terça-feira, 11 de maio de 2021
O silêncio de Deus
Padre João Medeiros Filho
Diante da pandemia atual, há os que questionam: “Onde está Deus?” Na década de 1940, teólogos do pós-guerra interrogaram: “Como falar de Deus para quem vivenciou a tragédia de Hiroshima e Nagasaki?” Visitando Auschwitz, Bento XVI exclamou: “Onde estavas, ó Deus, que silenciaste?” A complexa situação vivida pela humanidade implica na revisão de nossas concepções espirituais, sociopolíticas, econômicas e culturais. As religiões não podem se eximir de responder a este questionamento. A cultura judaico-cristã, em especial, é instada a refletir sobre o aparente silêncio do Eterno diante do sofrimento humano. Não raro, empurramos os nossos deveres e responsabilidades para o Onipotente. Primeiramente, é importante superar narrativas que consideram a pandemia como castigo divino. Isso não é bíblico, tampouco teológico. É o desejo do homem projetado sobre Deus. Uma divindade cruel e vingativa só pode ser pensada por quem não conhece a misericórdia do Evangelho. É preciso rever a postura da exigência de milagres, tornando o Criador um “quebra-galho” de nossos erros, omissões e irresponsabilidades. É indispensável rezar para que não sejamos atingidos pelos males. E cruzar os braços é negar pertencer à humanidade redimida por Cristo.
Deus criou o mundo, concedendo-lhe autonomia. A presença do Mal no universo e nas decisões individuais ou sociais pode parecer “cochilos celestiais”. Entretanto, o denominado silêncio de Deus não é apatia nem abandono. Seguir Jesus não isenta o cristão da cruz. “O discípulo não é maior do que o Mestre.” (Lc 6, 40). Para quem tem fé, a última palavra da história humana não é a morte. Esta não é o fim. É preciso se conscientizar de que o Pai Celeste é compassivo com seus filhos. Foi solidário com nossa dor e miséria, enviando Cristo para nos libertar. Ele é discreto. Age por meio daqueles que colaboram verdadeiramente para superar as crises, sem fazer delas álibi para interesses menores. O Altíssimo está presente nos que se arriscam para salvar a vida dos irmãos. É atuante na solidariedade revigorada e nos que reativam a esperança, orando. No fim de toda essa provação, a humanidade deverá reconsiderar seus conceitos e posturas. A finitude e a impotência fazem-nos compreender que ninguém nasceu para sofrer. Porém, a dor nos faz evoluir.
Deus não nos abandona. Torna-se silente para despertar nos seres humanos gestos de fraternidade. Utiliza nossos lábios para proclamar a ternura; nossas mãos para repartir o Bem e nossos corações para demonstrar amor e gratidão. Fala-se Dele como se não estivesse também dentro de cada um. Imagina-se um Ser totalmente abstrato, distante, alheio a tudo, ao redor de nós. Até para nos salvar quis contar com um ser humano: Jesus, o Verbo encarnado. Para libertar seus filhos do Mal, das doenças e ameaças não prescinde de nós. Porém, não assumimos nossos compromissos e buscamos culpados. Não fazemos a nossa parte e cobramos de Deus, como se fosse o responsável pela nossa negligência. Ele não está ausente nem silencioso. Muitos O afastam da sociedade. Em razão disso, não se vê no próximo um irmão. Na política, é tratado como inimigo. Na economia, concorrente. Na religião, incrédulo. Na vida pública, mero contribuinte. A mensagem do Evangelho ainda não penetrou na consciência dos homens. Repele-se Deus do mundo pelo egoísmo, pela injustiça e insensibilidade. Ainda não aprendemos o ensinamento do Mestre: “Que vos ameis uns aos outros.” (Jo 13, 34).
A política usa frequentemente o escudo do bem comum para esconder outros interesses. A economia é despida de sensibilidade. Alicerça-se no lucro. Por vezes, a religião é proselitista, forma sutil de dominação. Urge que os cristãos reflitam mais sobre a Eucaristia: único sinal de fraternidade solidária. A comunhão que recebe o Papa é a mesma do simples fiel. O Pão repartido com os puros é idêntico ao destinado aos pecadores. Eis a grande metáfora da unidade e igualdade humana, legada por Cristo. Mas, o mundo ainda não compreendeu este verdadeiro exemplo de democracia! “Muitos cristãos recebem o Jesus da hóstia consagrada, mas não comungam o Cristo do Evangelho”, repetia Santa Dulce dos Pobres!
O cuidado com a língua e a linguagem
Padre João Medeiros Filho
A sabedoria popular transmitida por nossos antepassados é rica em axiomas e aforismos, dentre eles: “Palavras ditas nem Deus as tira.” Muitos leram o Pequeno Príncipe, de Exupéry, no qual está escrito: “a linguagem é uma fonte de mal entendidos.” Percebe-se que a humanidade está cansada de tantos desacertos e vem apresentando repulsa aos radicalismos, inverdades e injustiças sociais. Necessita aprender a usar melhor a língua (não apenas o idioma) e a linguagem. Não seria honesto generalizar, pois muitos sabem cuidar daquilo que dizem e da maneira como se expressam. Infelizmente, verifica-se que discórdias, separações e até homicídios advêm de uma comunicação inadequada ou incapacidade de dialogar honestamente. Isto requer saber ouvir e falar com humildade, assim como não desejar ser o centro das atenções e senhor de toda verdade. Vive-se numa sociedade que fomenta um monólogo nocivo, o qual leva forçosamente à imposição, intransigência, empáfia e, não raro, à violência verbal ou física. A conciliação desaparece paulatinamente do cotidiano dos cidadãos.
É gratificante ver pessoas que sabem desenvolver a arte do diálogo edificante. Aprenderam a construir pontes e não muros. As redes sociais “democratizaram” a veiculação das ideias, mas permitem a proliferação de palavras impróprias usadas por incautos, verdadeiras armas deletérias. Vários se acham no direito de opinar sobre tudo e todos, criando ainda mais a cizânia na sociedade. Vale citar o apóstolo Tiago: “Se alguém julga ser religioso, mas não refreia a sua língua, engana-se a si mesmo. Sua religião é vazia.” (Tg 1, 26).
Hoje, basta um termo mal empregado para originar conflitos. “Guarda tua língua do mal e tua boca da mentira”, recomenda o salmista (Sl 34/33, 14). É frequente encontrar os que agem com desonestidade intelectual. As redes sociais e a mídia têm se constituído em escolas de sofistas, onde se propagam meias verdades ou mentiras. Volta-se à Grécia de Protásio de Abdera e Górgias de Leontinos. Os sofismas dominam atualmente discursos, narrativas, decretos, sentenças etc. Quando uma autoridade profere palavras sem o bom senso e a preocupação de construir a cultura da harmonia, o dano é grande e, por vezes, irreversível. “A prática do sofisma engendra sempre insatisfação e controvérsias, acarretando consequências imprevisíveis”, afirmava Tristão de Athayde.
Esse mal-estar existente nos campos religioso, social, econômico e político é percebido igualmente nos lares. Muitas tensões e contendas familiares seriam resolvidas, a partir de um diálogo sincero e respeitoso, no qual ninguém se arvore em dono da verdade. A harmonia reina, quando há o desejo de compreender melhor os problemas, tendo em vista a restauração da paz no seio da família. Passou-se da sociedade propositiva para a impositiva, caminho da ditadura. Quando alguém se acha possuidor de todas as certezas, quebra a possibilidade de diálogo. Isso gera o esgarçamento nas relações e pode chegar a uma convivência insuportável. A partir daí, infelizmente, a agressão viraliza e há quem pense ser esta a solução. “Quando cessa a força do direito, começa o direito da força”. Esta postura é bem atual.
Há momentos em que certas denominações religiosas não têm se revelado isentas do mau uso da linguagem. Quando alguns de seus líderes acham que podem dizer o que pensam – esquecendo sua missão precípua de promotores da paz e unidade – suscitam um clima de polarização ou hostilidade. Causam divisão entre aqueles que se creem seguidores de Cristo, ícone da união e fraternidade. E isso acontece, não raro, invocando-se o nome de Deus. Como Ele é usado indevidamente! Não basta ter boas intenções e seguir as correntes ideológicas dominantes ou em moda. É preciso cuidado com aquilo que se transmite. Urge crescer na arte do diálogo, saber discernir os fatos e procurar perceber o que destoa da verdade ensinada pelo Mestre. É fundamental construir uma cultura de paz, a partir da misericórdia revelada por Cristo, o Caminho que todos devem percorrer. “Não podemos ser como crianças, levados por todo tipo de doutrina, ludibriados por alguns espertos e por eles com astúcia induzidos ao erro”, advertiu o apóstolo Paulo (Ef 4, 14).
- IVO VIVE A POESIADiogenes da Cunha LimaA poesia é verdadeiramente traduzida quando a linguagematinge o grau de excelência. Ivo Barroso consagra a tese de que sóum grande poeta pode traduzir poesia. Ele traduz a nobrezaintelectual de expressão saxônica e neolatina. Rimbaud, AndréMalraux, Gabriela Mistral, Montale, T. S. Eliot, Shakespeare eHermann Hesse, entre outros, vestem a pele de Ivo.A Inteligência Artificial (I.A.) gera traduções porcomputadores. Nunca será capaz de traduzir emoção. Ainda quetoda tradução seja sistêmica, afeita por I.A. será sempre algoinsosso. A condução humana é imprescindível. Gaston Bachelarddefine: “Deve-se reconhecer que a poesia é um compromisso daalma. Nos poemas manifestam-se forças que não passam peloscírculos de um saber”.O poeta Ivo Barroso é um caçador de palavras. Dispara tiroscerteiros. Acerta a palavra exata. Tem o domínio das línguastrabalhadas, seus detalhes, do mais despercebido significado até àssonoridades especiais. Apesar de ser um clássico, ele pertence àvanguarda artística. E não descura das novas tecnologias, porquesabe que “O Poeta já não escreve. Sua escrita por mais breve eledigita”.Estimulando vocações intelectuais, notadamente detradutores de Natal, Ivo Barroso aplaudiu as traduções de LuizCarlos Guimarães e Nelson Patriota. Convidado a participar daFeira de Livros de Frankfurt, pedi a Nelson que traduzisse o meulivro “Flores que Encantam o Brasil”, inspirado na beleza das
- fotografias de minha filha Leila. Encantou-me o trabalho. Nascerauma nova poética. Por justiça, são três os autores do “CharmingFlowers of Brazil”.Ivo vive, desde os sete anos, a poesia, com versos cheios derios, sois, savanas. Ele continua jovem, mas faz previsão de um céudos velhos: “algodões de nuvens doces ou salgadas que sedesfazem no céu da boca, colchões de nimbus que se amoldam àlembrança do corpo, nádegas de cúmulos alimentando a nostalgiado sexo”.Um literato de fama ironizou-me um dia dizendo que eu davahonra dos altares a esse meu ícone. Notei a tristeza da inveja edesviei a conversa para Dante Alighieri. Na “Divina Comédia” ocastigo dos invejosos era no purgatório, ter as pálpebras costuradascom arame. Certas línguas também devem ser costuradas. Lembroainda São Tomás de Aquino para quem a inveja é a tristeza pelafelicidade dos outros.Ivo Barroso é um homem feliz por dedicar a sua vida ao queama, a ser fiel a si mesmo e a viver a poesia em plenitude.