUSSIER, A CONCHA E A PÉROLA
Vivo que te quero vivo
Renascente
Redivivo
Vivo que te quero vivo
Vivo como antigamente
Sem sair de nós ás pressas
Sem partir subitamente
Sem apagar-se tão cedo
Qual círio exposto ao vento.
Vivo que te quero vivo
Na tão oculta bondade
Na escondida verdade
De um amor não proclamado
Na perfeição
No cuidado
Na incessante entrega
Na construção de uma tela
Na beleza de um traçado
Trecho de um poema de Augusto Severo Neto em memória de Jussier
O HOMEM PLÁSTICO
Salvo os colegas médicos da sua geração, os intelectuais, os colecionadores dos seus quadros, e, evidentemente, os seus amigos, poucas pessoas sabem quem foi Jussier Ribeiro Magalhães. E bem menos ainda o guardaram na memória para recorrentes ou mesmo escassas recordações. Em boa hora o Governo do Estado criou no Hospital Walfredo Gurgel, um Centro de Tratamento de Queimados com o seu nome, dotando-o de equipamentos e de recursos satisfatórios ao seu objetivo, uma pertinente obsessão do meu amigo
A memória, mais do que o pássaro trêfego e travesso da concepção poética, é pântano, rio caudaloso e manso regato. A superfície lodosa do pântano encobre as más recordações, tudo o que queremos esquecer. O rio caudaloso leva e traz o memorial exuberante, um imagético cinematográfico de curta metragem e efeitos especiais. O regato, as lembranças gravadas prazerosamente na memória, aquelas que apreciamos e degustamos com lentidão e calma, qual a preguiçosa corrente do riacho.
Tudo isso me vem a despropósito, ou a propósito do esquecimento. Porque Jussier se imortalizou para os que o conheceram e ainda hoje o velam, vivo, pelas grandes expressões e pequenas, quase anônimas iniciativas que indicam a nobreza do seu caráter solidário e a imensa ternura que abrigava avarentamente debaixo de sete chaves.
Quando digo quase anônimas as suas iniciativas é porque ele fazia o possível para que elas não fossem dadas como suas, ou as barateava tanto que se desvalorizavam, passando despercebidas. Pelo menos ele assim imaginava. Porque se supunha ou se queria sombra, como se isso fosse possível, logo ele, um colorido que, todavia, se desenhava negro. Sombra é incolor.
Quanto à ternura, referi-me a ela quando tratei de Armando Holanda e o comparei a Jussier. Transcrevo:
“É um tanto desajeitado nos agrados, tal outro amigo querido, Jussier Magalhães, cirurgião plástico e dos maiores pintores do nosso estado, convocado por Deus para o Seu Reino. Entendia o sem-jeito de Jussier e entendo o de Armando. As almas muito sensíveis precisam resguardar o seu carinho, porque se vulnerabilizam, tal como se expusessem as suas “fraturas”, correndo o risco de que alguém, valendo-se dessa fragilidade, ponha o dedo na ferida. Por isso, preservam-se, adotando uma carapaça de indiferença ou de rudeza no ofício do carinho, que as protege, afastando os predadores.”
Não modifico uma vírgula. Era assim o meu amigo.
Tímido, às vezes não suportava que o encarássemos, embora a sua “cara limpa” não aceitasse máscaras, não escondesse subterfúrgios nem subjacentes maquiagens existenciais. Era frágil e vulnerável emocionalmente e sabia disso, tinha receio que outros o soubessem, pela janela escancarada do olhar, dando margem às temerárias explorações que destruíssem a sua precária blindagem, expondo-se às agressões predatórias.
Cultivava um andar rígido e sem girândolas nos braços, estes, quase colados ao corpo, um tanto inertes. A cabeça, quase sem movimentos, projetada na direção do caminho à sua frente, apoiava-se firmemente no pescoço. Postura típica de um que vive sob tensão, de quem se policia para não chamar atenção, de quem não se quer denunciar como espécie diferenciada. De quem, mesmo em movimento, se concentra nas idéias, para não se perder no trivial insatisfatório.
Vestia-se com muito bom gosto, roupas claras, simples, bem talhadas, que pareciam feitas somente para ele, tal a elegância e a casualidade com que as vestia. Ele era “clean” e isso se evidenciava nele por inteiro – no rosto sempre escanhoado, nas roupas, na rígida estética do andar, na disciplina da sua rotina, numa franqueza sem arrodeios que nos confortava, apesar de rude, pela sinceridade. Mesmo que fosse escuro no grafismo dos belíssimos desenhos.
Usava óculos permanentemente, que disfarçavam os olhos, grandes, com cílios tão longos que se encurvavam. Muitos anos depois, conheci um texto que o trouxe até mim. Gilberto Freyre, referindo-se a Randolph Bourne(1), descreveu-o como dono de
“...uns olhos grandes, enormes, tão comuns nos órfãos, nas pessoas feias, nos indivíduos que vivem sós, nos aleijados, nos corcundas.”
Eram grandes e negros os olhos de Jussier. Mas ele não era aleijado, nem corcunda, nem feio, nem órfão. Era um homem bonito. Tinha uma família afetuosa e unida. A mãe, dona Dalva, o pai, seu Antonio, dois irmãos muito devotados a ele – Judson, engenheiro, a quem chamava “neném” e Letúsia, a única irmã, com quem mantinha permanente troca afetiva e diálogo fácil e que se tornou uma espécie de “curadora” de sua obra.
Talvez o “solitário” lhe caiba. Talvez. O modo ressentido dos incompreendidos, carentes ou irrealizados manifestarem o seu protesto – mudo, dissociado, mas sem molestar ninguém, como o fazem os ruidosos panfletários.
Era triste, evidenciava-se triste, embora descobríssemos indícios de uma alegria transitória, trânsfuga, pendular. Aqui e ali mostrava um humor um tanto cáustico, duro, seco - o seu modo de se dizer integrado ao espírito do grupo, mas amostrando as suas diferenças, o seu contido ressentimento que não era contra ninguém em particular, pois amava a todos dadivosamente, mas contra o sistema – o monismo que exigia um alinhamento compulsório ao senso comum e à moral burguesa, ao jeito único de ser humano, a diáspora segregacionista por aí afora...
E ele era uma criatura especial. Nem questionamos o caráter da sua excepcionalidade, embora o tivéssemos como exemplar. Mas era diferente. O modo como se expressava e como se afirmava.
Certa vez “rebolou” uma caixa para o meu filho mais velho, Marcos Frederico, e disse rispidamente: “não use mais aquela porcaria!” Era uma caixa com parafina importada, adquirida quando verificou que o meu filho, surfista àquela época, utilizava um produto de qualidade inferior.
Ou quando nos convidou para jantar, na sua casa de Búzios, defronte à nossa. Um jantar requintado, desde a excelência dos talheres, da louça, dos jogos americanos, do extraordinário cardápio, com direito à entrada, piéce de résistence e sobremesa, tudo feito por ele mesmo, pois era um competente cozinheiro, mais para “gourmet” que para “gourmand” e uns vinhos de “griffe”, licores nativos e importados, água mineral de boa origem e guardanapos de linho, imaculadamente brancos.
Foi-nos servido um bouillabaisse capaz de fazer inveja aos mais renomados chefs de cuisine franceses: desde a escolha correta ao tempo certo de cozimento dos peixes e carne de caranguejos, do bom comportamento dos temperos ao preparo do ruille, com as indispensáveis gotas de Pernod. As torradas, cobertas, melhor dizendo, mergulhadas no molho picante, estavam uma delícia. Os pedaços de peixe e crustáceos também imploravam a submersão completa no mar vermelho do molho picante. Meu Deus do céu!
Para arrematar, uns espertos e quase crocantes pastéizinhos de Santa Clara. É evidente que ninguém poderia ficar insensível a esses mimos. Nem mesmo um profano carnívoro trivialesco que nem eu.
Senti-me, pois, motivado a tecer elogios à altura das carícias recepcionais. E não regateei. Fiz um discurso laudatório de longo curso, detalhando o excepcional banquete, partindo, inclusive, da consideração de que aquele era um prato historicamente plebeu – de restos de comida – e que o seu engenho e arte o havia convertido em acepipe nobre.
Ele aguardou pacientemente o aparentemente digestivo lengalenga e quando acabei ele me encarou – uma das raras vezes que o fazia – e me disse, áspero e inclemente: “não precisava pagar a conta!”
O CIRURGIÃO PLÁSTICO
Creio que foi através do mecanismo que os psicólogos chamam de “compensação” que ele chegou à cirurgia plástica, ao desenho e à pintura. De fato, ele foi vocacionado para essas altiplanuras, mas a necessidade agregou-se á sua própria natureza, naquela troca do genes e da adaptação que definem a matriz do caráter das criaturas. Agora eu consigo estabelecer uma análise mais isenta e percuciente dessas decisões, coerentes com a sua natureza, com a maturação do tempo, que é o senhor de toda a razão e de toda a verdade. Ele tentou corrigir as distorções e colorir, mal-colorindo nos bicos de pena, a fealdade do mundo que descobriu ampliado através das poderosas lentes dos seus olhos de artista.
No ofício da cirurgia plástica, limitou o atendimento estético ao mínimo necessário, já que sobrevivia dessa espacialidade, e se dedicou com maior empenho à prática corretiva dos “queimados” do Hospital Walfredo Gurgel, satisfazendo a sua alma missionária e a esses pacientes deu o melhor de si. Constrangia-lhe a falta de recursos para o atendimento de gente tão sofrida, submetida a dolorosos processos curativos. Custeava do próprio bolso as carências que identificava. E eram muitas. Contam os seus amigos mais íntimos, que o salário que recebia do Walfredo Gurgel só era contabilizado como crédito mês sim, mês não, porque de dois em dois meses, consumia todo o ganho na compra de caríssimos insumos que o Hospital não tinha condições de adquirir.
A sua devoção comoveu a pequena equipe que o auxiliava, um grupo de abnegados enfermeiros e uma grande profissional, sua colega anestesista doutora Rosa Vale do Amaral, a tal ponto, que se deixaram “contaminar” pelo “fransciscanismo” de Jussier.
Muitas vezes nos relatou as dificuldades e os sofrimentos dos seus “queimados”, sobretudo aqueles relacionadas às crianças e aos idosos. Em algumas dessas vezes, em casos mais dramáticos em que punha lado a lado a dor e a indisponibilidade de recursos por descaso e insensibilidade dos governos estaduais, misturava a revolta com um disfarçado arremedo fugidio de lágrimas que eram tangidas como os incômodos argueiros ou os microscópicos insetos que só ele os via. Tentava amostrar-se como um ser humano distante das humaníssimas reações emocionais. Sobretudo as lágrimas que mais e mais o fragilizavam, de si já tão frágil de constituição.
Certa vez, quando se anunciou a visita do então governador Lavoisier Maia, combinou com a sua equipe manter a ala dos queimados do modo em que habitualmente se encontrava, ao invés que “maquiá-la” para a visita do chefe do executivo estadual, para que o administrador avaliasse o estado de emergência daquele departamento. Foi um pandemônio e um escândalo, prato feito para os jornais. Só não foi convenientemente punido, porque precisavam dos seus serviços.
Dormia, acordava, alimentava-se, andava, revolteava, surfava (praticava esse esporte na lagoa de Alcaçuz, solitário e em horas igualmente solitárias), confraternizava com meia dúzia de amigos fiéis, e o tema dos “queimados” terminava aflorando.
Além da família, tinha como amigos, entre outros, Jarbas Borges de Lima, Joventina Simões Oliveira, minha irmã, Ivoni Vieira de França, sua colega, Paulo de Tarso Correia de Melo e Ana Maria, Augusto e Lúcia Severo, Iaperi Araújo, seu duplamente colega, médico e pintor, Dorian Gray, Ana Lígia, Zoraide Melo, Mailde e Cláudio Galvão e a colega-parceira do Walfredo Gurgel, Rosa Amaral.
O ARTISTA PLÁSTICO
Passava ano inteiro preparando as suas telas e promovia exposições com regularidade. Era original no que fazia. Suas obras não “lembravam” nenhum outro desenhista ou pintor. Se houvesse similaridade seria incidental, ou fruto temporão da memória artística subliminar de Jussier. Expressava-se com timbre e linguagem pessoal. Exatamente por isso os seus quadros eram tão disputados nos tempos da Galeria Vila Flor, do amigo e poeta Augusto Severo Neto, desde a Galeria L´Atelier, no longínquo 1966 e depois, o mundo.
Quatro telas produziram-me grande efeito. Uma que eu adquiri e depois fiz uma permuta com minha irmã, atendendo a uma quase-súplica que me fez; outra de propriedade de Jarbas Borges Lima e as outras, respectivamente do meu particular amigo Manoel Onofre Júnior e a de propriedade de Paulo de Tarso.
O quadro de Jarbas é de um lirismo pungente. A poesia transborda da tela e vem até o observador. Um violão recosta-se sobre uma velha cadeira, as paredes perdem a densidade e cedem ás flores e folhas que sustentam um relógio ancestral. O tema é singelo, mas a força impressionista do artista é tão sugestiva que você se enreda com o cenário, se envolve na “atmosfera”, sentindo-se como inocente “voyeur, que, de repente, converte-se num intruso tentado a acariciar ou num gesto mais ousado, tocar o instrumento.
Rescende a solidão, o quadro. E a lembranças. A algo que você já viveu embora não possa precisar a época, nem o lugar. Mas a imaginação lhe apresenta dezenas de circunstâncias e roteiros para estórias vividas ali, num espaço que sugere um quartinho de pensão ou uma água furtada que se perdeu num cenário imponderável.
Entre les deux, son coeur balance. Jussier era um pênsil, um móbile, um galo-dos-ventos. Estava sempre em indeciso trânsito entre as pradarias, veranistas e outonais a um só tempo, e os luares das praias desertas, conferindo a lua, úmida pela emergência do mar. Gosto de pensar que ele se concebia violonista, nestes momentos. Aquele violão recostado na cadeira era seu, de fato. Não conheço a sua preferência musical, mas é difícil imaginar outra composição que não fosse Bach.
Clair de Lune é lugar comum para criatura tão original e de gosto tão apurado. Teria de ser Bach, uma de suas suítes para Cello, com arranjo para o brasileiríssimo instrumento de cordas que com certeza adquiriu. Ou as Bachianas do “nosso” Villa Lobos.
A “minha”, exibe uma recorrente toalha de mesa recortada e sugestivamente ondulada (provavelmente com labirintos nas bordas), tecida com fios grosseiros esgarçados, depondo sobre o testemunho da vida em extinção sugerida pela ossada do peixe, em contraponto com os igualmente recorrentes cajus, que, ao invés gritam a vida, como descreve Jorge Fernandes num dos seus poemas. Há o recurso do mar, ponto de fuga para tanta desolação, revelador do íntimo dorido e atormentado do meu amigo – de fato, um escapista. Por isso se fez pintor, como outros se fazem escritores, ou músicos ou atores. Sobretudo o poeta, em toda a extensão da palavra, todos os que são capazes de sentir com a alma, mais que com a percepção física.
Lembro Pessoa: O poeta é um fingidor/e finge tão completamente/que finge sentir a dor/a dor que deveras sente.
O poeta é um escapista. Os artistas o são. Não adiante prendê-los, porque eles são da espécie Houdini que, por mais preso e mais seguras que sejam as trancas da prisão, sempre se livram das amarras.
A composição poética e musical, a literatura, as artes plásticas, as artes cênicas, a devoção, são métodos infalíveis de fuga. Jussier valia-se da devoção e da pintura, transfigurava-se nas telas, transferia-se, doava-se por inteiro, corpo e alma, o sentimento que sovinava e as emoções que reprimia, às vítimas das chamas.
A composição de Onofre é lírica e quase barroca. Não nego que o invejei por tê-la em casa, sempre ao alcance dos olhos e da imaginação. Uma flor compõe-se com um manuscrito escrito a bico de pena, postos sobre uma toalha bordada. Uma parede carcomida pelo tempo contrapõe-se a uma janela com gradil de madeira, deixando exposto um casario colonial.
Sempre que a vejo, imagino-me em Vila Rica, na casa de um dos inconfidentes, certamente o poeta Tomás Antonio Gonzaga, nos estertores de um poema dedicado à amada Maria Dorotéia Joaquina de Seixas, a Marilia dele Dirceu.
A de Paulo de Tarso poetiza com ele-mesmo poeta, um momento de recordação, de uma lembrança ancestral ou fixação de ícone intelectual. Sobre a recorrente toalha bordada á Richilieu, repousa uma folha de papel virgem, um vidro de tinta de escrever e uma velha foto em que um suposto patriarca com jeito de poeta, busca um ponto de fixação no horizonte para buscar a sua inspiração.
AS OPINIÕES SOBRE O ARTISTA PLÁSTICO
Dele diz Dorian, o poeta-plástico: “A arte de Jussier está na sua coerência artesanal e no seu equilíbrio instrumental. Possuidor de um traço ágil e firme, ele recupera a tradição do desenho em nosso estado que teve em Erasmo e Navarro seus grandes momentos. Um desenho onde o lirismo está presente em todos os seus quadros, liames de um tema romântico recuperado pela maestria do traço seco e lúcido.”
(Convenho que o seu traço é preto, e deliberadamente esgarçado na sua tessitura. Dá-me a sensação de filamentos elétricos, fibras musculares, feixes nervosos, barbantes desgastados. Já a espinha de peixe, não sei porque, talvez pela premonição de vida extinguida, sugeria-me morte. É terrivelmente, tragicamente belo, assim como a Guernica de Picasso).
Ou, como interpreta Navarro, com poesia lúcida (se isso é possível): “O velho candeeiro sobre a mesinha com pano de labirinto parece no seu traço aqui e ali desmanchado, uma presença fantasmal. Uma luz mágica se adentrando em um mundo antigo de coisa perdida, tempo passado.”
O amigo, poeta Paulo de Tarso adentra a alma de Jussier: “Nos desenhos de Jussier está o insistente contraponto entre o objeto e o elemento natural e através destes, uma poderosa sugestão da presença humana, muito maior que a do simples retrato ás vezes mal conseguido e, portanto, estéril.”
Paulo está correto – sente-se o humano, intui-se a presença de alguém em cada uma das composições de Jussier. Ele está ali como observador, interpenetrando os desenhos. Pôs-se ali, transportou-se para a superfície do desenho. Tive essa mesma premonição nas marinhas de Dorian, quando tracei o seu perfil.
A propósito, lembro-me da “luz interior” de Rembrandt, que atrai e se funde com a luz externa. Veja-se que Jussier trabalha mais com o negro do nanquim, aqui e ali violado por um colorido incidental e fugaz. Mas pressente-se a luz, qual fosforescência sobrenatural, a que alude Navarro. Do interior para o exterior.
Três visões mais que reveladoras do desenhista-pintor: o artesão que trabalha “presenças” espectrais.
Diversamente do grande cineasta John Ford, ele não precisava valer-se de grandes locações para produzir os seus temas. Nem de modelos. Mas foi com natural fidelidade, autêntico ás recomendações dos modernistas de 1922, que abandonou as regras acadêmicas europeizadas e se fixou no conhecimento e devoção á sua aldeia.
Radicou-se - ele, cosmopolita como todo natalense o é por genética – junto ás suas raízes, negando ao refinamento que lhe era característica, o lugar-comum que reclama referências as mais remotas, do ponto de vista geográfico, pilhado de algum manual que pouquíssima gente leu. Não era pedante, nem blasé.
De fato, era como Anteu, semideus dado como rei da África na mitologia grega. Filho de Posidon e de Gaia, (Gea, a terra) o que tinha de extraordinário era a sua invencibilidade nas disputas físicas. Hércules não conseguiu vencê-lo, embora tivesse tentado como nunca o fez. Até descobrir que, se o afastasse do chão, ele perdia a sua força. E assim foi feito. Hércules o levantou do solo e, incontinenti, o oponente perdeu a sua força e foi vencido.
Jussier, na sua obra, expõe a sua força criativa, plantando sementes telúricas com as quais se nutre e se identifica: cajus, redes de pescar, toalhas de labirinto, candeeiros, velas de jangada, ossadas de peixes, mangas, bananeiras e limões, velhas e solitárias cadeiras e instrumentos musicais, uma janela se abrindo para o mar, e, surpreendentes e suspeitados girassóis. Os manuscritos soltos ao acaso continham textos poéticos e partituras. As taças guardavam o vinho das celebrações.
Tudo que ele precisava para dar testemunho de vida e de dizer-se.
Jamais se retratou. Se o fizesse, certamente seria uma espécie de orquídea, de difícil germinação, vida breve e cheia de cultivos. Mas bela. E rara.
(1) Randolph Silliman Bourne (1886 / 1918) escritor nascido em Bloomfield, EUA, graduado da Universidade de Columbia. Bourne é conhecido por seus ensaios, especialmente "O Estado". Nasceu paralítico e desfigurado por um acidente na infância e era, essencialmente, um atormentado. De fato um outsider e rebelde, ele mergulhou no intenso pessimismo de Hardy (Judas o obscuro) e sentia a pungente dor existencial de Tolstoi. Gilberto Freyre o descobriu quando estudava em Columbia e o jovem pensador americano exerceu extraordinária influência sobre o pensamento do notável sociólogo brasileiro.
PEDRO SIMÕES NETO – Professor de Direito (aposentado). Escritor e Advogado.
sexta-feira, 3 de setembro de 2010
terça-feira, 31 de agosto de 2010
ISAUTINA DO OUTRO LADO DO CAMINHO
Arte – Óleo sobre tela de Alice Brandão
A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho.
O que eu era para vocês continuarei sendo.
Me dêem o nome que sempre me deram, falem comigo como vocês sempre falavam.
Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo
que nos fazia rir juntos. Pensem em mim. Rezem por mim.
Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho. (Santo Agostinho)
Estou novamente diante de uma folha virgem, que me pede para ser violada. Mas a libido escrevinhadora está reprimida pela emoção, um sentimento arrebatador, transcendente, traduzido numa palavra que é somente nossa, duplamente nossa, os de língua brasílica e os que a experimentam em solidão: saudade.
Tentei inúmeras vezes transpor para o papel um relato sobre a ausência de Isautina, a minha sogra, amiga solidária e sempre presente, mas não pude. Não sabia por onde começar, nem como refrear essa caudalosa torrente de lembranças e de afetos que nos leva para muito distante da margem de onde melhor poderíamos apreciar os horizontes a que nos propomos desvendar.
Quase sempre eu era arrastado pela enchente do rio da memória, que transbordava as margens e cada vez mais me afastava da visão do horizonte.
Agora eu sei por onde começar: pela revelação mais contundente, porque fora do comum. A da “sogra amiga”, partindo-se da constatação de que essa associação é inconciliável, na opinião popular generalizada. No mundo inteiro as sogras são levadas à fogueira inquisitorial como verdadeiras bruxas, e queimadas em fogo brando para arderem mais lentamente, e experimentarem dores e sofrimentos inimagináveis.
De fato, fomos, no sentido pejorativo tradicional, genro e sogra. Batemos de frente inúmeras vezes até nos fazermos entender e respeitar pelo outro, delimitando os nossos territórios. Daí pra frente, deixamos essa condição parenteral(*) e nos convertemos em amigos. Uma amizade construída a partir dos dissensos, das nossas diferenças superadas e, portanto, amadurecida, duradoura.
Amávamos a mesma pessoa. Jailza era a sua única filha e companheira. Amiga incondicional, confidente, consoladora, parceira de “buraco” e de infortúnios, alma sexuadamente gêmea, e por isso capaz de compreender os gemidos, a importância das minimalistas rusgas existenciais cotidianas, como o ato de envelhecer, por exemplo, de se sentir só no meio da multidão e uma vontade leviana de chorar.
As duas eram cúmplices e co-habitantes de um universo só delas que eu nunca quis nem mesmo trafegar, para não quebrar o encanto de um esconderijo, um refúgio, um santuário exclusivo onde se desarmavam e se convertiam nelas mesmas. Em que eram ao mesmo tempo arrimo uma da outra, numa troca permanente de afeição.
Contentei-me em ser a sombra ou a ausência, quando as duas estavam juntas, porque moravam em cidades diferentes e pouco se viam, embora se telefonassem diariamente.
Ela-Isautina percebeu a manobra através de uma das pontes mais sólidas que construímos entre nós – o sentir intuído, sem necessidade de palavras ou explicações. Era uma pessoa de muita sensibilidade e um grau de percepção incomum, beirando o extra-sensorial. Salvo quando se recusava a acreditar no que intuía, como nas questões de família que a infelicitavam. Aí se tornava uma pessoa comum, debilitada e vulnerável.
Nesses momentos, sofria um processo acelerado de um envelhecimento sobrenatural, surpreendente. As rugas aprofundavam-se, os cabelos mais se encaneciam, as costas se curvavam sob peso imaginário insuportável, os olhos se embaciavam. E a voz adquiria um tono mais brando e mais grave. Como se mastigasse o fel para torná-lo mais digestível.
Li que em certas culturas primitivas e isoladas – os esquimós, por exemplo – os mais novos mastigavam os alimentos sólidos, tornando-os pastosos, para facilitar a alimentação dos muito idosos, desdentados. Era manifestação de carinho e de dedicação aos que se haviam devotado á família.
Provavelmente dava-se algo semelhante com Isautina, de modo inverso. Mastigava as fibras, os nervos e os músculos cozidos no sal e no fel do sofrimento, para transferi-los amaciados para os que a consolavam.
Via-a chorar apenas duas vezes e nunca mais desejei vê-la assim. Era uma explosão de dor comprimida, uma expressão magoada de desespero antigo sempre recorrente. Um grito gemido, se é que me entendem. Como o silvo de uma chaleira de água fervente, resultante de uma pressão muito poderosa reprimida sob controle.
Foi quando morreu o seu filho mais velho, Jailson . E quando se sentiu impotente para corrigir uma questão familiar. Jailza me informou que ela muito chorou, também, na morte do ex-marido, em trágico acidente numa rodovia em Mossoró; que, nessa ocasião ela literalmente desabou, pela primeira vez na vida.
É evidente que deve ter chorado muitas vezes sozinha, quando podia dar vazão, sem constrangimento, á sua tristeza que vinha de muito longe, coisa muito antiga e peregrina.
De alegria, lembro-me que chorou quando a filha casou-se comigo. E quando vieram os netos.
Como dizia um outro velho amigo, Jomar Elpidio de Oliveira, referindo-se á sua própria resistência às lágrimas, morava muito longe o “chorador” de Isautina
Porque, apesar de tudo, a alegria era o seu chão. Mercadejava sempre que podia numa feira de trocas, em que a tristeza era moeda corrente para a compra do riso fácil e do desfrute da bem-aventurança da alegria. Feliz não era, mas fazia força para arrancar de dentro de si as raízes da tristeza anciã e andeja, como já foi dito.
Gostava de serestas puxadas a cerveja. Amava a vida. Era generosa e conselheira. Tomava a si os problemas dos amigos e também dos quase amigos e, mesmo sem ter sido convocada, distribuía conselhos e “carões”. Não tinha papas na língua. Na hora de dizer verdades não poupava ninguém, nem mesmo os superiores nem as autoridades em geral. Era uma dessas paraibanas do brejo, retas, transparentes, diretas, solícitas, mas arrelientas, que dão um pão para não entrar numa briga, mas, se provocadas, não saem nem com a oferta de uma padaria.
Respeitava as pessoas e se fazia respeitar por elas. Principalmente pelos homens - que eles não se metessem a besta que ela lhes punha no lugar. Era mulher valente, de pelo na venta. Havia sido Delegada da Mulher e daí em diante, responsável pela coordenação do Juizado da Infância e da adolescência da comarca de Ceará-Mirim.
Na condição de Delegada da Mulher, prendeu muitos agressores do sexo feminino e por isso, deu força às mulheres e pôs cabresto nos ímpetos dos costumeiros torturadores de esposas e de mulheres da rua. Como espécie de Inspetora dos meninos e adolescentes, chamou muitos pais à responsabilidade e coibiu o liberalismo estimulante da paternidade machista daqueles que prendiam as suas “cabras”, mas soltavam e eram excessivamente tolerantes com os seus “bodes”.
Nesse trabalho, sempre contou com o apoio decidido da Juiza responsável pela vara especializada e pelos delegados da cidade.
Era um ser humano transitório, como as flores que só desabrocham em épocas determinadas. Nossa sorte é que ela era mais de uma dezena de espécies e por isso estava sempre florescendo. Era também instável, porque navegava entre o oceano em fúria e o mar em repouso e por isso o seu barco perdia-se entre tempestades e calmarias. Sua vida imitou a arte, fornecendo argumento para um folhetim dramático.
Quando nasceu a mãe trabalhava no cabo da enxada. Enquanto tinha leite para amamentá-la e alguém para ter a menina sob cuidados, ela foi ficando. Quando abandonou o aleitamento materno e o estômago passou a reclamar farinha, feijão e carne, a mãe entregou-a a um casal de conhecidos, para criá-la e depois ser serventia da casa, ate quando arrumasse emprego decente para sustentá-la. Em seguida, trocou a paraibana Araruna pelo solo potiguar.
A menina cresceu e começou a sofrer maus tratos. Era suficiente uma cara feia para justificar uma surra além dos limites do tolerável, que a deixava inativa no dia seguinte. Um dia, a mãe foi viver com um ex-combatente, velho conhecido, e lhe contou o infortúnio da filha. Foi o suficiente para que o companheiro, revoltado com o relato de maus tratos, fosse resgatar a menina e a trouxesse para Natal.
A menina cresceu num lar tranqüilo, com pai adotivo severo, estudou no Colégio das Neves e no Atheneu. E concluído o curso secundário foi levada pelo “padrinho” a alfabetizar os recrutas do então 16º Regimento de Infantaria, na Salgado Filho, onde o pai adotiva servia. Lá, conheceu o “Galego”, rapaz de Serra Negra, analfabeto, bonito e jeitoso, que era ordenança do padrasto. De olho em olho, toque de mãos, proximidade cheirosa, terminou em atração recíproca. Ela, uma morena bonita, de corpo roliço bem feito.
Casou-se com o ordenança, que dera baixa do quartel e agora era caminhoneiro, e foi viver em Mossoró. O marido tinha um espírito aventureiro, não conseguia esquentar lugar. Foi comerciante, dono de frigorífico, motorista particular e assentou-se mesmo havia começado, como caminhoneiro, piloto de sua própria liberdade.
Os filhos foram nascendo: um, dois, três, quatro bocas para alimentar. E o marido no mundo, deixando um dinheirinho que se acabava no meio do mês. Ela foi trabalhar. Depois, decidiu que iria para a Universidade. E foi. Graduou-se em Serviço Social e passou num concurso do estado, para lotar-se em Ceará-Mirim. O marido enfezou-se, mas, diante do inevitável, acompanhou a família, sempre com um pé na casa e outro na estrada.
Um dia o marido a põe contra a parede: ou ele ou o emprego. Preferiu o emprego, a estabilidade, a possibilidade de alimentar e de orientar os filhos na vida. Decisão que lhe custou o marido, a incompreensão de alguns filhos que a culparam pela ruptura da família e a silenciosa censura da sociedade, ainda preconceituosa, da cidade que a acolhera. E particularmente inepta por ocupar um cargo de conselheira social, vale dizer familiar – que autoridade poderia ter para apaziguar casais e orientar a educação dos filhos, com o casamento desfeito, a unidade familiar comprometida, e por decisão dela?
Impôs-se pelo trabalho, dedicação e competência. Recebeu seguidas promoções e preitos de reconhecimento profissional.
O coração era o seu órgão de choque, a caixa de ressonância dos seus embates com as desventuras que o mundo lhe impunha. Os filhos a censuravam por não cuidar-se e era mesmo que nada. O trabalho era sempre mais importante – embora fosse refúgio para não perder o juízo com tantos desencontros. Achava-se forte e portanto capaz de “tirar de letra” qualquer dificuldade. Deus a proveria, a sua fé a manteria sempre protegida.
Certa madrugada sentiu fortes dores no coração e foi levada ao hospital Dr. Percilio. O médico que a atendeu, em face da gravidade do seu estado, recomendou-lhe que viesse a Natal. Providenciou uma ambulância e a conduzimos ao Hospital Antonio Prudente, único autorizado pelo seu plano de saúde, Hapvida.
Aí começou um verdadeiro inferno. Posta numa dependência de primeiro atendimento, foi medicada segundo os padrões regulares do suposto diagnóstico de infarto. O clínico que a atendeu, fez a recomendação de encaminhamento à UTI e a possibilidade de intervenção cirúrgica. Nesse meio tempo, a matriz da empresa responsável pelo plano de saúde, a Hapvida, localizada em Fortaleza, informou que o seu prazo de carência recomendado, não havia sido ultrapassado. E, de fato, a carência já fora superada. Em seguida, que a recomendação do clinico não poderia ser atendida, porque não havia provisão no seu contrato. E havia.
Mesmo que não houvesse, a lei determinava o atendimento em caráter compulsório, em situações semelhantes, porque ela corria risco de vida. Esses trâmites consumiram mais de quatro horas, tempo precioso perdido em detrimento das suas chances de sobrevivência. Finalmente, desesperados, requisitamos uma UTI móvel da SAMU e, depois de mais uma hora de atendimento a procedimentos burocráticos, a dita ambulância e a respectiva equipe chegaram ela foi transportada ao Hospital do Coração.
Nessa unidade de saúde, ela foi conveniente e competentemente tratada, submetendo-se a duas cirurgias que, no entanto, dado ao agravamento do seu estado de saúde em razão da demora na tomada de providências, veio de falecer.
Morreu por negligência e omissão criminosa da dupla Hospital Antonio Prudente/ Hapvida, useiros e vezeiros deste tipo de expediente doloso, e que, nada obstante, ainda não foi suficientemente sancionado. Permanecem impunes, operando os seus negócios comerciais de modo criminoso.
Mas, sem que a ocorrência trouxesse nenhum consolo ou compensação pela perda da nossa querida amiga, as duas instituições criminosas foram condenadas, por sentença com trânsito em julgado, que reconheceu o direito à indenização dos seus herdeiros por perdas morais e materiais, reconhecendo, por conseqüência, a omissão e a negligência desses fabricantes de viúvos e viúvas.
Entre a indignação, a raiva e o sentimento de perda, prevaleceu a saudade, o sentimento de havermos sofrido a amputação de parte de nós, uma mutilação que nos deformou e cuja marca não pode ser enxertada. Uma cicatriz indelével, uma fratura exposta que nos denuncia sempre a origem: a falta do sorriso brejeiro de Isautina, do seu andar arrastado de quem padece de “esporões” nos pés, a voz roufenha pelo vício do cigarro, os vestidos de estamparias alegres, a maquiagem caprichosa, as suas mãos de fada no preparo das refeições triviais e extraordinárias, os seus resmungos cavilosos e os “carões” desconcertantes, mas tolerados.
Ficou-me uma última imagem, de uma foto tirada no São Pedro de 2008, dois meses antes de sua morte. Ela encarou a máquina com um sorriso meio debochado, cheio de brejeirice, que acentuou a falha nos dentes frontais mais expostos – uma marca pessoal. Trajava um vestido de florzinhas roceiras, bem a propósito da festa, e uma flor vermelha (uma papoula?) presa nos cabelos. A maquiagem lembrava a pintura das roceiras de antigamente.
Quando conclui a fotografia, disse-lhe que estava parecendo uma donzela do pastoril.
Ela olhou-me, zombeteira e provocadora, dizendo o seu bordão preferido:
- Você gosta de mexer, não é? Macaco não olha pro rabo...
Ainda nos vimos, e não sabíamos que seria a penúltima vez, quando veio para o velório de uma amiga, Chica, a irmã da nossa amiga Ana “Balaio”. Depois, pela derradeira vez, no hospital, sofrendo anginas insuportáveis mas encontrando tempo para mais um chiste: Gente ruim não morre fácil...É verdade. São os bons que Deus convoca para auxiliá-lo.
PEDRO SIMÕES – Professor de Direito (aposentado) Escritor e Advogado
Arte – Óleo sobre tela de Alice Brandão
A morte não é nada. Eu somente passei para o outro lado do caminho.
O que eu era para vocês continuarei sendo.
Me dêem o nome que sempre me deram, falem comigo como vocês sempre falavam.
Não utilizem um tom solene ou triste, continuem a rir daquilo
que nos fazia rir juntos. Pensem em mim. Rezem por mim.
Eu não estou longe, apenas estou do outro lado do caminho. (Santo Agostinho)
Estou novamente diante de uma folha virgem, que me pede para ser violada. Mas a libido escrevinhadora está reprimida pela emoção, um sentimento arrebatador, transcendente, traduzido numa palavra que é somente nossa, duplamente nossa, os de língua brasílica e os que a experimentam em solidão: saudade.
Tentei inúmeras vezes transpor para o papel um relato sobre a ausência de Isautina, a minha sogra, amiga solidária e sempre presente, mas não pude. Não sabia por onde começar, nem como refrear essa caudalosa torrente de lembranças e de afetos que nos leva para muito distante da margem de onde melhor poderíamos apreciar os horizontes a que nos propomos desvendar.
Quase sempre eu era arrastado pela enchente do rio da memória, que transbordava as margens e cada vez mais me afastava da visão do horizonte.
Agora eu sei por onde começar: pela revelação mais contundente, porque fora do comum. A da “sogra amiga”, partindo-se da constatação de que essa associação é inconciliável, na opinião popular generalizada. No mundo inteiro as sogras são levadas à fogueira inquisitorial como verdadeiras bruxas, e queimadas em fogo brando para arderem mais lentamente, e experimentarem dores e sofrimentos inimagináveis.
De fato, fomos, no sentido pejorativo tradicional, genro e sogra. Batemos de frente inúmeras vezes até nos fazermos entender e respeitar pelo outro, delimitando os nossos territórios. Daí pra frente, deixamos essa condição parenteral(*) e nos convertemos em amigos. Uma amizade construída a partir dos dissensos, das nossas diferenças superadas e, portanto, amadurecida, duradoura.
Amávamos a mesma pessoa. Jailza era a sua única filha e companheira. Amiga incondicional, confidente, consoladora, parceira de “buraco” e de infortúnios, alma sexuadamente gêmea, e por isso capaz de compreender os gemidos, a importância das minimalistas rusgas existenciais cotidianas, como o ato de envelhecer, por exemplo, de se sentir só no meio da multidão e uma vontade leviana de chorar.
As duas eram cúmplices e co-habitantes de um universo só delas que eu nunca quis nem mesmo trafegar, para não quebrar o encanto de um esconderijo, um refúgio, um santuário exclusivo onde se desarmavam e se convertiam nelas mesmas. Em que eram ao mesmo tempo arrimo uma da outra, numa troca permanente de afeição.
Contentei-me em ser a sombra ou a ausência, quando as duas estavam juntas, porque moravam em cidades diferentes e pouco se viam, embora se telefonassem diariamente.
Ela-Isautina percebeu a manobra através de uma das pontes mais sólidas que construímos entre nós – o sentir intuído, sem necessidade de palavras ou explicações. Era uma pessoa de muita sensibilidade e um grau de percepção incomum, beirando o extra-sensorial. Salvo quando se recusava a acreditar no que intuía, como nas questões de família que a infelicitavam. Aí se tornava uma pessoa comum, debilitada e vulnerável.
Nesses momentos, sofria um processo acelerado de um envelhecimento sobrenatural, surpreendente. As rugas aprofundavam-se, os cabelos mais se encaneciam, as costas se curvavam sob peso imaginário insuportável, os olhos se embaciavam. E a voz adquiria um tono mais brando e mais grave. Como se mastigasse o fel para torná-lo mais digestível.
Li que em certas culturas primitivas e isoladas – os esquimós, por exemplo – os mais novos mastigavam os alimentos sólidos, tornando-os pastosos, para facilitar a alimentação dos muito idosos, desdentados. Era manifestação de carinho e de dedicação aos que se haviam devotado á família.
Provavelmente dava-se algo semelhante com Isautina, de modo inverso. Mastigava as fibras, os nervos e os músculos cozidos no sal e no fel do sofrimento, para transferi-los amaciados para os que a consolavam.
Via-a chorar apenas duas vezes e nunca mais desejei vê-la assim. Era uma explosão de dor comprimida, uma expressão magoada de desespero antigo sempre recorrente. Um grito gemido, se é que me entendem. Como o silvo de uma chaleira de água fervente, resultante de uma pressão muito poderosa reprimida sob controle.
Foi quando morreu o seu filho mais velho, Jailson . E quando se sentiu impotente para corrigir uma questão familiar. Jailza me informou que ela muito chorou, também, na morte do ex-marido, em trágico acidente numa rodovia em Mossoró; que, nessa ocasião ela literalmente desabou, pela primeira vez na vida.
É evidente que deve ter chorado muitas vezes sozinha, quando podia dar vazão, sem constrangimento, á sua tristeza que vinha de muito longe, coisa muito antiga e peregrina.
De alegria, lembro-me que chorou quando a filha casou-se comigo. E quando vieram os netos.
Como dizia um outro velho amigo, Jomar Elpidio de Oliveira, referindo-se á sua própria resistência às lágrimas, morava muito longe o “chorador” de Isautina
Porque, apesar de tudo, a alegria era o seu chão. Mercadejava sempre que podia numa feira de trocas, em que a tristeza era moeda corrente para a compra do riso fácil e do desfrute da bem-aventurança da alegria. Feliz não era, mas fazia força para arrancar de dentro de si as raízes da tristeza anciã e andeja, como já foi dito.
Gostava de serestas puxadas a cerveja. Amava a vida. Era generosa e conselheira. Tomava a si os problemas dos amigos e também dos quase amigos e, mesmo sem ter sido convocada, distribuía conselhos e “carões”. Não tinha papas na língua. Na hora de dizer verdades não poupava ninguém, nem mesmo os superiores nem as autoridades em geral. Era uma dessas paraibanas do brejo, retas, transparentes, diretas, solícitas, mas arrelientas, que dão um pão para não entrar numa briga, mas, se provocadas, não saem nem com a oferta de uma padaria.
Respeitava as pessoas e se fazia respeitar por elas. Principalmente pelos homens - que eles não se metessem a besta que ela lhes punha no lugar. Era mulher valente, de pelo na venta. Havia sido Delegada da Mulher e daí em diante, responsável pela coordenação do Juizado da Infância e da adolescência da comarca de Ceará-Mirim.
Na condição de Delegada da Mulher, prendeu muitos agressores do sexo feminino e por isso, deu força às mulheres e pôs cabresto nos ímpetos dos costumeiros torturadores de esposas e de mulheres da rua. Como espécie de Inspetora dos meninos e adolescentes, chamou muitos pais à responsabilidade e coibiu o liberalismo estimulante da paternidade machista daqueles que prendiam as suas “cabras”, mas soltavam e eram excessivamente tolerantes com os seus “bodes”.
Nesse trabalho, sempre contou com o apoio decidido da Juiza responsável pela vara especializada e pelos delegados da cidade.
Era um ser humano transitório, como as flores que só desabrocham em épocas determinadas. Nossa sorte é que ela era mais de uma dezena de espécies e por isso estava sempre florescendo. Era também instável, porque navegava entre o oceano em fúria e o mar em repouso e por isso o seu barco perdia-se entre tempestades e calmarias. Sua vida imitou a arte, fornecendo argumento para um folhetim dramático.
Quando nasceu a mãe trabalhava no cabo da enxada. Enquanto tinha leite para amamentá-la e alguém para ter a menina sob cuidados, ela foi ficando. Quando abandonou o aleitamento materno e o estômago passou a reclamar farinha, feijão e carne, a mãe entregou-a a um casal de conhecidos, para criá-la e depois ser serventia da casa, ate quando arrumasse emprego decente para sustentá-la. Em seguida, trocou a paraibana Araruna pelo solo potiguar.
A menina cresceu e começou a sofrer maus tratos. Era suficiente uma cara feia para justificar uma surra além dos limites do tolerável, que a deixava inativa no dia seguinte. Um dia, a mãe foi viver com um ex-combatente, velho conhecido, e lhe contou o infortúnio da filha. Foi o suficiente para que o companheiro, revoltado com o relato de maus tratos, fosse resgatar a menina e a trouxesse para Natal.
A menina cresceu num lar tranqüilo, com pai adotivo severo, estudou no Colégio das Neves e no Atheneu. E concluído o curso secundário foi levada pelo “padrinho” a alfabetizar os recrutas do então 16º Regimento de Infantaria, na Salgado Filho, onde o pai adotiva servia. Lá, conheceu o “Galego”, rapaz de Serra Negra, analfabeto, bonito e jeitoso, que era ordenança do padrasto. De olho em olho, toque de mãos, proximidade cheirosa, terminou em atração recíproca. Ela, uma morena bonita, de corpo roliço bem feito.
Casou-se com o ordenança, que dera baixa do quartel e agora era caminhoneiro, e foi viver em Mossoró. O marido tinha um espírito aventureiro, não conseguia esquentar lugar. Foi comerciante, dono de frigorífico, motorista particular e assentou-se mesmo havia começado, como caminhoneiro, piloto de sua própria liberdade.
Os filhos foram nascendo: um, dois, três, quatro bocas para alimentar. E o marido no mundo, deixando um dinheirinho que se acabava no meio do mês. Ela foi trabalhar. Depois, decidiu que iria para a Universidade. E foi. Graduou-se em Serviço Social e passou num concurso do estado, para lotar-se em Ceará-Mirim. O marido enfezou-se, mas, diante do inevitável, acompanhou a família, sempre com um pé na casa e outro na estrada.
Um dia o marido a põe contra a parede: ou ele ou o emprego. Preferiu o emprego, a estabilidade, a possibilidade de alimentar e de orientar os filhos na vida. Decisão que lhe custou o marido, a incompreensão de alguns filhos que a culparam pela ruptura da família e a silenciosa censura da sociedade, ainda preconceituosa, da cidade que a acolhera. E particularmente inepta por ocupar um cargo de conselheira social, vale dizer familiar – que autoridade poderia ter para apaziguar casais e orientar a educação dos filhos, com o casamento desfeito, a unidade familiar comprometida, e por decisão dela?
Impôs-se pelo trabalho, dedicação e competência. Recebeu seguidas promoções e preitos de reconhecimento profissional.
O coração era o seu órgão de choque, a caixa de ressonância dos seus embates com as desventuras que o mundo lhe impunha. Os filhos a censuravam por não cuidar-se e era mesmo que nada. O trabalho era sempre mais importante – embora fosse refúgio para não perder o juízo com tantos desencontros. Achava-se forte e portanto capaz de “tirar de letra” qualquer dificuldade. Deus a proveria, a sua fé a manteria sempre protegida.
Certa madrugada sentiu fortes dores no coração e foi levada ao hospital Dr. Percilio. O médico que a atendeu, em face da gravidade do seu estado, recomendou-lhe que viesse a Natal. Providenciou uma ambulância e a conduzimos ao Hospital Antonio Prudente, único autorizado pelo seu plano de saúde, Hapvida.
Aí começou um verdadeiro inferno. Posta numa dependência de primeiro atendimento, foi medicada segundo os padrões regulares do suposto diagnóstico de infarto. O clínico que a atendeu, fez a recomendação de encaminhamento à UTI e a possibilidade de intervenção cirúrgica. Nesse meio tempo, a matriz da empresa responsável pelo plano de saúde, a Hapvida, localizada em Fortaleza, informou que o seu prazo de carência recomendado, não havia sido ultrapassado. E, de fato, a carência já fora superada. Em seguida, que a recomendação do clinico não poderia ser atendida, porque não havia provisão no seu contrato. E havia.
Mesmo que não houvesse, a lei determinava o atendimento em caráter compulsório, em situações semelhantes, porque ela corria risco de vida. Esses trâmites consumiram mais de quatro horas, tempo precioso perdido em detrimento das suas chances de sobrevivência. Finalmente, desesperados, requisitamos uma UTI móvel da SAMU e, depois de mais uma hora de atendimento a procedimentos burocráticos, a dita ambulância e a respectiva equipe chegaram ela foi transportada ao Hospital do Coração.
Nessa unidade de saúde, ela foi conveniente e competentemente tratada, submetendo-se a duas cirurgias que, no entanto, dado ao agravamento do seu estado de saúde em razão da demora na tomada de providências, veio de falecer.
Morreu por negligência e omissão criminosa da dupla Hospital Antonio Prudente/ Hapvida, useiros e vezeiros deste tipo de expediente doloso, e que, nada obstante, ainda não foi suficientemente sancionado. Permanecem impunes, operando os seus negócios comerciais de modo criminoso.
Mas, sem que a ocorrência trouxesse nenhum consolo ou compensação pela perda da nossa querida amiga, as duas instituições criminosas foram condenadas, por sentença com trânsito em julgado, que reconheceu o direito à indenização dos seus herdeiros por perdas morais e materiais, reconhecendo, por conseqüência, a omissão e a negligência desses fabricantes de viúvos e viúvas.
Entre a indignação, a raiva e o sentimento de perda, prevaleceu a saudade, o sentimento de havermos sofrido a amputação de parte de nós, uma mutilação que nos deformou e cuja marca não pode ser enxertada. Uma cicatriz indelével, uma fratura exposta que nos denuncia sempre a origem: a falta do sorriso brejeiro de Isautina, do seu andar arrastado de quem padece de “esporões” nos pés, a voz roufenha pelo vício do cigarro, os vestidos de estamparias alegres, a maquiagem caprichosa, as suas mãos de fada no preparo das refeições triviais e extraordinárias, os seus resmungos cavilosos e os “carões” desconcertantes, mas tolerados.
Ficou-me uma última imagem, de uma foto tirada no São Pedro de 2008, dois meses antes de sua morte. Ela encarou a máquina com um sorriso meio debochado, cheio de brejeirice, que acentuou a falha nos dentes frontais mais expostos – uma marca pessoal. Trajava um vestido de florzinhas roceiras, bem a propósito da festa, e uma flor vermelha (uma papoula?) presa nos cabelos. A maquiagem lembrava a pintura das roceiras de antigamente.
Quando conclui a fotografia, disse-lhe que estava parecendo uma donzela do pastoril.
Ela olhou-me, zombeteira e provocadora, dizendo o seu bordão preferido:
- Você gosta de mexer, não é? Macaco não olha pro rabo...
Ainda nos vimos, e não sabíamos que seria a penúltima vez, quando veio para o velório de uma amiga, Chica, a irmã da nossa amiga Ana “Balaio”. Depois, pela derradeira vez, no hospital, sofrendo anginas insuportáveis mas encontrando tempo para mais um chiste: Gente ruim não morre fácil...É verdade. São os bons que Deus convoca para auxiliá-lo.
PEDRO SIMÕES – Professor de Direito (aposentado) Escritor e Advogado
segunda-feira, 30 de agosto de 2010
domingo, 29 de agosto de 2010
“SINTO VERGONHA DE MIM”
Poema – (Sétimas em setissílabos)
“SINTO VERGONHA DE MIM!”
Dissera Ruy, no Senado,
Completamente arrasado,
Por não poder fazer nada,
Em favor da mocidade,
Ante a falta de hombridade,
Da época, a “companheirada”.
Moralidade? acabada,
No seu conceito geral.
Pressentira que esse mal,
Por suas incongruências,
Levaria a juventude
À maior decrepitude,
Às piores conseqüências.
Da massa, as resistências,
Estavam todas minadas.
As estratégias, forjadas,
No cadinho mais imundo,
Desde roubo à safadeza,
Já denotava esperteza
Em dominar todo mundo.
Hoje, o povo moribundo,
Vive da enganação.
O conceito de Nação
Não tem sentido, nem fim.
Sai ladrão, entra assaltante,
Guerrilheira flamejante...
“SINTO VERGONHA DE MIM!”.
.
Wellington Leiros
wleiros.169@digi.com.br
(27.08.2010)
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