sexta-feira, 25 de junho de 2010

A condenação do Cristo marxista
Gilson Caroni Filho

Nas páginas do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, a grande heresia não está no fato de o personagem pedir perdão pelos pecados de Deus. O que o Vaticano não pode perdoar é a denúncia corajosa a um cristianismo imperial e colonialista.
Que estranhos desígnios inspiraram o “L’Osservatore Romano” a atacar,em editorial, o escritor José Saramago, falecido recentemente na Espanha? Chamá-lo de populista extremista, que se referia “com comodidade a um Deus no qual jamais acreditou por considerar-se todo poderoso e onisciente” não revela apenas uma atitude fria e inflexível com um humanista ateu. Vai além. Reforça apreensões em relação aos objetivos políticos do Vaticano e suas consequências éticas.
Se a eleição do cardeal Ratzinger como supremo pontífice da Igreja Católica constituiu um acontecimento cuja gravidade poucos subestimaram, a superação integrista das contradições do Concílio Vaticano II já se delineava claramente no pontificado de seu antecessor, João Paulo II, quando as bases sociais da Teologia da Libertação foram firmemente atacadas.
Em 1983, ao visitar a América Central, suas homilias mantiveram fina sintonia com o projeto do governo Reagan para a região. Em Manágua, o papa não apenas não correspondeu às expectativas do povo nicaraguense de condenação clara às agressões incentivadas pelo imperialismo estadunidense, como também deu ênfase ao que mais dividia o governo sandinista e a hierarquia eclesiástica, à época: o da fidelidade dos sacerdotes e religiosas à igreja e à exigência de não participarem na responsabilidade da gestão governamental. Uma declaração de guerra aos partidários de um cristianismo progressista. Reafirmação classista de uma instituição multissecular.
Na Guatemala, um dos países em que a repressão dos governos militares fez mais vítimas entre os religiosos, João Paulo II não só visitou o presidente Ríos Montt, conhecido por ordenar massacres contra a oposição, como permitiu que o general lhe pedisse o afastamento de sacerdotes da política. Nos discursos papais não houve qualquer protesto contra fuzilamentos sistemáticos; apenas menções genéricas a Direitos Humanos. O Cristo do Vaticano, ao contrário do de Saramago, não deu ouvido a comunidades indígenas e camponesas tratadas como estrangeiras em seus próprios países.
Embora saiba muito bem que estão implícitas, na violência que se expande, a questão do poder, dos interesses econômicos nacionais e internacionais, além das considerações geopolíticas, o Jesus do “L’Osservatore” ignora que a promessa anunciada só se efetivará provocando uma transformação radical da condição social do homem. No livro de Saramago, Jesus, filho de José e amante de Madalena, vive a Paixão dos novos sujeitos. Seu sacrifício é a labuta das populações negras, o sofrimento das índias e o sangue camponês que jorra nos latifúndios.
A coexistência de um papado ultra-reacionário com governos de extrema-direita, como foi o de Bush, implica uma luta mundial de idéias que, não duvidem, será muito intensa. A crítica a uma religião de mercado, que exige o sacrifício de vidas humanas e o aniquilamento de natureza é a batalha da esquerda de nosso tempo.
Nessa guerra, ao contrário do que afirma o Vaticano, o Cristo de Saramago é aliado fundamental. Nas páginas do “Evangelho segundo Jesus Cristo”, a grande heresia não está no fato de o personagem pedir perdão pelos pecados de Deus. O que o Vaticano não pode perdoar é a denúncia corajosa a um cristianismo imperial e colonialista. Um sistema de crenças que, para validar a opressão, necessita de uma metafísica negativa sobre os homens e sua história.
Saramago provocou a ira da cúpula da Igreja Católica ao reafirmar a modernidade e os valores de igualdade e liberdade. Foi isso que seu Cristo Marxista proclamou. Não de maneira idílica, mas de forma dialética, como reafirmação de vidas que devem transcender a si mesmas, eliminando práticas e relações que geram opressão e miséria.


(Colaboração do escritor Ciro Tavares, de Brasília)

quinta-feira, 24 de junho de 2010


DONA MILITANA
O CINEASTA HERMES LEAL LANÇA EM 28 DE JUNHO DE 2010 NO CINE CEARÁ EM FORTALEZA O DOCUMENTARIO “DONA MILITANA A ROMANCEIRA DOS OITEIROS” COM TRILHA SONORA DO VIOLONISTA GEREBA

Dona Militana deixa romances em CDs
Publicação: 22 de Junho de 2010 às 00:00 Tribuna do Norte
Diferente do norte-rio-grandense Fabião das Queimadas, que morreu sem fazer qualquer tipo de registro sonoro de seus romances entoados, Dona Militana deixa para os pesquisadores e apreciadores de seu trabalho, suas palavras, sua voz e sua imagem em discos como o CD triplo Cantares, realizado pela Fundação Hélio Galvão e Scriptorin Candinha Bezerra. O disco Cantares, mais que o registro sonoro de Dona Militana foi o que impulsionou a romanceira no cenário da cultura nacional. Foi a partir dos eventos de lançamento do disco, que intelectuais, jornalistas e pesquisadores passaram a conhecer a dimensão do fenômeno Militana. O disco teve a direção artística do produtor cultural e escritor Dácio Galvão.
Segundo Dácio, o disco foi o resultado de dois anos de trabalho ininterruptos. “Dona Militana era muito tímida. Às vezes ela ia para o estúdio gravar, cantava duas músicas e voltava”, relembra Dácio. Nas 53 faixas do CD a romanceira canta acompanhada de grandes instrumentistas, como a pianista Dolores Portela (que tocou um cravo trazido de Pernambuco), o músico Osvaldo D’Amore (violino) e o flautista Carlinhos Zens. Além do violino, do cravo e da flauta, outros instrumentos foram usados para acompanhar Dona Militana.
Os instrumentistas tiveram que seguir a linha melódica da romanceira, suas pausas e até suas desentoadas. “Não violentamos digitalmente as gravações, por isso os músicos tiveram que se submeter ao seu estilo”, disse Dácio. Segundo o produtor, o disco é uma verdadeira atualização do romance ibérico, num cenário contemporâneo. No lançamento do disco, no Sesc Pompéia (SP), Dona Militana protagonizou ao lado de Ariano Suassuna e Antônio Carlos Nobrega, dois dos principais nomes da cultura brasileira. O produtor cultural lembra que Dona Militana no palco do Sesc de São Paulo, já sentia que deveria assumir uma postura cênica, tanto que já incorporava uma postura diferente diante do público. Dácio relata que naquela noite, Antônio Carlos Nóbrega combinou o romance que ela iria cantar na apresentação, mas na hora ela não cumpriu com o combinado, deixando todo mundo louco. “Dona Militana foi ovacionada de pé”.
O disco além de registrar 53 dos 800 romances guardados na memória de Dona Militana, traz fotos e uma representação escrita da sonorização de palavras, que não estão relacionadas a nenhum idioma conhecido.
O CD teve a tiragem de 1000 cópias, muitas das quais doadas a instituições e pesquisadores. Outra parte foi entregue a própria Dona Militana para que pudesse vender. Segundo Dácio, os discos restantes compõem a reserva técnica da Fundação Hélio Galvão e do e Scriptorin Candinha Bezerra, mas podem ser consultados mediante solicitação.
Além de Cantares, outros três discos trazem a voz, a letra e a melodia de Dona Militana: “Songa também dá Coco” feito pela prefeitura de São Gonçalo do Amarante em 1999; “Romances e cantos de Incelências”, da Fundação José Augusto, também no final da década de 90; e “Sergipe Cantadores e Violeiros”, da Secretaria de Educação de Sergipe em 1990.
Dona Militana, do Estrelato ao Abandono
“Lá nos Barreiros onde eu nasci,
Em São Gonçalo onde eu me criei,
Eu vou voltar pra meu sítio Oiteiro,
Adeus Rio de Janeiro, adeus.”
(versos cantados por Dona Militana numa apresentação no Teatro João Caetano, Rio de Janeiro, durante participação especial no espetáculo "Lunário Perpétuo", ao lado do brincante pernambucano Antônio Nóbrega).
Matriarca de uma grande família, administra a vida e uma vila de casas de taipa, pertencentes a seus filhos, netos e bisnetos que moram no entorno de sua casa de tijolo humilde, visitada por artistas e pesquisadores importantes. Aos 79 anos de idade, Dona Militana mora com a filha Benedita no alto de Canaã, comunidade de São Gonçalo do Amarante. Seu ambiente já foi objeto de ensaio fotográfico por Candinha Bezerra, por quem Dona Militana guarda especial apreço.
Dona Militana canta romances. Um estilo popular que foi herdado da Europa Medieval, mais precisamente da cultura ibérica, carregando em seus enredos histórias trágicas sobre príncipes e plebeus. A romanceira lembra de músicas que poderiam ser perdidas com o tempo e, com elas, uma fatia da cultura brasileira, nordestina e potiguar.
Dona Militana só começou a cantar os romances na década de 1990, depois que o pesquisador e folclorista Deífilo Gurgel a descobriu. De acordo com o folclorista, Dona Militana é importantíssima para o folclore brasileiro. “Ela cantou um romance religioso pra mim, chamado O Milagre do Trigo, esse romance não existe no Brasil nem em Portugal, só existe versos dele na Espanha. O que me intriga é como isso veio parar na cabeça dela. Ela é uma pessoa fabulosa em matéria de cultura tradicional do romanceio. A mulher é fora de série. Atualmente, ela é a maior romanceira do Brasil” afirmou Deífilo Gurgel.
Conhecedora de dezenas de peças raras dos romanceiros ibéricos e brasileiros, Dona Militana aprendeu os cantos através de seu pai, Atanásio Salustino do Nascimento, conhecida figura do folclore de São Gonçalo do Amarante.
Dona Militana foi destaque em 1992, na imprensa nacional quando esteve em São Paulo e no Rio de Janeiro cantando durante o lançamento do CD triplo "Cantares", do Projeto Nação Potiguar, e ainda participando de outros eventos. Ela fez sucesso entre pesquisadores e intelectuais, que viram nela uma das últimas representantes vivas dessa tradição.
Críticos e jornalistas de grandes jornais brasileiros se renderam aos encantos e mistérios da voz de Dona Militana. O jornalista Mauro Dias, de O Estado de São Paulo assim a descreveu: "Canta romances. Histórias centenárias, sobre reis e princesas, duques e plebéias; histórias terríveis, romances de amor e morte, de ciúmes e vinganças mantidas, por algum motivo, a ser descoberto, num formato muito próximo ao da origem, os cantadores medievais da península ibérica."
Romances, xácaras, modinhas, toadas de boi, coco, romarias, desafios, cancela, parcela, moirão, aboios, jornadas de chegança e fandango constituem o universo imaginário de Dona Militana. Essa diversificação de gêneros fornece o ambiente propício para que a romanceira conte estórias de reis e princesas, de duques e condes, de cangaceiros, escravos, súditos, santos, coronéis e mitos, que compõem o legado herdado pela intérprete de seus antepassados, que a memória privilegiada fez preservar, permitindo o justo registro para a posteridade.
Visivelmente abatida pela idade e com sérias crises de pressão alta, Dona Militana reside com uma de suas sete filhas, Benedita e alguns netos, numa casa simples e sem conforto, na comunidade de Canaã, São Gonçalo do Amarante.
Apesar de ter uma grande consideração pela fotógrafa Candinha Bezerra, Dona Militana sente-se esquecida pela mesma. “Ela mandou arrancar todos os meus dentes e prometeu colocar uma prótese. Já se passaram cinco meses e ninguém nunca mais apareceu por aqui”, desabafou.
Dona Militana também não recebe nenhum centavo dos royalties ou direitos autorais com a venda do CD Cantares, desenvolvido pela Fundação Hélio Galvão, dentro do projeto Nação Potiguar. A romanceira diz que recebeu apenas R$ 2 mil. Não há nenhum CD em casa para que ela possa vender ou mostrar aos seus visitantes.
Durante o Auto de Natal, ao lado da cantora Elba Ramalho e do ator global Lázaro Ramos, Dona Militana fez uma apresentação especial e, até hoje não recebeu o cachê prometido pela Fundação José Augusto, órgão responsável pelo evento. Enquanto isso, o Governo do Estado pagou uma fortuna aos “artistas” nacionais pela participação na peça. “Já cansei de ligar para a Fundação e ninguém diz quando minha mãe vai receber o dinheiro”, disse Benedita Nogueira, filha de Dona Militana.
Comovidos pela situação da romanceira, um grupo de poetas da Sociedade dos Poetas Vivos e Afins do Rio Grande do Norte foi fazer uma visita à Dona Militana. Segundo a poeta Cíntia Gushiken, Dona Militana foi abandonada por muita gente. Pelas nossas autoridades e pela prefeitura de São Gonçalo do Amarante. “Por ela ser um patrimônio daquela cidade e morar em nosso Estado, deveriam colocar assistência médica, jurídica e habitacional para ela. Quando chegamos lá, deparamos com uma situação que expressa um total abandono. É uma realidade que impressiona, mas temos que ajudá-la”, disse Gushiken.
Essa é a hora de render homenagens à Dona Militana, enquanto lhe resta um lampejo de saúde e disposição. Artistas, jornalistas, advogados, escritores, médicos, políticos, profissionais liberal, enfim, toda sociedade civil organizada, deve se unir, cobrar das entidades culturais oficiais e não governamentais para que o destino de Dona Militana não seja semelhante ao do mestre de Boi-de-Reis, Manoel Marinheiro.

| Alexandro Gurgel, Jornalista

“O QUE SÃO ROMANCES”
Romances são poemas musicados, cujas raízes mais profundas mergulham na Idade Média (476 – 1453 d.C), particularmente, nos séculos das Cruzadas (1096 – 1270), fase áurea da Cavalaria, em que a bravura dos cavaleiros cristãos deu origem às canções de gesta que traduziam em verso e canto, as aventuras dos Cruzados. Eram longos poemas, com centenas de estrofes, transmitidos oralmente, antes do advento da imprensa e perpetuados fielmente, pela memória popular.
Por volta de 1500, autores europeus tomaram a si a tarefa de sintetizar as canções de gesta (canções que celebravam grandes feitos) medievais, fragmentando-as em pequenos poemas que receberam a denominação de romances.
Romanceiro é, pois, a coleção desses romances que nos foram legados pelos colonizadores portugueses, acrescidos de outros criados aqui mesmo, no Brasil.
Os romances existiram com outras denominações, em diferentes países europeus, mas foi em Portugal e na Espanha que eles ganharam maior projeção.
O Estudo do romanceiro no Brasil compreende duas grandes vertentes: O Romanceiro Ibérico (de Portugal e Espanha) e o Romanceiro Brasileiro.
O Rio Grande do Norte, como os demais Estados nordestinos, é rico, ainda hoje em romances ibéricos e brasileiros.
Dona Militana
Dona Militana Salustino do Nascimento nasceu em Barreiros, município de São Gonçalo do Amarante, RN, no dia 19 de março de 1926 e residia no sítio Oteiro, do mesmo município.
Considerada a Guardiã do Romanceiro Medieval Nordestino, é a mais importante Romanceira do Brasil, já tendo sido condecorada pelo Presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva.
Em setembro de 2005, Dona Militana recebeu do Presidente da República no Palácio do Planalto, em Brasília, a Comenda do Mérito Cultural Brasileiro, pela missão de preservar para o futuro o valioso acervo de Romances, legado de Portugal.

Fonte: Eventos Assessoria – eventosbr@yahoo.com.brFrancisco Alves da Costa Sobrinho

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Saramago e a busca espiritual
Leonardo Boff
José Saramago se considerava ateu, mas de um ateismo muito particular. Entendia o "fator Deus" como vem veiculado pelas religiões e pelas Igrejas como forma de alienação das pessoas acerca dos graves problemas da humanidade. Seu ateismo era ético, negava aquele "Deus" que não produzia vida e não anunciava a libertação dos oprimidos.
Essa compreensão pude discuti-la pessoalmente num memorável encontro na noite do dia 5 de dezembro de 2001 em Estocolmo no Suécia. Ele viera à cidade para um encontro-celebração de todos os portadores do prêmio Nobel. Eu lá estava pois fora indicado para o prêmio "The Right Livelihood Award", chamado de Nobel Alternativo da Paz. Nesta ocasião convidou a mim e à minha companheira Márcia para um jantar. Foi um festim de espiritualidade mais do que de literatura. Levei-lhe um livro de contos indígenas "O Casamento do Céu com a Terra" e para a sua esposa Pilar um outro, "Espiritualidade: caminho de realização". Ele logo foi dizendo: "quero o livro de espiritualidade, pois pretendo me aprofundar neste tema". E foi então que falamos longamente sobre religião, Deus e espiritualidade. Negava a religião, mas não a espiritualidade como sentimento do mistério do mundo, da profundidade humana e do amor aos oprimidos. Mostrou sua admiração pela Teologia da Libertação por fazer do "fator Deus" uma força de superação da miséria humana. A comunhão foi tão profunda que fomos madrugada adentro, já em seu quarto de hotel, como se fôssemos velhos amigos. Márcia estava lendo o seu “Ensaio sobre a cegueira”no qual lhe fez comovente dedicatória.
O e-mail abaixo revela a experiência espiritual que juntos vivenciamos:
"Querido Leonardo, querida Márcia,
Para nós, o grande acontecimento em Estocolmo foi ter-vos conhecido. Não exageramos. O resto foi a pompa e a circunstância do costume, em que até mesmo o que é sincero e autêntico acaba por se perder no meio dos formalismos e dos artifícios. O tempo que estivemos juntos foi um banho para o espírito. Quem dera que em breve surja outra ocasião.
Os anos são todos terríveis para aqueles para quem a vida é terrível. Às vezes as coisas correm melhor no mundo e isso leva-nos a pensar que estamos em paz, mas o mesmo não poderiam dizer os milhões de seres humanos cujas opiniões contam tão pouco que praticamente não se dá por elas. E se de alguma maneira chegam a manifestar-se, os modos de as silenciar, não faltam. O vosso trabalho cria e reforça consciências livres ou em processo de libertação, precisamente o que anda a faltar no mundo. Não sois pessoas para ceder ao cansaço, e essa é uma característica dos que são imprescindíveis.
Desejamo-vos o melhor, sabendo que o melhor para vós é que possa melhorar a vida àqueles a quem haveis consagrado a vossa.
Com todo o carinho
Pilar e José
Natal de 2001".
Ganhamos um amigo e a fé me diz que agora mergulhou naquele Mistério de amor que sempre buscou.



(colaboração de Maria Rizolete Fernandes, da UBE/RN)

DE COMO BARTOLA, O ANJO-TROVADOR, FOI MESTRE DE OBRAS DE NOSSA SENHORA nh(MEMORIAL DOS FUNDAMENTOS DA CRIAÇÃO DA FREGUESIA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO DO RIO DOS HOMENS)


“E eu, que ando só, me reencontro
na sombra de cada coisa perdida.”
Sanderson Negreiros


Bartolomeu Correia de Melo, cearamirinense naturalizado, tem-se distinguido como das melhores expressões da literatura norte-rio-grandense e, sem sombra de dúvida, o mais original contista dessas e doutras terras do nordeste e dos Brasil. É dono de uma linguagem bem tecida porque de boa urdidura, emprestada da língua do povo de sua terra. Não há como confundi-lo, nem como desentranhá-lo do fabulário e do imaginário popular – melhor dizendo, da massa de sangue e das raízes telúricas de sua gente e de sua terra. O modo como reencontrei o menino do meu convívio, o adolescente apenas riscado a giz na memória, nessa imerecida
velhice precoce, só pode ser explicado através do fantástico e do mágico. E é isso que faço, numa homenagem ao meu amigo de memórias conterrâneas e de afinidades, e ao nosso terreiro, pedindo licença aos leitores para fugir do trivial, e o perdão a Nossa Senhora pela heresia. A benção, meu padim Padre Cícero Romão Batista e o nihil obstat do meu amigo Padre Rui Miranda.

A EXPLICAÇÃO
Não creio nos acasos. Sustento a tese de que se aceitássemos como manifestações autenticamente espontâneas as interferências na nossa vida, sem o concurso da nossa vontade, estaríamos admitindo que o livre arbítrio franqueado pelo Criador apenas ao ser humano, se estendesse à própria natureza e se vulgarizasse. O mundo seria, então, fruto de gerações espontâneas e Deus, apenas um espectador silencioso e impotente. Ou omisso.
Nada tão falso. Deus é onipotente e nenhuma ramada é colorida, nem uma só folha se move, sem a sua aquiescência. Acredito, sem tentar fazer proselitismo religioso, mas apenas declarando a minha convicção, que Deus tem planos para cada um de nós. Sou de crença espírita cristã e acredito na reencarnação e nos seus desdobramentos.
Eis porque acolhi Bartolomeu Correia de Melo, a quem trato carinhosa e propositadamente de Don Bartolo, qual um personagem de ópera transversal a Don Giovanni, como meu irmão. Teríamos sido assim em alguma dobra do tempo. Senão, como explicar o fato de que o vi tão poucas vezes na adolescência e só voltasse a vê-lo na nossa precoce velhice, e ainda assim se estabelecesse entre nós tanta afinidade, tanta memória comum, tanta substanciação existencial?
Por isso, confirma-se a minha tese e aqui declaro, sem pompa nem circunstância, mas de peito aberto e lavado e espírito enxaguado, a geminação da nossa alma.

AS REVELAÇÕES

Segundo informações da dupla de saltimbancos Cherubino e Zambetta, iniciados nas adivinhatórias e esoterismos, Don Bartolo teria sido um anjo trovador, desses que andam sempre com uma lira à mão e versejam à toa, tanta fartura de imaginação e riqueza vocabular rimosa.
Por isso, o Divino sempre foi muito tolerante com ele, permitindo que fizesse a sua graduação com os pássaros e os bardos do naipe de Camões, Zé Limeira, Carlos Pena Filho e, principalmente, com “Rebequinha”, o poeta nativo das terras ainda virgens do que viria a ser Ceará-Mirim, de dia contemplador de paisagens e tocador de burro no bota-água nas casas , de noite, repentista e tocador de rebeca – daí o nome.
Foi a sua danação. Tinha dia de se perder, doido de tanto trinado bonito, tanta poesia e tanta música, quando, então, cutucado pelos saltimbancos, procurava parelha com Juvenal Antunes e Jorge Fernandes, ganhando os partidos de cana e os tabuleiros cheios de cajus, para encher os olhos dos mais verdes e mais vermelhos, amarelos e azuis que já tinha visto. Era a cura de sua ressaca, pelo método homeopático: quanto mais beleza, mais depressa a cura da tontice pela beleza vertiginosa.
Um dia, com os ouvidos prenhes de tanta reclamação beata o Todo-Poderoso cansou da contagiante humanidade do seu anjo e o desterrou definitivamente no nosso planeta, também louvado no similia similibus curandi.
Desterro? Parece brincadeira, não é? Melhor seria dizer premiação, se era só o que o anjo enviesado queria.
Se não foi premiar, a intenção do Senhor ficou bem juntinho disso. A dupla apelidada por Bartola como Quero-mais e Cambeta, confirmou que o Todo Poderoso concordava em soltá-lo na buraqueira, digo, no alagadiço do vale porque tinha planos para ele, só que essa verdadeira missão não podia ser revelada, senão iriam comentar que era caso de preferência, privilégio, proteção – sabe como é a língua do povo, que dirá dos anjos, meões de defeitos e meeiros de santidade.
Mas teve um “porém”: ficaria confinado, até nova ordem, no campanário de uma igreja apenas idealizada, mas já de concretude visível na imaginação mística dos entes divinos, dedicada a Nossa Senhora da Conceição. Deu-lhe a penitência de tanger no imaginário os sinos nos finados, nos júbilos e nas procissões, espantar e limpar os morcegos e suas titicas, sossegar algumas almas desgarradas e alimentar os passarinhos mais afoitos.
De vantagem, contar estrelas, pastorar a lua, adivinhar as esculturas feitas pelo vento nas nuvens gordinhas e brancas que brincavam no céu, catar os cavacos de noite na barra o dia e beber o vinho rosé dos ocasos para celebrar a noite renovada, quando todos os gatos são pretos.
Foi quando Nossa Senhora da Conceição, surpresa e prazerosa por encontrá-lo nesse ofício, o convocou para uma missão muito importante: colorir o lugar de que era madrinha, dar-lhe o jeito, um aroma, traçar o perfil das ruas e a geografia do município, e, finalmente, o caráter dos seus habitantes. O anjo, entre afoito e cauteloso, ainda perguntou se a Divina Pastora tinha alguma preferência ou proibição. Tanta era a confiança da Madona que não lhe impôs nenhuma regra nem lhe fez nenhuma advertência. Disse apenas que queria algo especial, digno do seu amadrinhamento.
Era dar corda ao jumento, soltar a corrente do cachorro, abrir a gaiola ao pássaro, semear na terra uberosa de húmus e de água. Dar de beber e de comer a quem tem sede e fome.
O anjo soltou-se. Ficou que nem um beija flor ou um zig-zag, flanando algum tempo ao redor do fantasioso campanário, como se buscasse o néctar da inspiração, naquele dilema do burrinho da estória de Apuleio, que teria morrido de fome e sede, rodeado de bacias de água e de milho, por não saber por onde começar.
Depois, cravou o “seja o que Deus quiser” e decidiu iniciar o trabalho.

A CRIAÇÃO

Pintou de um verde luxuriante o vale lá-embaixo, chegando até a embriaguez e a um embaralho nos olhos, espantado com tanta beleza. Nem acreditou no que tinha feito.
Coloriu o céu de algo mui levemente fletido num verde muito esmaecido colhido do canavial e de todos os tons de azul que inventaram e pudessem ser – só assim conseguiu a cor do manto de Nossa Senhora, a homenagem que lhe fez. Depois de se embriagar de tanto azul no azul do céu, e mais azul não havia, ouviu Carlos Pena Filho:
Então pintei de azul os meus sapatos por não poder de azul pintar as ruas depois vesti meus gestos insensatos e colori as minhas mãos e as tuas
Para extinguir de nós o azul ausente e aprisionar o azul nas coisas gratas Enfim, nós derramamos simplesmente azul sobre os vestidos e as gravatas
Pôs o verde sobre o azulado, puxado mais para o verde cana, nas águas dos rios e dos mares que beijam a terra da imaculada conceição.
Da alquimia fez e agrimensurou os solos mais variados - da piçarra da Jacoca e o arisco do Gravatá ao alagadiço do vale. Fez dois balneários de águas tão límpidas e transparentes que ele próprio não resistiu e se banhou e os denominou de Diamante e Jericó, este último, à lembrança da cidade bíblica das palmeiras, berço da redenção de Israel. Secou uma porção de terra alagada que rodeava uma coroa no meio da mata fechada e deu-lhe o sugestivo nome de Ilha Bela.
Deu a Jacoca o abacaxi mais doce; a farinha de mandioca de alvura e finura incomparáveis a Ponta do Mato; a laranja mais doce e sumosa a Comum e Primavera; o beiju e o grude mais gostosos a Aningas; a goma de mandioca e a tapioca mais caprichosas a Coqueiros; a Mineiro, deu o picado receitado por Geraldo Abdias; ensinou a Cicinha, a arte da feitura da cocada preta e da branca, preparada com o coco tirado do futuro sitio de Manoel Pereira, na divisa de Muriú com Maxaranguape.
Plantou umas canas de valia, a partir de “soca” divina, dando matéria prima para adoçar a boca dos nativos, mesmo os mais amargosos pela dura vida do eito – mel de furo e refinado, rapadura, açúcar mascavo (impropriamente dito “bruto”) e açúcar branco; cachaça (que ninguém é de ferro) e álcool.
Semeou umas frutinhas doce-azedinhas no tabuleiro dos ariscos praieiros e adjacentes, tais que chamou de camboim, guajiru e massaranduba. Fincou uns troncos de árvores rugosas que nem os rostos de velhos muito mais velhos e as chamou de mangaba. Fincou paus mais ou menos linheiros, de copas ramosas e os considerou cajueiros. E se divertiu queimando as “catotas” nos lajedos para fustigar os calangos, as cobras e a própria pele.
Compôs o mais lindo amanhecer, no meio do oceano vegetal do vale, e o mais belo e nostálgico por do sol, por trás das ondulações do morro do Patu.
Era forte a influência mediterrânea do mestre de obras da Virgem e ele resolveu fundar a cidade nas encostas de uma pequena serra, à falta de falésias. E também, para dar um quê de ascencionalidade ao plano diretor da sua arquitetura. Nada que se assemelhasse a segregação ou divisão de castas, a partir de maior ou menor altura, mas uma insinuação, uma metáfora que sugerisse o plano evolutivo do ser humano, sempre para o alto, na direção de Deus.
Mas, para evitar dúvidas e insinuações, arrumou uma compensação. Se o lá-em-cima fosse, de fato, a ascensão, o lá-embaixo era a sua inspiração. Não há recompensa maior para a subida, que olhar o vale verde se espreguiçando todo lindo e verdoso na aba da colina.
Deu margem ao “lá-em-cima” e o “lá-embaixo”, simplificando a topografia e a geografia da cidade. Na compreensão dos habitantes, que sempre se referiam ao lá-em-cima como uma peregrinação penosa e cansativa, vencer a subida era um prêmio, pela visão que oferecia ao peregrino, o lá-embaixo. E assim a metáfora era assimilada. Para se chegar ao céu, era preciso muito esforço e muito sacrifício, mas valia a pena.
Da parte urbana, só cuidou para que quando a cidade sucedesse à briosa vila em que a freguesia se tornaria, plantassem pés de fícus benjamim nuns canteiros no meio da rua. Sombra e facilidade para as idas e vindas. E também para a alegria da meninada, que se enfeitiçaria com o som das modinhas assopradas por seu Alegria, dono do Circo Alegria, na dobradiça das folhas do fícus
Deu-se então que num domingo em que estava embriagado com a sua própria criação, decidiu se superar. Deixou-se levar pela onipotência megalômana, voou em linha quase reta até um ponto do oceano em território do município e convocou aquele que viria a ser Dorian Gray, mestre desenhista e colorista das azuis e verdes cartografias, para sugerir-lhe a paisagística do litoral da freguesia.
Areias alvas, coqueiros, muitos coqueiros, lagoas, mar tépido e calmo – sugeriu o pintor. E uns parrachos de contraponto, anteparo de predadores e de marés bravias. Até mesmo uns salpicos de sargaço. Então, usando a sua paleta criou uma cor especial para o mar: nem azul nem verde, sem deixar de ser azul, nem deixar de ser verde - uma cor especial, particular apenas àquela parte do oceano.
Bartola não conseguiu distinguir a cor dada pelo grande artista de outras que conhecia. Na sua percepção aquele colorido era comum, encontradiço em outras praias do litoral nordeste do continente brasileiro.
O pintor ofendeu-se e foi direto ao ponto – o anjo, apesar de criatura angelical, não tinha a retina, nem a íris do artista plástico, era uma espécie daltônica, porque havia consumido a sua percepção visual na embriaguez contemplativa da sua própria criação. Nesse ponto tornou-se grave e contundente – não usava a alma como guia. Até concedia que ele “sentia” com a alma, pois era poeta e imaginoso. Mas não via através desse filtro.
O artista, que “via” com a alma, lembrou Van Gogh quando disse que tudo estava na natureza, o artista apenas emprestava a sua alma. Ainda assegurou ao anjo que no futuro, os que amassem aquele mar, aquela nesga de céu, da praia, do sol luxuriantemente, delirantemente amarelo, iriam perceber essa diferença. A perspectiva do tempo das memórias faria a diferença.
Sem se dar por convencido, o fundador da cidade concedeu, no entanto, o benefício da dúvida, pelas credenciais do pintor. Despediram-se sem atritos.
No dia seguinte, avaliou a criação. Ainda insatisfeito, mas no geral pacificado, pensou no passo seguinte.
Se não poderia criar o ser humano, já concebido por Deus, o recriaria. De resto, todas as coisas já tinham sido criadas, ele apenas as escolheu, dando o jeito pedido por Nossa Senhora.
Mas havia algo que ele podia esbanjar-se na invenção. O perfil dos habitantes daquela cidade.
À “sua” matriz humana deu de beber água do Diamante e Jericó e a batizou com a água salobra do Olheiro, juntando água e sal na mesma cerimônia. Mimou-a com garapa, água de coco, suco de manga e de caju. Deu-lhe de pouca a média estatura, tez variando do negro ao branco, passando pelo mameluco e o mulato. Pernas firmes de bom andador de subidas e descidas, alavanca para os atoleiros dos alagadiços, boas para o ofício recadeiro e aviador e sustentação para o dia inteiro no corte de cana.
Alma leve, de passarinho cantador e madrugador. Formiga e cigarra. De missa e canjerê. Esperançoso. Todo dono da chã da alegria, mas sem exageros pois a sua natureza era meio reservosa.
Deu-lhe um chapéu de palha meio sobre o atrevido, um pito feito de imburana, um banho de rio com direito a cangapé, uma rede na varanda, comida no bucho e saúde que dê pro gasto - taí um ser humano feliz! Melhora se tiver um passarinho cativo, uma criaçãozinha no quintal, um burrinho de carga e um galo madrugador. ´Magine se tiver um roçado numa terrinha pouca cedida pelo patrão – vixe Maria!
Fez barateado, quase a preço de liquidação, o ser que vai habitar essa terra. E de pouquinhos teréns. Muitos são os seus sonhares, que ficam guardadinhos debaixo da moleira, e somente o tempo pra se interter entre uma e outra baforada do cachimbo, no terreiro, depois da janta.
Deu-lhes uns olhos de ver o vale, o céu azul de dia e o cobertor negro bordado de estrelas à noite, para agasalhá-lo na falta de fé, na frieza do desanimoso. Vez em quando deixou que pintasse uma lua muito soberba, pra alumiar os namoros, as serestas e as prosas; o rio d´água azul, a praia de Muriú. Uma que outra dança, coisa pouca, mas mui alegre, animada pelo baticum dos atabaques e a cadência dos pés no chão.
Á noite, os corpos nus se esfregando em cima das esteiras de palha, no chão de barro batido, suor com suor, dois num só, cavaleiro e montaria, promessa de cria que o leito da miséria é fecundo.
Os ouvidos de escutar o apito do trem, a tirada da Asa Branca na buzina de Chico Horácio, o saxofone de Zé Gago, o violão de Misael, os sinos “...com timbre de enxada velha que se põe a dizer o amém das ave-marias”, o badalar do relógio do campanário, os pregões dos vendedores ambulantes, as arengas dos botadores d´água com os “roxinhos”, o latido e o miado dos animais sem dono ou vigias das casas e as vozes das beatas nas procissões.
Zé Lemos que restauraria com o pai, seu Justo, as estampas sacras do teto da igreja matriz, cantaria com voz Vicentina Celestiniana, a canção “Porta Aberta”. E Minhém pensaria que era “cover” de Bob Nelson: “Eu pego meu cavalo e jogo o laço...”, os olhos de chinês com terçol, o bigode maior que o de Bienvenido Granda, uma tragédia de desafinos e de troca-letras.
As ventas sempre acesas para o cheiro da bagaceira e do mel; o aroma acre provocado pela umidade da chuva engravidando a terra, em pleno parto das ervas e das flores baldias; a água de cheiro escapulida da carapinha das beiradeiras; o cheiro profuso e confuso do “quadro” do mercado e do pátio da feira – uma mistura de tudo, até de mijo e cocô de gente e de animais.
O visgo açucarado no céu da boca dos cortadores de cana, cambiteiros e operários dos engenhos, o colorau da galinha caipira, o leite de coco e o propriamente dito ralado, presente nas mesas de café, almoço e jantar, o gosto do pãozinho quente, saído da fornalha da padaria de João Neto, a manteiga derretida espirrando nos cantos da boca e nos dedos, as piabas fritas com farinha na banha de porco, o torresmo chiando na panela.
É nesse ponto que me vem Bartolomeu e se lembra da fala, do modo como essa criatura vai-se comunicar uns com os outros. E quer mais, que ela fale até em pensamento, dela pra ela mesmo, e como fosse telepatia, com os pareceiros.
Descartou a fala dos doutores, dos padres e dos políticos – até mesmo dos escritores, que mais fosse a que é aprendida nas escolas. Queria um falar deles, inventado na precisão e na distração. Uma que fosse usada nas conversas e nos escritos, uma coisa só, sem o atrapalho de dois modos diferentes de se comunicar na nossa linguagem brasileira. Que besteira: falar de um jeito e escrever de outro. Quem já viu presepada igual?
Apurou as oiças e consultou o vento, os animais, as aves, os barulhos das feiras, dos partidos de cana, dos engenhos, dos canjerês, dos rios, do mar, o falatório dos meninos e dos velhos, a língua afiada da raiva e do despeito e a melosidade dos ditos de amor. Cascavilhou as frases cuspidas e mal empregadas, os chorares e os sorrisos, os mandos, os desmandos, os suspiros e as cavilações. Tornou-se o pé-de-ouvido cativo de cada um dos nativos.
Deu no que deu.

OS LIVROS DAS DECIFRAÇÕES

Botou tudo que ouviu em dois livros que dedicou à cidade: “Lugar de Estórias” e “Tempo de Estórias”(*). Como um breviário completo, ou um almanaque, dá conta de tudim´ - dos ofícios, bem quereres, malquerenças, febres suspirosas, mal assombros, amores queridos e rejeitados...causos que se não forem acontecidos, bem que poderiam.
Uma espécie de Cábala, de livrinho de cordel em prosa, de Roteiro Místico da cidade, de desnudamento da alma dos seus habitantes, uma declaração de amor à sua própria obra profana, todavia, reconhecida por Nossa Senhora, que deu mostras de ter-se encantado com toda a recriação e com as invencionices do seu mestre de obras.
O que tem de humano nas criaturas de Deus está lá, devidamente registrado e tombado. Sacramentado. Só não está lá o que não interessa e não recomenda um criador de boa fé e honestas intenções. Se não há barões, nem baronetes, nem senhores de barato e cutelo e os seus escravos, é porque o autor resolveu passar flanela com vinagre nesse azinhavrado e borracha nos mal amanhados.
O que está lá é o povo de Deus, na média possível, na medida do possível. Está lá, a infância perdida no passado, sobrevivente no presente e resgatável no futuro. O imutável sentimento de amor às raízes sentimentais e ancestrais.
Está lá, também, o socorro ao náufrago, coitado sem identidade, perdido no oceano da globalização, macaqueando os outros sem saber porquê, ou sabendo, mas envergonhado de ser o que é. O farol que alumia o caminho para o porto seguro (Ninguém se perde no caminho da volta). A razão de sermos o que somos e porque somos. O orgulho de sermos únicos, individualidades distintas, a partir da nossa origem, hábitos, língua, caráter.
Um amigo observador da cena humana, disse certa vez que há uma ciência que ninguém nos supera em conhecimento e vivência: a nossa terra. A aldeia que nos pariu e nos projetou para o mundo. Desde que tenhamos dividido com ela a nossa própria vida, que pelo menos um pedacinho de nós haja-se incorporado à história e ao cenário da nossa vivência: naquela rua, naquela árvore, naquela igreja, naquele colégio, sob aquele céu, no fundo da paisagem, num causo perdido, há uma marca indelével da nossa passagem que podemos testemunhar com as nossas estórias.
Nesse espaço somos protagonistas, não apenas testemunhas ou circunstanciados dos fados. Fizemos, nós mesmos, a nossa própria história, mesmo que tenha sido uma “ponta” do enredo, que tenhamos sido coadjuvantes, nossa marca está lá, num talho de canivete, numa velha foto encardida, no livro de batismo, no registro do cartório, na tradição oral. Na sementeira dos filhos e netos. Na memória dos mais velhos e mais acreditados. Na retina sempre-verde dos companheiros da infância.
No inconsciente coletivo, que guardou o vagido da criança, o arrastado dos primeiros passos, os primeiros aprendizados, os primeiros gemidos do amor. E muito depois, o difícil, mas prazeroso retorno aos primeiros momentos, só reencontrados no lugar de origem. O caminho da volta.
Bartola, como ficou conhecido o anjo-trovador, poeta e cantador, na vulgarização sem cerimônia dos cearamirinenses, que apelidariam até o Papa, é uma instituição da cidade. Talvez o seu mais importante habitante, porque a recriou. Não que tenha pedido por isso, porque o enfada a notoriedade, prefere a alforria das obrigações que o conserva irreverente e maroto. Um sonso, isso sim! Daquela sonsice de quem foi predestinado à liberdade, e é forçado à prisão na saia avoenga.
E também, porque guardou a sua ciência até os mais de cinqüenta anos de idade, para só então torná-la pública, sovinando aos seus amigos, aos conterrâneos e no geral aos que tem sede e fome de saber, a chave para decifrar conhecimento tão hermético e ao mesmo tempo tão singelo.
Mas resistir quem há de. O que esperava o criador de uma freguesia, mestre de obras de Nossa Senhora da Conceição, autor de uma obra comparável à Pedra de Roseta, decifradora da cultura singular de uma cidade, que, sendo igual a tantas outras, não é igual a nenhuma delas.
Rejeito as generalizações. Todas são simplificadoras e embusteiras, porque têm sempre um propósito de apoucamento ou de igualação, ou cortam o que lhes sobra em tamanho ou nivelam por baixo, no mesmo tope, mesmo que maiores.
Como querer estabelecer um parâmetro entre Bartola e o Rosa das Gerais. Não há como compará-los ou medir a importância segundo este ou aquele referencial. Em favor de Rosa, a criação. Em benefício de Bartola, a apropriação do dialeto popular e a sua conversão em linguagem corrente literária, às vezes decodificadora da emoção, do caráter, da cultura.
De fato, a partir do molde originalíssimo, criou-se a verdadeira escola literária do Ceará-Mirim.
Porque é isso o que o anjo-trovador faz: transporta-se, pela linguagem comum, ao seres humanos desfavorecidos de teres e haveres, mas ricos em aventura, alegria e esperança. Sonham. E por isso revivem, tranfiguram-se, transmutam-se, renascem meninos. Beiradeiros.
Viva Bartola!
Que viva sempre em nós, a nossa aldeia, que é o nosso mundo, a nossa referência e a nossa fiança, a teta-mãe que nos aleitou, qual Rômulo e Remo, pelos úberes dos guaxinins do canavial.

(*) Edições Bagaço, 2003 e 2009, respectivamente.


Pedro Simões – Professor de direito aposentado. Escritor e Advogado.

terça-feira, 22 de junho de 2010

AS CAUDAS DA DEMOCRACIA
Carlos Roberto de Miranda Gomes – Professor e Advogado

Dizem os enciclopedistas que DEMOCRACIA, no sentido que lhe confere a sociologia política, é o regime político, ou forma de governo, em que a soberania reside no povo que, por sua maioria, mas sempre indiretamente, representado por uma elite reduzida de seus delegados, exerce o poder, sob o princípio da absoluta igualdade de direitos entre os cidadãos.
Numa linguagem mais popular, diz-se do governo do povo, pelo povo e para o povo.
Em curta distância, os renomados tratadistas, a teor de Norberto Bobbio, definem DEMAGOGIA como o que, não sendo propriamente uma forma de governo e não constituindo regime político, constitui uma praxe política que se apóia na base das massas, secundando e estimulando suas aspirações irracionais e elementares, desviando-a da sua real e consciente participação ativa na vida política.
Do comparativo das suas concepções, tiramos ilações de que a Democracia, da forma como exercida nos dias presentes e, pelo menos no Brasil, possui caudas ou prolongamentos num local um tanto distante do órgão encarregado do raciocínio.
A vontade do povo não vem sendo respeitada no momento em que fica obrigado a engolir uma propaganda partidária extemporânea na realidade, embora legal pela edição de regras positivas saídas do interesse das elites governantes com o beneplácito dos outros Poderes que deveriam zelar pelo bem do povo.
As mentiras ou as proposições ofertadas nas peças promocionais irritam, nivelando por baixo todos os demagogos governistas ou de oposição, que aparecem para dizer o que não fizeram e oferecendo novas ilusões para conseguir o voto popular.
Este espaço no rádio e televisão poderia ser bem melhor aproveitado, o que não acontece, nunca, para adotar uma palavra grosseira e desanimadora.
Outra cauda é a que decorre de que por ser Democracia, cabe tolerar tudo, venha de onde vier, até mesmo das promoções de Seminários Eleitorais trazendo como estrela um conhecido indiciado em improbidade em dimensão nacional, sendo possível perceber o que ele deverá ter ensinado no acumulado de sua vida aventureira; outra quando qualquer jornal fica obrigado, em nome da Democracia, de publicar opiniões de qualquer ‘simplório’ como aconteceu com o nosso DN de 20 de junho passado, onde um tal de Carlos P.C. Ferrão (deve ser nome de fantasia, próprio de quem não tem transparência para tratar seriamente as questões da cidade), oferece um artigo digno de ganhar o prêmio do ‘besteirol’ cujo título é “Adeus Machadão”, no qual ofende a dignidade dos arquitetos (saudosos segundo ele), conclama a parar com a demagogia, critica um estádio velho, desconfortável e mal feito, concluindo com uma exclamação: “Já vai tarde Machadão”.
Aliás, esse pensar destorcido não é diferente de pessoas intelectualizadas, como assisti em uma livraria, onde na minha presença foi afirmado que o Machadão foi construído sem resguardar nenhuma dimensão ou regramento oficial, sendo obsoleto e fora da medida.
Para quem vive há 70 anos numa cidade que possui menos de 50% de saneamento básico; as vias urbanas congestionadas; ausência de estacionamentos reclamados; hospitais sem médicos, sem leitos e sem medicamentos; escolas funcionamento precariamente em seu aspecto físico e com professores em número inferior à demanda; estabelecimentos prisionais que são meros depósitos, impossíveis de incrementarem a ressocialização do preso; uma segurança completamente sem corresponder às necessidades da cidade; um aeroporto internacional emperrado, tanto quanto a famosa história de ampliação do Porto de Natal, que ouvi contar desde a minha infância. Enfim, nos faltam as estruturas básicas, fundamentais, elementares para melhorar a qualidade de vida do povo e se trabalha para demolir o que já existe, quando melhor seria uma nova construção e em local mais apropriado.
A esse custo social, devemos renunciar ao prazer de sediar alguns jogos, carreando os recursos para obras estruturantes e, por isso ousamos aproveitar a exclamação do articulista comentado: “Já vai tarde Copa de 2014!”.