terça-feira, 3 de janeiro de 2023

ILUSÕES GRATULATÓRIAS

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

De anotações feitas à hora do crepúsculo em livros idos e vividos, pincei uma frase que me remete ao delírio das coisas de querer ter sido e não fui: “Eu que tantos homens fui, não fui aquele em cujos braços desfalecia Matilde Ubach”. Pensamentos fluidos, na verdade, de reencarnações em lugares e tempos, sonhos e fugas do real ou transposições de corpo e espírito para lugares onde nunca naveguei, muito além da ponte de Igapó.

Ter sido, por exemplo, acompanhante do Cristo nas peregrinações e presenciado seus milagres para não me dividir hoje, nos conflitos das igrejas do mundo; gostaria de ter sido expectador do teatro shakespeareano e tê-lo conhecido de perto e acompanhado todos os seus porres nas tabernas escuras da Londres elizabeteana; como amaria a passagem pelos estúdios de cinema dos anos trinta e quarenta só para ver Charles Chaplin, Stan Laurel e Oliver Hardy; ter aspirado o odor dos charutos de Getúlio Vargas, Winston Churchill  e escutado em dó maior as gargalhadas prazenteiras; ou como figurante dos filmes de John Ford, viajado nas diligências do tempo pelas pradarias do oeste; de Juscelino a companhia e as conversas dele com o que havia de melhor no PSD daquela época: Israel Pinheiro, Amaral Peixoto, José Maria Alkmin, Benedito Valadares, Tancredo Neves; ou de um pólo para outro, muito me ufanaria haver morado no Rio de Janeiro só para ouvir os discursos do bruxo Carlos Lacerda e acompanhar as suas ações como governador com “M” maiúsculo do estado da Guanabara. Eu, que tantos homens fui, não fui aquele que conviveu mais tempo com Câmara Cascudo, pois considero privilegiados os que receberam essa oblação; quantas vezes não me vi nos shows dos Beatles, na fila do gargarejo, ou no programa Jovem Guarda de Roberto Carlos das tardes de domingo; e quanto fascínio não exercem sobre mim as cidades interioranas da Paraíba, Pernambuco, Ceará, Minas, Bahia, das moças namoradeiras, das praças, dos olhares furtivos e ofertantes como se eu quisesse, de repente, paquerá-las todas ou me compensar, ao menos, em contemplá-las lindas e infinitas, renascidas de minhas ilusões de adolescente.

Ah! Como esse mundo de hoje dói. Não há mais líderes. A violência urbana e a guerra mataram os sonhos e as ilusões castas dos nossos pensamentos. É um mundo de aparências, de vaidades e iniqüidades. “Olhe, aquele ali é Dinarte Mariz e com ele Aluízio Alves”. Faltou-nos alguém que lembrasse. Naquele tempo, nessa visão dos dois monstros insuperáveis da política potiguar. E se o sonho triunfar sobre a verdade, posso dizer nesse final que assisti padre João Maria sarar os enfermos; preguei com Frei Damião na noite litúrgica e estrelada de Macaíba; que vi subir o balão de Severo e que assisti o último suspiro de Auta de Souza. E se o leitor me acreditar, conheci Lincoln na guerra da Secessão; vi Roosevelt, Getúlio, Tyronne e Evita na Ribeira de guerra. Se todas essas reflexões são febris ou inverossímeis, é preferível crê-las e esquecer as bestas do apocalipse que estão soltas no Brasil, no Oriente e no Ocidente. As imagens da televisão sujam de sangue as nossas ilusões por um mundo de paz.

Essas coisas findas muito mais do que lindas, elas ficarão. “Que ninguém ouse roubar a minha solidão se não for capaz de me fazer real companhia”, disse o filósofo pensador Nietzsche. Não vou parar de forma alguma, pois vejo um amanhecer. Agrada-me a modéstia, a minha pequenez, as minhas provações, as minhas dúvidas e dívidas. Porisso e que escolhi a memória como uma singularidade secreta. As histórias só viverão para sempre se me dispuser contá-las.

 

(*) Escritor.




segunda-feira, 2 de janeiro de 2023

 

Feliz ano
​A literatura brasileira possui dois livros famosos cujos títulos – e ao menos parte dos seus conteúdos – são curiosas “homenagens” à inexorável passagem de um ano a outro. Àquilo que chamamos de Virada do Ano, Ano Novo ou, festivamente, de Réveillon. Convencionalmente, uma das mais relevantes “passagens do tempo”, afinal, queiramos ou não, a marcação do ano civil é importantíssima, do ponto de vista prático, para as nossas vidas. E, ludicamente, um momento em que brindamos, nos confraternizamos e muitas vezes fazemos promessas (sobretudo a nós mesmos) de darmos um giro positivo nas nossas vidas.
Os livros são “Feliz Ano Novo” (1975), de Rubem Fonseca (1925-2020), e “Feliz ano velho” (1982), de Marcelo Rubens Paiva (1959). Curiosamente, entretanto, ambos são livros muito “negativos”, no sentido de mostrar o lado sombrio da vida. Tristes, posso dizer, sobretudo quanto ao segundo, cujo título não faz qualquer questão de isso esconder.
Formado em direito, Rubem Fonseca foi um gigante das nossas letras. Ficcionista multipremiado, ganhou o Jabuti (umas seis vezes), o Prêmio Camões e o Prêmio Machado de Assis da ABL, entre outros. “A Grande Arte” (1983), “Agosto” (1990) e “O seminarista” (2009) são alguns dos seus melhores romances policiais/detetivescos. Sua personagem Mandrake, o advogado detetive, protagoniza várias aventuras. “Feliz Ano Novo” é um livro de contos, cujo título decorre do primeiro deles, uma estória de crime e violência que se passa exatamente numa virada de ano. Crime, violência, sexo, traição, miséria, conflito de classes são alguns dos temas dos vários contos. Best-seller em 1975, foi censurado pela ditadura. Supostamente atentava contra “a moral e os bons costumes”, seja lá o que isso for, sobretudo na arte. A coisa foi parar nos tribunais. A ditatura levou um pé na bunda. O autor ganhou a causa. E o livro foi reeditado em fins dos anos 1980. Mas isso é outra história.
Já o xará Marcelo Rubens Paiva é um dos nossos grandes escritores da atualidade. Romance, teatro, roteiro de cinema, jornalismo (no Estadão, se não me engano), entre outras coisas. É filho do ex-deputado Rubens Paiva (1929-1971), que foi cassado, exilado, preso e covardemente assassinado pela infame ditadura militar. Uma segunda tragédia marca a vida de Marcelo Rubens Paiva: quedou-se paraplégico, aos 20 anos, após saltar, batendo a cabeça e fraturando a coluna, em um lago pelas bandas do estado de São Paulo. “Feliz ano velho” é um romance autobiográfico. Conta essas tragédias. Conta suas circunstâncias. O antes, o durante e o depois. Os amores, as amizades. Os medos, o sofrimento. O tratamento, as lutas. Há um certo bom humor. Mas é um livro triste. Pelo menos eu acho. E não poderia deixar de ser, pelo que conta. Li-o ainda na década de 1980, com deleite e angústia, se é que esses dois sentimentos podem ser vividos juntos. “Feliz ano velho”, livro de estreia do autor, continua sendo a sua “obra-prima”.
Ademais, lembro-me de então haver assistido à adaptação para o cinema de “Feliz ano velho”, de 1987, com a direção de Roberto Gervitz. Ganhou vários prêmios, em Gramado e no saudoso Festival de Cinema de Natal (em 1988), tão bem comandado pelo nosso Valério Andrade. O filme tinha Malu Mader em um dos papéis principais. Ela no auge. Fera radical. Lindíssima. Ponha linda nisso. Adolescente à época, comparecendo ao festival naquele ano, lembro-me de haver sido apresentado à beldade. Malu me deu uma “bicoca” (ou “selinho”, para quem não é desse tempo). Acho que era moda ou costume dela. Sem censura. Que “feliz ano velho”. Aqui, no meu caso, no sentido mais feliz do termo.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL