ALGUMAS CONSIDERAÇÕES EM TORNO DE TEMAS RELEVANTES
Carlos Roberto de Miranda Gomes – Professor e Advogado
Aproveito este momento de desligamento de assuntos relevantes para o País, em razão da Copa da África do Sul, para ‘catucar’ alguns temas de grande magnitude para o nosso futuro, em particular do Rio Grande do Norte e de Natal. Dividirei os assuntos por títulos:
FICHA LIMPA – Pelo imediatismo deste assunto, o TSE interpretou que a Lei que aprovou o Projeto “Ficha Limpa” tem aplicação para as eleições de 2010. Alguns estudiosos militantes do ramo, certamente adotando o casuísmo do interesse pessoal, vêm proclamando a sua inconstitucionalidade diante do princípio da ‘presunção constitucional de inocência’ e, por isso, insistem somente em considerar alguém com ficha suja com o trânsito em julgado.
Parece que ainda se pensa que a Lei esgota o Direito e para tanto, algum tempo verbal tem o condão de postergar um desejo do povo, externado em abaixo assinado popular para dotar o mais verdadeiro exemplo da vergonha e acabar com o reinado dos demagogos e enganadores que, indiciados em ilicitudes, utilizam esse defeito moral como boa indicação à concorrência em cargo político. Não, absolutamente não, o Estado é uma ficção jurídica criada pela vontade soberana do povo que, assim, é o seu criador, enquanto o Estado é apenas a criatura. Desta forma, deve sempre e sempre prevalecer a sua vontade, como aliás muito bem dissertou o jovem Procurador da República Marcelo Alves Dias de Souza: “Levando em consideração o Direito e a Sociologia, por exemplo, basta ler Émile Durkheim (1858 – 1917) Max Weber (1864 – 1920) e Eugen Ehrlich (1862 – 1922), pensadores com formação tanto em Direito como em Sociologia, que deram marcantes contribuições para a interação dessas duas ciências. Já no Século XX, caracterizando-se como um forte ataque ao positivismo (sobretudo à escola analítica inglesa), uma das mais significativas correntes de pensamento jurídico surgidas foi a escola sociológica americana, representada por nomes como os de Roscoe Poud (1870 – 1964) e Julius Stone (1907 – 1985). Essa escola procurava ver o direito pelo prisma do “povo”. Ao concluir concorda que mais importante que o Direito nos Livros é o Direito em ação, mas Np conflito entre esses direito, não sejamos juristas de gabinete ou, na forma como ele (Pound) cunhou, “legal monks”.
O ideal seria a adoção de um mandato “imperativo” no lugar do “representativo”, pois poderíamos cassar os mandatos dos trampolineiros.
EXAME DE ORDEM – Um bom contingente de estudantes trabalha e torce para o término da exigibilidade do Exame de Ordem, como forma de permitir o exercício da advocacia. Se isso vier um dia a prevalecer, assistiremos, atônitos, a falência das faculdades de Direito e a banalização dos direitos e interesses do povo, para permitir a mecanização daquilo que é ainda a coisa mais sagrada – a defesa do Estado Democrático de Direito, os princípios da isonomia e da equidade. Mais importante é fiscalizar com rigor o funcionamento das fábricas de bacharéis!
COPA 2014 - Continua sem a devida solução a questão de Natal sediar alguns jogos da Copa de 2014. O Comitê encarregado dos trabalhos para a construção da “Arena das Dunas” insistem em manter uma postura insensata e ilógica, com perspectiva de comprometimento do Estado com o pagamento de uma dívida durante 30 anos, perda de um patrimônio já existente, da pouca rentabilidade de se pagar um possível investimento da iniciativa privada através da PPP, obrigando ao Erário Público desembolsar o numerário necessário para cobrir o investimento. Por que não adaptar o Machadão, procedimento inteiramente possível; por que não convocar quem mais tem competência para tanto, o CREA, que até agora não tem conhecimento do projeto; por que com o que se economizará não se complementa os inúmeros e graves problemas da cidade como transporte urbano, saneamento básico, recuperação de escolas, de estabelecimentos prisionais, equipar nosso aparato policial, consolidar a rede hospitalar do Estado; construir bibliotecas sustentáveis. O tempo é muito curto e não será suficiente para se aguardar uma demolição tão gigantesca quando é possível aproveitar o Estádio ou mesmo construí-lo em outro local, tipo o do “parque Aristófanes Fernandes” que poderia ser deslocado para região mais rural. O Ministério Público precisa acompanhar a ganância econômica que existe por trás disso. Aqui, em particular, lamento a conivência do meu primo Paulinho Freire, que poderia muito bem ter procurado subsídios com Moacyr, autor do projeto do Machadão, pois nossa família é sempre procurada em época de eleição. Sei não, Natal tem a fama de “terra que já teve e não tem mais” – Até quando?
O QUINTO CONSTITUCIONAL DOS ADVOGADOS – Assunto que tem preocupado os advogados, pois alguns magistrados que ocupam o quinto constitucional dos advogados, depois que vestem a toga se esquecem de sua origem e permitem que os advogados sofram restrições esdrúxulas das cúpulas dos Tribunais, sem servir de um elo de ligação para amenizar e solucionar as questões com mais serenidade. Que saudades de Ítalo Pinheiro!
EXTINÇÃO DA CONSULTORIA – Lamentável essa iniciativa, que tem o apoio da Procuradoria Geral do Estado. Todos sabem que os Procuradores são advogados do Estado e o Consultor é o jurista independente que dirime controvérsias entre o direito do cidadão e do Estado, quando não se encontram em sintonia. O Consultor é quem examina as razões de vetos, a elaboração de mensagens, o aconselhamento do Governador, assuntos que estão fora da competência administrativa da PGE, que tem missão definida. Vamos pensar melhor, deixar à margem as vaidades e a busca de poder e olhar o racional. Pouco importa que sejamos o único Estado do Brasil a manter uma Consultoria, Vale à pena resguardar a memória daqueles que solucionaram questões cruciais no Direito local, como Raimundo Nonato Fernandes, Múcio Vilar Ribeiro Dantas, Francisco de Assis Fernandes, Ivan Maciel de Andrade, dentre outros, cujos pareceres continuam como pérolas do nosso Direito.
Desculpe se desagradei a alguém, mas já atingi a idade bíblica e minha vida está por conta da bondade de Deus. Não devo mais nada aos homens e não tenho mais idade para suportar a indiferença e a omissão, a opressão e a arrogância de quem pode mais do que sabe.
OUTROS ASSUNTOS – Vou reservar outros temas para detonar mais adiante, um dos quais o abuso de interpretação que alguns tabelionatos dão para apresentação de documentos. Vamos acionar a Corregedoria, pois não é possível suportar absurdos, como se fazer o arquivamento do livro original de criação de uma associação, com capa dura e tudo, porque o interessado não trouxe dois exemplares do livro original. A expressão “original” para alguns não é mais uma coisa única singular e confundem a expressão legal “duas vias” como “dois originais”, como que o Tabelião não gozasse de “fé pública” para dar certificado de autenticação de cópia reprográfica do original.
sábado, 12 de junho de 2010
DO VERDE NASCE
HAMILTON DE SÁ DANTAS
Diz a lenda que Alexandre da Macedônia, filho de Felipe, um dos maiores guerreiros e estrategistas que o mundo conheceu, testamentou a sua última vontade, decidindo sobre a cerimônia do seu enterro: haveria um séquito dos seus médicos, em atitude de humildade, a exposição pública de todos os seus tesouros e que o seu ataúde fosse conduzido aberto, com os seus braços projetados para fora, as mãos espalmadas.
Explicava o jovem general, conquistador do mundo, que queria que os seus súditos soubessem que não há ciência capaz de suplantar a vontade divina; que ninguém leva consigo os tesouros que amealhou na sua vida terrena; e que chegaria na outra vida com as mãos vazias .
Creio que o discípulo do filósofo Aristóteles, cujos atos de estratégia e de beligerância, surpreenderam e estremeceram os povos da antiguidade, aprendeu uma lição de sabedoria : sic transit gloria mundi. Tudo é efêmero. O que conquistarmos do mundo físico e aquilo que nos tornarmos em razão da busca do poder, da riqueza ou da glória, permanecerá aqui. Nada nos pertence e nada será incorporado.
Pois bem, se quisesse, Hamilton de Sá Dantas, juiz federal por vocação e escolha, faria inveja a muitos que ambicionam esses valores dados por Alexandre como inúteis.
Descende de ilustríssima estirpe: do lado paterno é neto do Desembargador Fàbio Máximo Pacheco Dantas, luminar da ciência jurídica potiguar, e bisneto do Coronel da Guarda Nacional Felismino Dantas, fundador do Partido Republicano e o seu chefe político no estado, foi inúmeras vezes Prefeito de Ceará-Mirim e outras tantas vezes deputado à Assembléia Estadual, ambos os patriarcas proprietários, sucessivamente, dos engenhos de açúcar União e Verde Nasce.
Do lado materno, é bisneto de Boaventura de Sá, abastado senhor de engenho, proprietário do Engenho Capela. É também bisneto do Coronel Manoel Pinto, ilustre cidadão e proprietário de terras do município de Ceará-Mirim.
Seu pai, Herbert Washington Dantas, carinhosamente conhecido como Betinho, foi proprietário do Engenho Varde-Nasce, esteve no exercício do cargo de Deputado Estadual e, dentre outros projetos que concebia com visão futurista, deslocado do seu tempo, destaca-se o da construção de uma ponte rodo-ferroviária sobre o rio Potengi, antecipando-se à inevitável corrosão da estrutura de ferro, alcançada pela maresia, da ponte que serviu durante anos aos comboios ferroviários e, subsidiariamente, à travessia de veículos automotores.
O “visionário” Betinho, pai do nosso perfilado, foi vereador e depois candidato a Prefeito de Ceará-Mirim e, segundo pesquisa mandada aplicar pelo então Prefeito de Natal, Agnelo Alves, um dos líderes do MDB, sua vitória era fato consumado, não fosse a falta de oxigenação no dia das eleições. Fui um dos coordenadores da campanha do pai do meu amigo Hamilton e daqueles que tinha certeza de que, uma vez eleito, Herbert Dantas faria uma das mais eficientes gestões municipais dentre as Prefeituras do estado.
Filho, neto e bisneto de políticos, senhores de engenho e de personalidades que se puseram adiante do seu tempo, essa a herança recebida pelo hoje juiz federal, menino da bagaceira do engenho Verde-Nasce, Hamilton.
Por esses vieses, por ser quem é porque quis ser assim, faço introdução ao relato da pessoa humana, muito humana, do meu amigo Hamilton, a quem apelidei na juventude de Conde de Sá Dantas. Um que tem a percepção de que é mais sábio, coerente e justo, buscar a própria evolução através do cultivo de valores pessoais que enriqueçam ao espírito, que o de vangloriar-se de suas ascendências e amealhar o ouro e a glória que, bem a propósito, são estigmatizados num dos mais eloqüentes e reflexivos epítetos sobre o assunto, utilizado como título de um dos livros de autoria de Álvaro Lins “A glória de César e o punhal de Brutus”.
Toda a glória conquistada por onipotente Júlio César, jazia ali, aos pés do traiçoeiro Brutus, vítima do seu punhal.
Na segunda metade dos anos cinqüenta, a turma de internos composta por cearamirinenses era uma das mais numerosas do colégio Marista: Gilberto Sobral, Marcelo Varela, Gilberto Brandão, Chiquinho (Francisco de Assis) Dantas Barreto, Hamilton Dantas e eu.
Desses, só Hamilton e eu fazíamos parte da “turma dos menores”, assim considerados os que tinham até doze anos. Os outros eram “maiores”. Talvez por isso, pela idade e pela partilha da terra comum, os dois tivemos um relacionamento mais estreito. E talvez só essas circunstâncias expliquem a nossa amizade, porque éramos muito diferentes.
Enquanto Hamilton era “endiabrado”, expansivo e popular, eu era tímido, introvertido e pouco dado a amizades. Dedicava-me à leitura e aos estudos e Hamilton às brincadeiras e práticas esportivas. Vivia “de castigo”, de pé contra a parede, vítima, principalmente do nosso irmão “regente” – de fato um ditador – a quem chamávamos sugestivamente de “Polón”, numa alusão ao ditador argentino Juan Manuel Perón.
No entanto, Ceará-Mirim era um apelo muito forte e nos encontrávamos nos fins de semana e nas férias, nas “peladas” com bola de borracha nos campos improvisados, de nomes geograficamente apropriados – campo do cemitério, da maternidade e do motor e também nos víamos no sobe e desce das movimentadas ruas da cidade.
Alguns anos depois, operou-se um milagre: Hamilton tornou-se um aluno exemplar e criatura de trato afável e gentil, quase cerimonioso. Do antigo menino hiperativo, restou apenas a mania andarilha. Percorria longas distâncias, sempre com muita rapidez. Parecia estar em toda parte. Quando e onde menos se esperava, aparecia sempre um Hamilton sorridente. Tantas vezes o fenômeno se repetiu que às vezes o tratávamos por “deus”.
Tornamo-nos, nessa época, grandes amigos, dessas amizades que se estendem pela vida toda, com a cumplicidade do congraçamento familiar e de escolhas comuns.
Fomos internos no Marista durante cinco anos, de 1955 a 1959 e só nos separamos no então chamado curso colegial. Fui para o Atheneu e ele permaneceu no Marista. Mas a nossa terra querida nos reunia, e, mais do que ela, a praia de Muriú dos nossos encantamentos.
A amizade naquele tempo, quando era verdadeira e divorciada de interesses subalternos, era um compromisso integral que envolvia a família inteira, pai, mãe, irmãos e irmãs. Assim, passei a ter uma nova família no lar de Herbert (Betinho) Dantas e dona Nilcéa, ganhando novos “irmãos”, Naide, Neire, Nalba, Haroldo, Nadege, Helder, Naíse, Hermes, Nice e Nadir. Depois de algum tempo, chegaram os fins de rama, Herbert Júnior e Nadja. E, infortunadamente, tempos depois, Helder e Hermes se foram, deixando-nos enlutados.
Fascinava-me a desarrumação harmoniosa do casarão da Praça Barão de Ceará-Mirim, onde moravam os Sá Dantas, vizinho ao Colégio Santa Águeda. A aparência de desarrumação era conseqüência da movimentação de onze crianças saudáveis (depois treze), vale dizer, ativas, com muita energia, e nenhuma babá. Era dona Nilcéa, com um sorriso doce e tolerante, quem conduzia a parte harmoniosa. Andava sempre, como se dizia naquele tempo nas cidades do interior sobre as mulheres fecundas, com um menino no ventre, um no colo e outro pela mão.
Sempre me seduzia a placidez da mãe de Hamilton. Nem parecia que tinha que cuidar dos onze filhos, da administração da casa e do “em torno” do marido. Acho mesmo que Nossa Senhora a auxiliava, deitando sobre ela o diáfano e bem aventurado manto azul para dar-lhe conforto e paciência, para compensá-la de tanto sacrifício.
Filho exemplar, desvelava-se em carinhos pela mãe e convivia harmoniosamente com o pai, um pai de família de temperamento severo, intolerante em questões de desvios de conduta dos filhos, ao modo como se educava à época.
O avô paterno passou algum tempo com a família e nesse tempo testemunhei a dedicação não apenas dos familiares, mas especialmente de Hamilton. O meu amigo sofria, relevava e defendia os desvarios do avô, o desembargador Fábio Dantas, em avançado estado de esclerose. (Faço um parêntese para recordar certa vez em que Herbert Dantas, diante da irreversível demência do pai, avô de Hamilton, com lágrimas nos olhos o enlaçou pela cintura. O meu amigo também chorou – pelos dois, e eu pelos três.)
Irmão vigilante, mas liberal, era o preferido das meninas e o líder dos irmãos. Impunha-se pelo exemplo e era mimado em retribuição ao tratamento carinhoso que dispensava às irmãs.
Cursamos Direito juntos. Estudamos para o vestibular na casa que o seu pai mantinha, na rua Jundiaí, 444, até hoje serventia da família. Ele, Luciano Limeira e eu. Nunca fizemos cursinho pré-vestibular e fomos aprovados incontinenti à conclusão do segundo grau.
No Ceará-Mirim daquele tempo (fim dos anos cinqüenta para os anos sessenta) nós tínhamos poucas opções para o divertimento, mas bastante imaginação para criá-lo.
Formávamos um trio inseparável: Hamilton, Afrânio Cavalcanti e eu. Jogávamos sinuca no bar de “seu” Joao, na rua São João, tomávamos banho no Diamante do senador Augusto Meira, caçávamos rolinhas e nambus, íamos ao cinema, reuníamo-nos no murinho do “centro” e à noite na esquina da “venda” de Chico Dantas para as conversas longas que duravam até dez horas, horário em que o gerador que fornecia energia à cidade era desligado.
Ficamos tão habituados ao horário de encerramento das nossas reuniões, que, mesmo quando a cidade recebeu a energia de Paulo Afonso (Chesf) nos despedíamos a essa hora.
Hamilton sempre foi uma criatura incomum, como se vivesse em constante evolução, policiando-se, remodelando-se, controlando os impulsos, embora tivesse sido uma criança e um adolescente inserido no mesmo contexto e com os mesmos hábitos e modismos de sua geração.
Refiro-me ao seu polimento, às advertências que fazia quanto às nossas pequenas transgressões, ao temperamento judicioso que o levaria por gravidade ao cargo de magistrado.
Lembro do seu sorriso sempre contido, reservado, mesmo quando os olhos brilhavam de alegria e de prazer. Tinha o hábito de por a mão aberta ocultando a boca, não sei porque, talvez para esconder o sorriso que carregava perenemente, não sei também porque. Aliás, o “diário” de Hamilton deveria ter muitos porquês e poucas respostas. Ele às vezes manifestava muita estranheza diante de alguns hábitos e de algumas condutas, mesmo que não as censurasse.
No futebol de beira de praia, não dividia a bola com a mesma agressividade com que nós o fazíamos, nem devolvia as “entradas” mais duras que lhe davam, preferia vingar-se com dribles e toques próximos da perfeição, pois era um excelente jogador.
No jogo como na vida. Eis porque cultivou amigos, parceiros e admiradores. É uma unanimidade inteligente, com atestado virtual firmado pelo próprio Nelson Rodrigues como exceção à regra.
Depois, fomos colegas de escritório, patrocinados por Emmanuel Cavalcanti, que se tornou orientador dos nossos primeiros passos na advocacia. Era uma sala minúscula no edifício 21 de março – a de número 103, se não me falha a memória, pertencente à maçonaria. Praticamente nos acotovelávamos, Emmanuel, Hamilton, Cícero Pinto, rábula e farmacêutico, experiente nas práticas forenses e no trato político, depois Prefeito de São José de Campestre e eu.
Transitar entre quatro birôs com duas cadeiras cada um, num espaço que acomodava com relativo conforto, apenas duas pessoas, era tarefa complicada. Hamilton acumulava o ofício liberal, com a função de promotor adjunto de uma das varas da comarca de Natal e ainda era repórter da Tribuna do Norte.
Separamo-nos um ano depois, quando improvisei um escritório a partir da reforma de uma garagem do Dr. Raul Fernandes, frente-a-frente à antiga sede do cartório do meu amigo Jairo Procópio, na Vigário Bartolomeu.
Tempos depois me comunicou que havia sido aprovado em concurso para assessor jurídico da Sudeco – Superintendência do Desenvolvimento do Centro Oeste e iria trabalhar em Brasilia. De lá, foi aprovado em concurso para Juiz federal e permanece até hoje na capital federal, onde constituiu família.
Mas não desatou os laços com Ceará-Mirim. Conserva, como patrimônio da família, ainda moendo, o engenho Verde-Nasce que o pai herdou do avô, e mantém perene e constante a temporada de verão em Muriú, na mesma casa onde, criança ainda, foi embalado pelo marulhar suave daquele pedaço paradisíaco do Atlântico e foi banhado pela lua mágica e vaidosa refletida no espelho das águas nas noites mornas do verão.
Guardo algumas boas lembranças da amizade leal e sincera de Hamilton.
Apaixonei-me (quem não o fez, atire a primeira pedra) por uma bela pernambucana de olhos verdes e fui por ela correspondido. Era filha de um rico personagem da alta sociedade pernambucana. Logo eu? Filho de um médico paupérrimo, com o agravante de ser comunista? Ainda assim, a paixão prosperou, mesmo sob protestos e mil recomendações dos responsáveis por sua estadia em Muriú.
Tanto fizeram, como na letra da música “Pois é”, que houve a separação.
No carnaval tentei uma aproximação, mas a “guarda vermelha” exercia uma severa vigilância. Afinal, soube que ela iria “brincar” o carnaval num dos blocos de elite de Natal – o Xamego.
Pedi, então a Hamilton, que era um dos animadores do dito bloco, que conseguisse a minha admissão. O meu amigo lutou com unhas e dentes, mas o meu nome era sempre vetado. E o motivo dado como justificativa era o mais torpe: porque eu era pobre e era muito alta a “jóia” correspondente ao ingresso. De fato, isso era verdade, mas essa era uma meia-verdade que encobria o verdadeiro motivo: evitar o meu reencontro com a bela pernambucana de olhos verdes.
Sem solução, Hamilton anunciou a sua renúncia à condição de sócio e, em face de decisão tão radical, os censores voltaram atrás e fui admitido no bloco. Um beau geste.
Recordo, com orgulho e nostalgia, que a minha mãe-cúmplice providenciou tudo: comprou o tecido da blusa e dos shorts e contratou a mais famosa costureira da cidade, Trindade, para confeccioná-los; em seguida, baixou o preço das toalhas de mesa de frivolité que fazia e comercializava para aumentar a renda familiar, no intuito de vendê-las com rapidez, o que de fato aconteceu, e me deu o dinheiro da “jóia”.
De fato, não consegui demover a ex-namorada, mas isso é outra estória. Valeu o gesto do meu companheiro, expondo-se à privação da festa maior da nossa juventude, em nome da amizade.
Até 1970 não exercera a advocacia profissionalmente, embora tivesse me graduado em 1967. Provia um bem remunerado cargo em comissão de diretor do Departamento do Patrimônio de Natal, nomeado pelo então prefeito Agnelo Alves e mantido por seu sucessor Ernani Alves da Silveira.
Depois de patrocinar, com nome alheio, algumas esparsas mas exitosas demandas judiciais, decidi advogar. Consultei o amigo Hamilton sobre a possibilidade de instalar-me no seu escritório, ignorando o fato de que ele o dividia com dois outros colegas, como me referi no início, ou não teria enunciado esse desejo.
Vai daí que dois ou três dias depois, pergunta-me se tenho condições de comprar os móveis. Não tinha, porque pedira exoneração do meu cargo, que me incompatibilizara para o exercício profissional.
Não teve problemas, ajustou com Cícero Pinto o meu “estacionamento” no birô do rábula, que, entre a farmácia e as articulações políticas em Campestre, raramente comparecia ao escritório. Só algum tempo depois, pude adquirir o mobiliário que entulhava o escritório.
Éramos ideologicamente opositores. Ele, carimbado como “direitista” ou “reacionário” e eu, “esquerdista” ou pejorativamente taxado de “comuna”. Hamilton idolatrava Carlos Lacerda, a sua coragem e, sobretudo, os seus dotes de orador político combativo e contundente, temido pelos “esquerdinhas”.
Discutíamos muito nos saguões da Faculdade de Direito. Nessa questão, não transigíamos. Diria até que era nosso único foco de divergência, assumindo muitas vezes o caráter de uma contenda pessoal, já que em algumas ocasiões partíamos para as agressões do tipo “burro”, “medíocre”, “retrógrado”, “lacaio de Moscou”, “anticristo”, e por aí andavam nossos insultos,
Havia uma espécie de desalinhamento automático entre esquerdistas e direitistas: qualquer tese política ou cultural defendida por um, já contava com a oposição do outro. No entanto, quando fui candidato a vice-presidente do Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, numa chapa considerada “de esquerda”, disse-me que votara comigo, em homenagem à nossa amizade. Mas não ficou assim “de graça” o enviesado apoio. Arrematou que avaliara mal – pensara que eu seria derrotado e fui eleito. Que lamentava ter sido “um inocente útil” a serviço dos “vermelhos”.
Preciso dizer mais?
Talvez. Falar do carinho e da reverência com que tratava o avô Cândido Pinto, um homem arrastado ao infortúnio que perdera a posição social e a abastança – fora interventor do município de Ceará-Mirim e participou do movimento “tenentista” - sobrevivendo como servidor subalterno de uma repartição pública na cidade de Goianinha.
Falar da importância que conferia ao alcoólatra e sifilítico Lourival, que havia prestado serviço aos americanos na época da guerra e falava inglês desembaraçada e fluentemente, língua que ambos cultivávamos e não perdíamos oportunidade de submetê-la à prova de fogo. Da partilha dos nossos parcos centavos para ajudá-lo nas suas necessidades de sobrevivência e, sabíamos, de sustentação do vício.
Do modo simples e respeitoso como sempre tratávamos os mais humildes, sem distinguir os amigos entre pobres e ricos, ilustres ou anônimos e da nossa arrogância frente à pompa e circunstância dos poderosos de então.
Do nosso afã de conhecimento, do saber, da busca da verdade onde quer que ela se encontrasse. Como éramos puros, meu Deus! Como éramos inocentes na crença de tantas quimeras!
Então, vieram os idos do mal do século e fomos forçados a vestir armaduras completas, inclusive com elmos que dissimulassem o nosso verdadeiro perfil, para que lográssemos sobreviver. Que pena! Tornamo-nos órfãos, sem a paternidade ou a tutela das nossas sadias e estimulantes ilusões.
Ao vencedor, as rapaduras ou os relatos lamuriosos das memórias.
PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado. Escritor e Advogado.
domingo, 6 de junho de 2010
FRANKLIN JORGE: ENTRE O NIILISMO E O ILUMINISMO
“O poeta faz-se vidente através de um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos”. Rimbaud
Acostumei-me à convivência com as diferenças e os diferentes e a respeitá-los, embora me valha freqüentemente de uma frase recorrente: sou capaz de conviver com os anjos e não me converter, com os demônios e não me perverter.
Meu pai não “fazia a feira”; não guardava, controlava ou valorizava o dinheiro; não fumava, não bebia, não freqüentava os prostíbulos, não ia à missa; não exercia o poder patriarcal sobre os membros da sua pequena família; e era doce. Preferia ficar em casa, escrevendo, lendo ou “bolinando” os seus livros, pois tinha amor físico, também, pelos livros, como todo bibliófilo que se preze. E, para embaralhar ainda mais o juízo dos formadores de opinião, exercia a medicina como sacerdócio e não como negócio, e, suprema infâmia, o maior opróbio daquela época, entre os burgueses - era comunista.
Qual o conceito que dele faziam os seus contemporâneos interioranos, habitantes de uma cidade elitista, machista, senhorial e preconceituosa?
Um bom homem? Um ingênuo, um tolo, um “besta”? Um sonhador, um louco? Um papa-figo*, devorador de criancinhas? Um perigoso subversivo cujo exemplo já constituía uma ameaça aos “barões assinalados”?
Um dos seus “defeitos” tenho certeza que era do domínio público, porque os amigos mais afoitos me deram conhecimento: meu venerando pai seria “manobrado”por minha mãe, uma mulher pragmática, severa e matriarcal. A bem da verdade, ele não era. Apenas não aceitava as provocações, os convites às escaramuças quotidianas e as “recomendações” de minha mãe. Gostava da paz e da harmonia no seu reino. Evitava o confronto, mas, ao fim e ao cabo, fazia o que achava que devia ser feito.
Como julgá-lo – em qual contexto, sob quais paradigmas?
O ser humano habituou-se ao maniqueísmo e à dualidade. Não há meio-termo, nem ponderações. E geralmente pontificam os princípios e regras consagradas pelo poder dominante. Quando tratava de questões morais com os meus alunos do curso de direito, costumava dizer que a moral decorria dos valores assentes numa determinada sociedade e que estes defluiam dos juízos da classe dominante, mais que o consuetudinário.
Os parâmetros para o julgamento pessoal são fluídicos e mutantes, ao sabor das circunstâncias, conveniências e modulações conjunturais. Ortega Y Gasset sabia disso.
Como se constrói uma reputação? Como se cristaliza uma opinião? Como se formula um conceito pessoal?
Creio que é no terreiro da dialética, não necessariamente no pavimento da lógica. Os argumentos mais vigorosos (ou mais influentes) decidem qual juízo será adotado. Mas, quem desagrada ao conjunto dos formadores de opinião, certamente será desfavorecido na avaliação do seu caráter. As obras que, no meu julgamento pessoal, credenciam o avaliado, só têm serventia para meia dúzia de pessoas conscienciosas e firmes, que não se deixam converter, nem perverter-se.
O meu amigo Franklin Jorge é diferente. Até aí, nada a objetar. Ser diferente é distinto, como diz Arthur da Távola, de querer ser diferente. Num, as diferenças são genéticas, inatas; noutro, são produzidas, artificiais. Vai daí que o querer ser diferente, como a maquiagem, desfaz-se no primeiro mergulho em profundidade.
Franklin, na sua espontaneidade e impulsividade, aqui dadas como virtudes, embora temerárias, cometeu muitos erros de estratégia. Avaliou mal muitos cenários. Bateu de frente com jamantas e escavadeiras na construção do seu espaço. E vem pagando por isso. É que ele é movido a conflitos, só está no seu elemento quando a polêmica se inaugura. É conduta típica dos replicantes e dos combatentes que se sabem miúdos e sozinhos para as pelejas e querem crescer, igualar-se aos adversários-Golias, pela bravura e pela inteligência – pois estes são atributos que lhe sobejam - embora, desafortunadamente, não seja um estrategista, como já ficou registrado. Certamente não o atraiu a leitura do clássico de Sun Tzu, pragmático e intuitivo. Preferiu o racionalismo Maquiavélico.
O meu perfilado não é previsível, nem coerente, nem se deixa aliciar pela maioria dos valores assentes. É um ser de constituição volátil que se orienta segundo a sua própria natureza. Lembro-me de ouvi-lo dizer, certa vez, que ele mesmo era o seu maior e mais rico personagem. Ele se constrói, desconstrói-se e se reconstrói, segundo as circunstâncias e as suas próprias necessidades existenciais. E não se empenha na criação de tipos simpáticos, agradáveis ou amoldáveis ao gosto popular.
Que mal há nisso? Quem não se imagina personagem de seus próprios desvarios, delírios e sonhos, que atire a primeira pedra. Já testemunhei muitas “reencarnações” em vida, de gente que precisava superar suas limitações, erigir-se novo ser para conquistar a sua auto-estima e o respeito alheio. Já observei muitos “travestismos” insustentáveis, no entanto, mantidos em nome das conveniências: clowns aberrantes e outros nem tanto, mas grotescos e impróprios quais bailarinas desgraciosas, altas e gordas, metidas num saiote justo que não resiste a um “pas de deux” ou a um singelo minueto.
Por que não a construção de um personagem verossímil, plausível? Uma persona que expresse com fidedignidade o ego do inconformado? Uma bela máscara do carnaval veneziano ou, se a tal intensidade chegar a patologia do carente, o uso das máscaras rituais do teatro Kabuki japonês.
Não me surpreendo, nem questiono essas transfigurações, porque já recorri a elas, como todo ser mutante ou alguma vez desfigurado, para a minha própria completude. Não serei a mão que apedreja ou acusa. Que cada qual alimente a sua ilusão se isso o faz feliz.
Franklin Jorge tem inteligência muito acima da média provincial. É culto, segundo critérios de mensuração obtidos a partir da média dos muito bem informados. É um argumentador e polemista brilhante. Escreve de modo fluente, dialético, enxuto e limpo. Lê obsessivamente, mais do que escreve, donde silogisticamente se conclui que os seus textos têm alicerce e prumo. É festejado, tido e havido como um singular operador intelectual, além dos estreitos limites do nosso estado.
Quem sou eu, quem somos nós, portanto, para levá-lo à fogueira Inquisitorial? Até mesmo porque ele instituiu o seu próprio “Santo Ofício” – o nome do seu site.
Se essas singularidades o tornam “marginal” (aliás, uma categoria que o agrada, se pautada num contexto intelectual) ou “gauche”, ele, com certeza, encarnará uma das duas proscrições como substanciação do seu desafio.
Como observei no perfil de Manoel Onofre de Souza Júnior (“Um provável Manoel Onofre Júnior”) não se pode julgar seres diferenciados por parâmetros ordinários, comuns, aplicáveis à maioria das pessoas, sobretudo àquelas anônimas que engrossam os rebanhos e servem de antepasto à alcatéia?
Tal como meu pai e o amigo Manoel Onofre, a conduta excepcional reclama novos paradigmas, uma visão descontextualizada do óbvio e do senso comum. Se há um óbice de analistas credenciados para avaliá-los, paciência. Mas que não ponham numa vala comum, heróis e poltrões, gênios e medíocres, revolucionários e conservadores. Há que se particularizar. Há que se separar o joio do trigo, alhos de bugalhos. Lineares de complexos.
E é bobagem concluir-se, como o bovino ou o ruminante o fariam - se pensassem - que melhor é não julgar.
Ninguém se escusa ou é impermeável à formulação de juízos de valor. Quem assim se confessar, é hipócrita. Variável é a metodologia desses juízos: eles são manifestos ou endógenos. Mas ninguém escapa a esse processo, à tentação de alçar-se a Deus, enquanto dure. Creio que essa manifestação é o ponto alto da nossa maturidade intelectual e valioso instrumento de defesa da nossa sobrevivência existencial.
Convivi pouco tempo com Franklin.
Na década de oitenta, fundei e mantive uma editora alternativa, a “Nossa Editora”, que procurou viabilizar a edição de obras de reconhecido valor literário, mas sem apelo comercial e, portanto, sem condições de ser publicada. Criamos um sistema de financiamento em que o autor contribuía com a menor parte, a editora assumia outra parcela do risco e buscaria um patrocinador relacionado com o título publicado. Por exemplo: “A Face oculta de Severo”, revelações inéditas sobre o aeronauta, descritas por seu neto, Augusto Severo, foi parcialmente patrocinada por Paulo de Vasconcelos de Paula, ex-piloto e amante da aviação, à época diretor de Galvão Mesquita.
Pois bem. Certo dia, em meados dos anos oitenta, recebi a visita de Honório de Medeiros, que havia publicado a sua excelente “Investigação parcial acerca da solidão”, na nossa coleção Pretexto. Trazia consigo uma criatura que me parecia familiar. Vestia-se com esmero mas de modo casual, displicente, barba curta e bem tratada, cabelos anelados muito escuros, olhos muito vivos por trás de óculos de grossas lentes, um sorriso indeciso entre a arrogância e a simpatia.
“Esse é Franklin Jorge, de quem certamente você já ouviu falar”. Claro que tinha. Franklin mantinha, já à época, uma coluna no jornal Tribuna do Norte, onde polemizava com os intelectuais da província. Era muito jovem, avaliei naquela oportunidade, para tanta repercussão.
Posso dizer que o “adotei” por empatia. Sempre fui (e permaneço) um intuitivo. Gosto ou não gosto à primeira vista. E se não gostar não haverá uma segunda oportunidade para chegar ao meu bem querer.
Gostei do que “vi” naquele rapaz que julguei controvertido no meu julgamento “fisionomônico”: anjo e demônio habitando o mesmo espaço, em absoluta harmonia. Lembrei-me da reflexão de Saramago, segundo a qual virtudes e pecados teriam a mesma face e a mesma hierarquia. Cada um ocuparia o seu espaço na ausência do outro
Franklin, então, intuí, seria a fúria e a pacificação, segundo as circunstâncias. E já o vi assumindo ambas as faces.
Comigo sempre foi muito correto, excedendo-se nas atenções e favores. Levou-me um livro de Stella Leonardos, para que o editássemos e assim ingressássemos no circuito editorial nacional e ajudou-me na divulgação do meu modesto “O Homem que Assassinava Árvores”, colhendo depoimentos de Ascendino Leite, Nilo Pereira e Jorge Medauar, entre outros.
Integrou o nosso Conselho Editorial, mantendo-se fiel à avaliação isenta de cada livro, segundo o seu valor literário e não a sua simpatia ou antipatia pessoal. Publicou conosco o seu “Jornal de Bolso”, aceitando, a contragosto, a sofrível qualidade gráfica do livro, fruto da pobreza de recursos técnicos da editora.
Tornamo-nos amigos.
Dessa convivência não tenho porque oferecer qualquer reparo à sua conduta, ao contrário, sou grato pela correção, carinho e apoio que sempre recebi dele.
Gosto de gente afirmativa. Vomito, qual o Evangelho, os mornos. Em “Armando Holanda, o recurso extraordinário” afirmei que “Recebo com desconfiança a amizade dos seres gravados apenas pelas virtuosidades, sem defeitos, sem o condimento picante de algumas imperfeições que não os desconstroem, mas os singularizam e dão-lhes a feição humana perceptível, evidente, visível. Ao invés, os muito virtuosos se assemelham à lua ou aos icebergs – mantêm invisível uma das faces, ou a parte mais ofensiva de sua estrutura. Exatamente porque são ilegíveis por nós, míseros mortais, “indecodificáveis”, porque não há um paradigma humano.”
Mantenho o que disse. E estendo a Franklin o que disse sobre Armando.
Franklin é desgraçadamente humano, nas imperfeições e nas virtudes, e até nisso ele se supera, porque ninguém é mais imperfeito e tampouco o excede na virtuosidade. Ele tem o estigma de uma rebeldia com causa que o acompanhará até a morte, malgrado a repressão dos censores e dos oficiais da inquisição.
Ele é Baudelaire e Rimbaud, Wilde/Dorian Gray, Lúcifer e Gabriel, Buda e Padre Cícero, Gide e Campos de Carvalho, Agripino Grieco e Alceu de Amoroso Lima. Herói e bandido. Humano, miseravelmente humano. Talvez essa condição o constranja, porque o vulnerabiliza. Eis porque, vez por outra enquista-se no poder de afirmar-se através das palavras., como mecanismo de defesa prévia ou de resposta contraditória.
Porque conhece, como Carlos Heitor Cony, a arte de falar mal. É elegante, culto, hábil caricaturista e preciso até mesmo quando reduz seus desafetos à menor porção intelectual.
Pinço, ao acaso, um dos seus esboços caricatos em “Um dia em Nascença”, da série “O céu de Ceará-Mirim”, referindo-se a um desafeto: “Prejudica-o um certo boato malvado, segundo o qual, sob o condomínio de suas sebentas axilas, mora uma sociedade de alegres gambás.”
No contexto da mesma crônica, chega ao enlevo e à virtuosidade, à elegância e ao refinamento, numa “boutade” poética: “Marize desce lentamente a encosta em direção ao lago de Nascença, a que se deve certamente o nome deste lugar paradisíaco. Procura um outono, uma margem, uma nave, um ombro. O homem que ela tocar deixará de ser homem. Será flor, trilho, estrada, anjo”. Imagino que trate da notável poeta Marise de Castro, a quem louvo pela notável tessitura poética.
Por essa e outras manifestações literárias aparentemente controvertidas, tenho-o como um performático da palavra escrita, um saltimbanco que conduzisse solilóquios com maestria, que se servisse das palavras com arte e sentimento mas com certo prazer lúdico.
Algumas vezes ele agride aparentemente sem causa. É a unhada desmotivada do gato, só para lembrar que tem garras, não é indefeso.
Lembro-me de algumas “unhadas” e igual número de revisões de conceitos que fez.
Aludindo à qualidade literária um festejado prosador potiguar: “Ele é muito esperto com as palavras”.
No entanto, revendo uma posição visceralmente ofensiva em relação à poética de outro conterrâneo: “A poesia dele tem um timbre hispânico, lembra-me a de Machado”.
A respeito de um pretensioso e laureado “escritor de plaquetes” (sua classificação já o penaliza): “Há nele um vazio tão grande que autoriza qualquer pessoa ocupar o seu lugar, sem por em risco o princípio da lei física. Ele é inexistente intelectualmente”
Depondo sobre outro pretensioso, igualmente superficial: “É um mero leitor de orelhas de livros.”
E vai por aí, distribuindo farpas e beijos.
Passional? Um cigano andaluz, um Otelo atormentado pelo ciúme de Desdêmona, ou o conjunto das Fúrias se fossem xifópagas: Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Interminável).
Arrogante? A postura do toureiro, empunhando apenas as banderillas, diante do touro mais medonho.
Ousado? Um Davi que não avalia a massa física dos Golias e aceita o bom combate.
Vaidoso? Superlativamente!
Mas, nesse mundo literário de louvaminhas e exibições ególatras, quem não o é?
Estou certo de que a maior contribuição de Franklin Jorge à cultura norte-rio-grandense, à parte a sua própria produção literária, foi a inusitada prática sistemática do dissenso. A cultura da oposição – um emergente niilismo. A réplica constante e sistemática rompe a blindagem do conformismo imobilista. Ao menos, a dúvida, como no dizer de Ferreira Gular: “nada vos sovino, com a minha incerteza vos ilumino”.
Quem se insurge contra o establishment, abre as fronteiras da vanguarda, ou, no mínimo, estabelece o pré-questionamento das ideologias assentes. O pensamento moderno se potencializa na liça dialética, nunca no campo do consensualismo. A democracia é fruto do dissenso, ao revés, as doutrinas autoritárias se desenvolvem à sombra do consenso, espontâneo, induzido pela massificação propagandística, ou compulsório, através da ditadura da láurea unanimista.
De mais a mais, o pensamento estandardizado, convergente, unânime, cristaliza-se. Envelhece. Esclerosa-se. Não há meio termo. O passadismo é referência muito importante para a formação de uma ideologia cultural, mas não é o seu vetor, nem diretriz única. Há de se auscultar as tendências, experimentar, antever o futuro para se instaurar o novo, quando menos para sopesar a resistência da ideologia cultural sedimentada.
Por isso fica evidenciada, à simples leitura desse texto, a relevância de Franklin Jorge para a cultura contemporânea do Rio Grande do Norte. Senão, observe-se que a proposta inicial dessa escritura era apenas e tão somente apresentar um esboço (porque tudo que se lhe apresente como definitivo é superado em razão da sua contínua mutação) do nosso perfilado e aceitar a provocação dos seus desafetos, apresentando-o como ele é, de modo isento, singular, sem o alvo do preconceito.
De repente, fui compelido a sair do pessoal para o contextual com o qual ele se confunde. Meu amigo é uma individualidade que se institucionalizou, porque reúne em si mesmo um conjunto de idéias que se Franklinizaram, constituindo uma escola, ou uma tendência.
E não me digam que há exagero ou destemperança nas observações. Ou parcialidade. Ou superestimação. Vali-me da “lógica do razoável”, firmado em “leituras” públicas sobre o perfilado, em fatos e fundamentos, para firmar conclusões. É possível que, de repente, haja-me deparado com algumas “verdades” particulares, mas não foi esse o meu norte.
Ademais, fio-me na sabedoria oriental, que costuma dizer que não se atiram pedras em árvores que não dão frutos.
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Pedro Simões Neto – Professor de Direito aposentado. Escritor. Advogado.
“O poeta faz-se vidente através de um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos”. Rimbaud
Acostumei-me à convivência com as diferenças e os diferentes e a respeitá-los, embora me valha freqüentemente de uma frase recorrente: sou capaz de conviver com os anjos e não me converter, com os demônios e não me perverter.
Meu pai não “fazia a feira”; não guardava, controlava ou valorizava o dinheiro; não fumava, não bebia, não freqüentava os prostíbulos, não ia à missa; não exercia o poder patriarcal sobre os membros da sua pequena família; e era doce. Preferia ficar em casa, escrevendo, lendo ou “bolinando” os seus livros, pois tinha amor físico, também, pelos livros, como todo bibliófilo que se preze. E, para embaralhar ainda mais o juízo dos formadores de opinião, exercia a medicina como sacerdócio e não como negócio, e, suprema infâmia, o maior opróbio daquela época, entre os burgueses - era comunista.
Qual o conceito que dele faziam os seus contemporâneos interioranos, habitantes de uma cidade elitista, machista, senhorial e preconceituosa?
Um bom homem? Um ingênuo, um tolo, um “besta”? Um sonhador, um louco? Um papa-figo*, devorador de criancinhas? Um perigoso subversivo cujo exemplo já constituía uma ameaça aos “barões assinalados”?
Um dos seus “defeitos” tenho certeza que era do domínio público, porque os amigos mais afoitos me deram conhecimento: meu venerando pai seria “manobrado”por minha mãe, uma mulher pragmática, severa e matriarcal. A bem da verdade, ele não era. Apenas não aceitava as provocações, os convites às escaramuças quotidianas e as “recomendações” de minha mãe. Gostava da paz e da harmonia no seu reino. Evitava o confronto, mas, ao fim e ao cabo, fazia o que achava que devia ser feito.
Como julgá-lo – em qual contexto, sob quais paradigmas?
O ser humano habituou-se ao maniqueísmo e à dualidade. Não há meio-termo, nem ponderações. E geralmente pontificam os princípios e regras consagradas pelo poder dominante. Quando tratava de questões morais com os meus alunos do curso de direito, costumava dizer que a moral decorria dos valores assentes numa determinada sociedade e que estes defluiam dos juízos da classe dominante, mais que o consuetudinário.
Os parâmetros para o julgamento pessoal são fluídicos e mutantes, ao sabor das circunstâncias, conveniências e modulações conjunturais. Ortega Y Gasset sabia disso.
Como se constrói uma reputação? Como se cristaliza uma opinião? Como se formula um conceito pessoal?
Creio que é no terreiro da dialética, não necessariamente no pavimento da lógica. Os argumentos mais vigorosos (ou mais influentes) decidem qual juízo será adotado. Mas, quem desagrada ao conjunto dos formadores de opinião, certamente será desfavorecido na avaliação do seu caráter. As obras que, no meu julgamento pessoal, credenciam o avaliado, só têm serventia para meia dúzia de pessoas conscienciosas e firmes, que não se deixam converter, nem perverter-se.
O meu amigo Franklin Jorge é diferente. Até aí, nada a objetar. Ser diferente é distinto, como diz Arthur da Távola, de querer ser diferente. Num, as diferenças são genéticas, inatas; noutro, são produzidas, artificiais. Vai daí que o querer ser diferente, como a maquiagem, desfaz-se no primeiro mergulho em profundidade.
Franklin, na sua espontaneidade e impulsividade, aqui dadas como virtudes, embora temerárias, cometeu muitos erros de estratégia. Avaliou mal muitos cenários. Bateu de frente com jamantas e escavadeiras na construção do seu espaço. E vem pagando por isso. É que ele é movido a conflitos, só está no seu elemento quando a polêmica se inaugura. É conduta típica dos replicantes e dos combatentes que se sabem miúdos e sozinhos para as pelejas e querem crescer, igualar-se aos adversários-Golias, pela bravura e pela inteligência – pois estes são atributos que lhe sobejam - embora, desafortunadamente, não seja um estrategista, como já ficou registrado. Certamente não o atraiu a leitura do clássico de Sun Tzu, pragmático e intuitivo. Preferiu o racionalismo Maquiavélico.
O meu perfilado não é previsível, nem coerente, nem se deixa aliciar pela maioria dos valores assentes. É um ser de constituição volátil que se orienta segundo a sua própria natureza. Lembro-me de ouvi-lo dizer, certa vez, que ele mesmo era o seu maior e mais rico personagem. Ele se constrói, desconstrói-se e se reconstrói, segundo as circunstâncias e as suas próprias necessidades existenciais. E não se empenha na criação de tipos simpáticos, agradáveis ou amoldáveis ao gosto popular.
Que mal há nisso? Quem não se imagina personagem de seus próprios desvarios, delírios e sonhos, que atire a primeira pedra. Já testemunhei muitas “reencarnações” em vida, de gente que precisava superar suas limitações, erigir-se novo ser para conquistar a sua auto-estima e o respeito alheio. Já observei muitos “travestismos” insustentáveis, no entanto, mantidos em nome das conveniências: clowns aberrantes e outros nem tanto, mas grotescos e impróprios quais bailarinas desgraciosas, altas e gordas, metidas num saiote justo que não resiste a um “pas de deux” ou a um singelo minueto.
Por que não a construção de um personagem verossímil, plausível? Uma persona que expresse com fidedignidade o ego do inconformado? Uma bela máscara do carnaval veneziano ou, se a tal intensidade chegar a patologia do carente, o uso das máscaras rituais do teatro Kabuki japonês.
Não me surpreendo, nem questiono essas transfigurações, porque já recorri a elas, como todo ser mutante ou alguma vez desfigurado, para a minha própria completude. Não serei a mão que apedreja ou acusa. Que cada qual alimente a sua ilusão se isso o faz feliz.
Franklin Jorge tem inteligência muito acima da média provincial. É culto, segundo critérios de mensuração obtidos a partir da média dos muito bem informados. É um argumentador e polemista brilhante. Escreve de modo fluente, dialético, enxuto e limpo. Lê obsessivamente, mais do que escreve, donde silogisticamente se conclui que os seus textos têm alicerce e prumo. É festejado, tido e havido como um singular operador intelectual, além dos estreitos limites do nosso estado.
Quem sou eu, quem somos nós, portanto, para levá-lo à fogueira Inquisitorial? Até mesmo porque ele instituiu o seu próprio “Santo Ofício” – o nome do seu site.
Se essas singularidades o tornam “marginal” (aliás, uma categoria que o agrada, se pautada num contexto intelectual) ou “gauche”, ele, com certeza, encarnará uma das duas proscrições como substanciação do seu desafio.
Como observei no perfil de Manoel Onofre de Souza Júnior (“Um provável Manoel Onofre Júnior”) não se pode julgar seres diferenciados por parâmetros ordinários, comuns, aplicáveis à maioria das pessoas, sobretudo àquelas anônimas que engrossam os rebanhos e servem de antepasto à alcatéia?
Tal como meu pai e o amigo Manoel Onofre, a conduta excepcional reclama novos paradigmas, uma visão descontextualizada do óbvio e do senso comum. Se há um óbice de analistas credenciados para avaliá-los, paciência. Mas que não ponham numa vala comum, heróis e poltrões, gênios e medíocres, revolucionários e conservadores. Há que se particularizar. Há que se separar o joio do trigo, alhos de bugalhos. Lineares de complexos.
E é bobagem concluir-se, como o bovino ou o ruminante o fariam - se pensassem - que melhor é não julgar.
Ninguém se escusa ou é impermeável à formulação de juízos de valor. Quem assim se confessar, é hipócrita. Variável é a metodologia desses juízos: eles são manifestos ou endógenos. Mas ninguém escapa a esse processo, à tentação de alçar-se a Deus, enquanto dure. Creio que essa manifestação é o ponto alto da nossa maturidade intelectual e valioso instrumento de defesa da nossa sobrevivência existencial.
Convivi pouco tempo com Franklin.
Na década de oitenta, fundei e mantive uma editora alternativa, a “Nossa Editora”, que procurou viabilizar a edição de obras de reconhecido valor literário, mas sem apelo comercial e, portanto, sem condições de ser publicada. Criamos um sistema de financiamento em que o autor contribuía com a menor parte, a editora assumia outra parcela do risco e buscaria um patrocinador relacionado com o título publicado. Por exemplo: “A Face oculta de Severo”, revelações inéditas sobre o aeronauta, descritas por seu neto, Augusto Severo, foi parcialmente patrocinada por Paulo de Vasconcelos de Paula, ex-piloto e amante da aviação, à época diretor de Galvão Mesquita.
Pois bem. Certo dia, em meados dos anos oitenta, recebi a visita de Honório de Medeiros, que havia publicado a sua excelente “Investigação parcial acerca da solidão”, na nossa coleção Pretexto. Trazia consigo uma criatura que me parecia familiar. Vestia-se com esmero mas de modo casual, displicente, barba curta e bem tratada, cabelos anelados muito escuros, olhos muito vivos por trás de óculos de grossas lentes, um sorriso indeciso entre a arrogância e a simpatia.
“Esse é Franklin Jorge, de quem certamente você já ouviu falar”. Claro que tinha. Franklin mantinha, já à época, uma coluna no jornal Tribuna do Norte, onde polemizava com os intelectuais da província. Era muito jovem, avaliei naquela oportunidade, para tanta repercussão.
Posso dizer que o “adotei” por empatia. Sempre fui (e permaneço) um intuitivo. Gosto ou não gosto à primeira vista. E se não gostar não haverá uma segunda oportunidade para chegar ao meu bem querer.
Gostei do que “vi” naquele rapaz que julguei controvertido no meu julgamento “fisionomônico”: anjo e demônio habitando o mesmo espaço, em absoluta harmonia. Lembrei-me da reflexão de Saramago, segundo a qual virtudes e pecados teriam a mesma face e a mesma hierarquia. Cada um ocuparia o seu espaço na ausência do outro
Franklin, então, intuí, seria a fúria e a pacificação, segundo as circunstâncias. E já o vi assumindo ambas as faces.
Comigo sempre foi muito correto, excedendo-se nas atenções e favores. Levou-me um livro de Stella Leonardos, para que o editássemos e assim ingressássemos no circuito editorial nacional e ajudou-me na divulgação do meu modesto “O Homem que Assassinava Árvores”, colhendo depoimentos de Ascendino Leite, Nilo Pereira e Jorge Medauar, entre outros.
Integrou o nosso Conselho Editorial, mantendo-se fiel à avaliação isenta de cada livro, segundo o seu valor literário e não a sua simpatia ou antipatia pessoal. Publicou conosco o seu “Jornal de Bolso”, aceitando, a contragosto, a sofrível qualidade gráfica do livro, fruto da pobreza de recursos técnicos da editora.
Tornamo-nos amigos.
Dessa convivência não tenho porque oferecer qualquer reparo à sua conduta, ao contrário, sou grato pela correção, carinho e apoio que sempre recebi dele.
Gosto de gente afirmativa. Vomito, qual o Evangelho, os mornos. Em “Armando Holanda, o recurso extraordinário” afirmei que “Recebo com desconfiança a amizade dos seres gravados apenas pelas virtuosidades, sem defeitos, sem o condimento picante de algumas imperfeições que não os desconstroem, mas os singularizam e dão-lhes a feição humana perceptível, evidente, visível. Ao invés, os muito virtuosos se assemelham à lua ou aos icebergs – mantêm invisível uma das faces, ou a parte mais ofensiva de sua estrutura. Exatamente porque são ilegíveis por nós, míseros mortais, “indecodificáveis”, porque não há um paradigma humano.”
Mantenho o que disse. E estendo a Franklin o que disse sobre Armando.
Franklin é desgraçadamente humano, nas imperfeições e nas virtudes, e até nisso ele se supera, porque ninguém é mais imperfeito e tampouco o excede na virtuosidade. Ele tem o estigma de uma rebeldia com causa que o acompanhará até a morte, malgrado a repressão dos censores e dos oficiais da inquisição.
Ele é Baudelaire e Rimbaud, Wilde/Dorian Gray, Lúcifer e Gabriel, Buda e Padre Cícero, Gide e Campos de Carvalho, Agripino Grieco e Alceu de Amoroso Lima. Herói e bandido. Humano, miseravelmente humano. Talvez essa condição o constranja, porque o vulnerabiliza. Eis porque, vez por outra enquista-se no poder de afirmar-se através das palavras., como mecanismo de defesa prévia ou de resposta contraditória.
Porque conhece, como Carlos Heitor Cony, a arte de falar mal. É elegante, culto, hábil caricaturista e preciso até mesmo quando reduz seus desafetos à menor porção intelectual.
Pinço, ao acaso, um dos seus esboços caricatos em “Um dia em Nascença”, da série “O céu de Ceará-Mirim”, referindo-se a um desafeto: “Prejudica-o um certo boato malvado, segundo o qual, sob o condomínio de suas sebentas axilas, mora uma sociedade de alegres gambás.”
No contexto da mesma crônica, chega ao enlevo e à virtuosidade, à elegância e ao refinamento, numa “boutade” poética: “Marize desce lentamente a encosta em direção ao lago de Nascença, a que se deve certamente o nome deste lugar paradisíaco. Procura um outono, uma margem, uma nave, um ombro. O homem que ela tocar deixará de ser homem. Será flor, trilho, estrada, anjo”. Imagino que trate da notável poeta Marise de Castro, a quem louvo pela notável tessitura poética.
Por essa e outras manifestações literárias aparentemente controvertidas, tenho-o como um performático da palavra escrita, um saltimbanco que conduzisse solilóquios com maestria, que se servisse das palavras com arte e sentimento mas com certo prazer lúdico.
Algumas vezes ele agride aparentemente sem causa. É a unhada desmotivada do gato, só para lembrar que tem garras, não é indefeso.
Lembro-me de algumas “unhadas” e igual número de revisões de conceitos que fez.
Aludindo à qualidade literária um festejado prosador potiguar: “Ele é muito esperto com as palavras”.
No entanto, revendo uma posição visceralmente ofensiva em relação à poética de outro conterrâneo: “A poesia dele tem um timbre hispânico, lembra-me a de Machado”.
A respeito de um pretensioso e laureado “escritor de plaquetes” (sua classificação já o penaliza): “Há nele um vazio tão grande que autoriza qualquer pessoa ocupar o seu lugar, sem por em risco o princípio da lei física. Ele é inexistente intelectualmente”
Depondo sobre outro pretensioso, igualmente superficial: “É um mero leitor de orelhas de livros.”
E vai por aí, distribuindo farpas e beijos.
Passional? Um cigano andaluz, um Otelo atormentado pelo ciúme de Desdêmona, ou o conjunto das Fúrias se fossem xifópagas: Tisífone (Castigo), Megera (Rancor) e Alecto (Interminável).
Arrogante? A postura do toureiro, empunhando apenas as banderillas, diante do touro mais medonho.
Ousado? Um Davi que não avalia a massa física dos Golias e aceita o bom combate.
Vaidoso? Superlativamente!
Mas, nesse mundo literário de louvaminhas e exibições ególatras, quem não o é?
Estou certo de que a maior contribuição de Franklin Jorge à cultura norte-rio-grandense, à parte a sua própria produção literária, foi a inusitada prática sistemática do dissenso. A cultura da oposição – um emergente niilismo. A réplica constante e sistemática rompe a blindagem do conformismo imobilista. Ao menos, a dúvida, como no dizer de Ferreira Gular: “nada vos sovino, com a minha incerteza vos ilumino”.
Quem se insurge contra o establishment, abre as fronteiras da vanguarda, ou, no mínimo, estabelece o pré-questionamento das ideologias assentes. O pensamento moderno se potencializa na liça dialética, nunca no campo do consensualismo. A democracia é fruto do dissenso, ao revés, as doutrinas autoritárias se desenvolvem à sombra do consenso, espontâneo, induzido pela massificação propagandística, ou compulsório, através da ditadura da láurea unanimista.
De mais a mais, o pensamento estandardizado, convergente, unânime, cristaliza-se. Envelhece. Esclerosa-se. Não há meio termo. O passadismo é referência muito importante para a formação de uma ideologia cultural, mas não é o seu vetor, nem diretriz única. Há de se auscultar as tendências, experimentar, antever o futuro para se instaurar o novo, quando menos para sopesar a resistência da ideologia cultural sedimentada.
Por isso fica evidenciada, à simples leitura desse texto, a relevância de Franklin Jorge para a cultura contemporânea do Rio Grande do Norte. Senão, observe-se que a proposta inicial dessa escritura era apenas e tão somente apresentar um esboço (porque tudo que se lhe apresente como definitivo é superado em razão da sua contínua mutação) do nosso perfilado e aceitar a provocação dos seus desafetos, apresentando-o como ele é, de modo isento, singular, sem o alvo do preconceito.
De repente, fui compelido a sair do pessoal para o contextual com o qual ele se confunde. Meu amigo é uma individualidade que se institucionalizou, porque reúne em si mesmo um conjunto de idéias que se Franklinizaram, constituindo uma escola, ou uma tendência.
E não me digam que há exagero ou destemperança nas observações. Ou parcialidade. Ou superestimação. Vali-me da “lógica do razoável”, firmado em “leituras” públicas sobre o perfilado, em fatos e fundamentos, para firmar conclusões. É possível que, de repente, haja-me deparado com algumas “verdades” particulares, mas não foi esse o meu norte.
Ademais, fio-me na sabedoria oriental, que costuma dizer que não se atiram pedras em árvores que não dão frutos.
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Pedro Simões Neto – Professor de Direito aposentado. Escritor. Advogado.
AMÉRICA FUTEBOL CLUBE (complementando a sua história)
Carlos Roberto de Miranda Gomes – Membro do IHGRN e UBE/RN
Graças à generosidade dos amigos Manuel Fagundes e Jairo Procópio, tive acesso aos documentos referentes à compra do terreno onde o América Futebol Clube ergueu a sua sede, pesquisa realizada em 2006.
O propósito dessa tarefa foi decorrente de publicamente constar que dito imóvel da Rodrigues Alves nº 950, bairro do Tirol, naquele tempo considerado como do Quarteirão da Av. Campos Sales, bairro de Cidade Nova, teria sido doação do meu pai, José Gomes da Costa, que foi presidente da agremiação em dois períodos, iniciados, respectivamente, em 08 de abril de 1929 e 10 de maio de 1939, conforme inúmeros artigos e livros sobre o fato e que haveria uma cláusula que impediria a sua alienação, exatamente no período da aquisição do imóvel.
A verdade, no entanto, pode ser atestada pelos documentos legais registrados, que consta ter sido dito terreno adquirido ao Governo do Rio Grande do Norte pela quantia de nove contos de réis, conforme autorização feita pelo Ofício 368, datado de 21 de maio de 1929, expedido pelo Palácio da Presidência, tendo sido objeto de escritura pública lavrada no livro 134, fls. 36 a 38, em 02 de junho daquele ano, no Cartório de Notas do tabelião Miguel Leandro, hoje pertencente ao acervo do 1º Ofício de Notas desta Capital, com a escritura assinada, em nome do América, pelo Tenente Júlio Perouse Pontes, Vice-Presidente, em exercício, e pelo Governo do Estado o Procurador Fiscal do Departamento da Fazenda e do Tesouro Doutor Bellarmino Lemos, objeto da Carta de Aforamento nº 429, da Municipalidade de Natal, medindo uma área de 15.100 m2.
Como testemunhas assinaram Orestes Silva e Omar Lopes Cardoso, perante o escrivão substituto Crispim Leandro, tendo sido efetuado o pagamento em moeda corrente e o Imposto de Transmissão pago em 26 de junho de 1929 ao Dr. Aldo Fernandes, Administrador e Sr. F. Pignataro, Tesoureiro, sendo registrado no Livro “3-C”, de Transcrição das Transmissões, sob o nº 24, fl. 61v. s 62, presentemente do acervo do 3º Ofício de Notas, com o nº de matrícula 828.
Com estes registros, podemos concluir que são verdadeiros os relatos de Luiz G.M. Bezerra, no artigo do jornal “O Potiguar” nº 42 (março/abril/2005) de que o terreno fora adquirido com a ajuda de abnegados como Orestes Silva, José Gomes da Costa e Júlio Perouse Pontes e outros, sendo acrescido o nome de Omar Lopes Cardoso no livro de Everaldo Lopes “Da bola de pito ao apito Final”, p. 40, embora tenha omitido o do meu pai José Gomes da Costa.
O referido jornalista, na página 42 de sua obra, afirma que “o clube nunca promoveu qualquer solenidade destinada a dar nome a sua praça de esportes”. Contudo, devo lembrar que o América homenageou os seus associados como beneméritos e inaugurou duas quadras de tênis, ao lado da sede velha da Rua Maxaranguape, com os nomes de José Gomes da Costa e Orestes Silva, onde hoje está construído um edifício.
Dois esclarecimentos necessários – mesmo não existindo registro de cláusula proibitiva da alienação, a legislação daquele tempo, como acontecia em outros Estados, devia conter determinação de vedação de modificação do objeto do negócio jurídico, uma vez que bens de propriedade pública só poderiam ser alienados com autorização legislativa e para um fim específico, no caso do América, para um fim social. Hoje a situação permanece, mas a alienação só pode acontecer através de concorrência pública. Ainda não localizei tal legislação daquele tempo.
Por derradeiro, o fato da “doação” realmente aconteceu, não por ato cartorário, mas quando os abnegados americanos perdoaram a dívida ao América, destruindo as promissórias que garantiam o dinheiro emprestado para a aquisição do terreno. Vale adiantar, que não existe nos registros pesquisados nenhuma cláusula restritiva à alienação daquele imóvel, como se pensava, daí o fato de parte dele ter sido negociada, outra parte onerada, o que nos leva a interpretar como ‘um triste fim!’
Escrito por Carlos Gomes às 15h49
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“AGORA LÁBIOS MEUS DIZEI E ANUNCIAI”
INÁCIO MAGALHÃES DE SENA
Agora, lábios meus, / dizei e anunciai
os grandes louvores / da Virgem, Mãe de Deus.
Sede em meu favor, / Virgem soberana;
livrai-me do inimigo / com o vosso valor.
(Ofício da Imaculada Coceição)
Minha memória urbana do Ceará-Mirim dos anos cinqüenta limitava-se ao lá-em-cima e ao lá-embaixo. A cidade tomara as encostas de uma elevação que deve ter conhecido o seu momento de glória, antes que os fundadores da cidade a ocupassem. Mas à época era uma gangorra com algumas plataformas para descanso.
Vivíamos literalmente pendurados. As nossas casas, mesmo aterradas e aprumadas, eram equilibristas num plano inclinado. Toda vez que recorríamos à porta de entrada, a ladeira nos apresentava o instável equilíbrio da nossa engenharia.
Da Rua Grande até a praça do mercado, as ruas que apontavam para Várzea de Dentro e Capela, eram planas. Cortavam transversalmente a subida para o Patu e adjacências. Era como um descanso, uma pausa para o fôlego.
Na minha imaginação esse fato deve ter contribuído para a índole cultural do cearamirinense. Tanto que, quando perguntado para onde ia, o itinerante respondia invariavelmente: vou subir (ou descer) – nunca dizia o seu destino real. E também por isso, o andar dos nativos traía uma certa cautela, situando-se entre o esforçado e o cuidadoso.
E as casas se assemelhavam a navios num mar onduloso.
Identificávamos quem não era da cidade, porque estes andavam como escravos alforriados ou gente acanalhada, sem peias, livres das correntes, pernas abertas, debochados.
Até hoje guardo essa característica andarilha. Quando fui estudar no Marista meus colegas me diziam que eu andava como se estivesse “com medo de peido”.
Hoje, a cidade, que nem uma ave, aninhou-se no planalto. Esticou as asas no sentido da antiga mata da usina e da “terra da santa”. Os cristãos-novos, habitantes do Ceará-Mirim do altiplano, são mais afoitos e incorporaram aos pés uma “galocha” motorizada – o automóvel. Mas os antigos ainda conservam a mesma andadura.
Talvez o lá-em-cima e o correspondente lá-embaixo da época referida tenha marcado a minha geração como uma fatalidade, porque não havia alternativa senão caminhar, vencer a distância e o esforço com os próprios pés. Não fossem os caminhões das usinas, proibidos de dar carona na cidade (mas liberados para o transporte de passageiros no trajeto de volta), um ou outro caminhão, sempre comprometido com o transporte de cargas – o “misto” de Fernando Farias, na rota de Coqueiros, o caminhão de Chico Horácio e sua buzina de oito baixos, os velhos caminhões de Luiz Murat, para transporte de cal, de José Paiva e de José Mendes – restavam as camionetas de Manoel Pereira, Herbert Dantas (Betinho), José Bonifácio, Valdemar de Sá e Euclides Cavalcanti, o “land rover” de Vital Correia, e os jipes das usinas, que eu me lembre.
Por isso, o trabalho dos vendedores e feirantes era tão penoso.
José Soares, conhecido como “Zé Gago”, emérito saxofonista e orador do Náutico Esporte Clube, durante o dia conduzia o seu carrinho de sorvetes, anunciando o produto com aquele fon-fon das antigas buzinas de bicicletas; os vendedores de mugunzá (chá de burro), arroz doce, geléia com coco, cavaco chinês (anunciado com um triângulo usado nos grupos de baião), algodão doce, cocada, além do peso, andavam com maior cautela, um olho no conteúdo para não derrubá-lo, outro no possível freguês.
E os pregoeiros das feiras sabatinas e domingueiras?
A cantilena era entrecortada pelo esforço do trajeto lá-em-cima da feira, mas ainda assim animada. Roufenhos, uns que outros, esganiçados alguns. As mulheres se superavam, como estivessem numa disputa pela voz mais gritada. Essas nem se importavam com o peso dos taboleiros nas cabeças, sua atenção concentrava-se na potência da voz. (Mais impressionante que o pregão delas, só os gritos modulados pela língua das mulheres bérberes)
Quem não estava nem aí para o sobe-e-desce eram os orgulhosos proprietários dos carros de rolimãs, meninos grandes de calças curtas . Valia a pena descer embalado que nem o “cachorro da molesta”, mesmo pagando o preço da subida pesada.
Os mais afortunados, cavaleiros garbosos que nem Chico Campos e João Neto, (meus centauros redivivos), e os teimosos donos de burros, riam à toa. Embora os patriarcas cearamirinenses gostassem de ir a pés “fazer a feira”, orgulhosos, com cestas à mão. Essa era tarefa de homem. Era a oportunidade de disputar com as mulheres no que elas eram mestras – na arte de pechinchar.
Bicicleta só era usada por raríssimos heróis ou por quem transitava pelas planuras.
Até pedalar o velocípede era cansativo, mesmo para uma criança cheia de energia. Salvo se morasse numa das ruas de descanso, já referidas. Que nem eu, que morava em frente ao cinema de Jorge Moura, na então rua Pedro Correia, onde também moravam Chicó Pereira e Dona Alzira, Doutor Canindé Cavalcanti, Batu de Sá, Chico Leopoldino e onde ficava a “venda” de Chico Dantas. Era uma calçada só, de lá-de-casa até a casa de Jorge Moura.
É nesse ponto que particularizo um vendedor de confeitos, condutor de um tabuleiro pesado de madeira, sustentado aos ombros por uma tira de couro, que encantou a minha infância. Nós o chamávamos de “Melo” e não o conhecíamos por outro nome. Mais que um “baleiro” era uma criatura mágica, um ilusionista, um performático, para usar a linguagem moderna. Um ator consumado que encarnava com perfeição os personagens que caracterizava.
Eu o via sempre diante do cinema de Jorge Moura, nos dias de sessão, ou nas tardes preguiçosas do estio, sentado nos batentes da igreja de Nossa Senhora da Conceição. Mas tinha notícia de que era “deus”, isto é, estava em toda parte, ofertando as suas guloseimas.
Era apaixonado por cinema, sobretudo pelos filmes de aventura – os seriados, principalmente. Assistia às projeções com muita atenção e às vezes ficava tão concentrado que nem percebia a rapinagem dos seus confeitos pelos acanalhados freqüentadores da “geral”.
Participava também das trocas de “Gibis” em frente ao cinema.
E assimilava os personagens, para no dia seguinte oferecer a sua interpretação. Fascinava-me a sua performance dos árabes, engrolando a voz em sons guturais que lembravam a algaravia dos muezins muçulmanos.
Lembro-me que não poupava o velho Kalil, a quem chamava de “turco”, imitando-lhe o sotaque e relatando passagens cômicas do imigrante, como o célebre episódio da viagem no “misto” para Natal, quando pedira aflito ao motorista: “Pára, pára camiona gue Kalila gué cag...”
Alto e magro, andava com calças e camisas folgadas e alpercatas – uma espécie de sandália de couro com tiras que a prendiam ao tornozelo e cobriam o peito do pé. Geralmente tinham o solado feito da borracha do pneu de carro,
Era uma figura singular: cabelos alourados e ralos, boca funda, nariz proeminente, a pele com marcas de bexiga e precocemente enrugada e uma maneira de falar que parecia “soprar” as palavras. Era rápido nas respostas e nas contra-ofensivas. Como era rico o seu imaginário, atingia o agressor no ponto mais vulnerável e do modo mais ferino e irrespondível. Era também um implacável “botador” de apelidos e um pilheriador, desses que tiram os inoportunos do sério.
Constava-me que era um excelente filho e ótimo irmão. Um “arrimo de família” que se esforçava para ajudar no sustento da casa. Descendia de uma ilustre linhagem que se arruinara financeiramente.
(Nos anos oitenta, fui visitá-lo em sua casa, na Cidade da Esperança, e me deparei com o seu minúsculo quarto repleto de livros apanhados no “sebo”. Disse-me que não mais os guardaria. Á medida em que fossem lidos, seriam doados. Mas, surpreendeu-me o fato de que dispusesse apenas de um único cômodo. Todo o resto da casa era serventia de seu irmão “Beto”, portador de uma patologia crônica).
Era devoto de Nossa Senhora da Conceição, não um simples devoto, mas um prosélito, um fiel, alguém que converte o dogma em uma prática, um hábito, que humaniza o divino para tê-lo mais perto de si. Nossa Senhora era como uma madrinha protetora que o protegia, pacificava e lhe dava esperança.
Meus pais, sobretudo o meu pai, o tinha como modelo de dedicação familiar e de inteligência. Se não mantive com ele uma relação de amizade mais estreita nessa época, é porque nos separava a diferença de idade. Ele deveria ter pelo menos seis anos a mais que eu. Quando o conheci era um menino de calças curtas e ele um adolescente maturado pelas responsabilidades.
Encontramo-nos muitos e muitos anos depois em Natal. Era funcionário dos Correios e conhecido pelo verdadeiro nome: Inácio Magalhães de Sena.
Então, tornara-se um ícone da cultura autodidata. Leitor compulsivo, adquirira fama de erudição e de crítico mordaz dos maus costumes e das más leituras.
Quando assumi a Pró-Reitoria de Extensão da UFRN, um grupo de amigos comuns me procurou para que pleiteasse do Reitor Diógenes da Cunha Lima o encaminhamento e as gestões junto aos Conselhos Superiores da Universidade, para que fosse reconhecido e declarado o “notório saber” de Inácio, e assim ele pudesse ser contratado como professor da instituição.
Lembro-me de Vicente Serejo, João Batista e Doutor Chiquinho, como líderes do movimento. Na oportunidade do encontro, a ilustre comitiva me presenteou com um excelente livro de Aldous Huxley, “A eminência parda”. Na dedicatória, havia uma insinuação de que haveria traços comuns entre o personagem-título e eu. Não entendi a semelhança até hoje, embora tenha a obra como texto recorrente e preito de gratidão desses amigos.
Engajei-me, pela justeza do pedido e por razões afetivas. Mas o pleito foi vencido pelo formalismo acadêmico vigente.
Depois, publiquei de sua lavra um delicioso livro: “Agora lábios meus dizei e anunciai”, com ilustrações de Iaperí Araújo. Quem mais poderia ilustrar o livro de Inácio senão o barroco-armorial-sertanejo Iaperí Araújo, o intérprete imagético das bestas-feras, do fabulário e do mítico nordestino? O lançamento foi um sucesso.
Perdemo-nos no turbilhão da vida, cada qual voltado para a sua Meca. Voltei a ter notícia dele através da minha irmã, Joventina que me transmitiu um seu recado: que eu mudasse o título do meu livro de memórias, provisoriamente intitulado “Memórias de um menino sem eira nem beira” sob argumento de que o título não condizia com o real – que eu , de fato, teria eira e beira. Mudei o título para “De quando tudo era azul”.
Inácio alforriou-se do sobe-e-desce da sua terra. Andou pela Oropa, França e Bahia, publicou mais um livro, o excelente “Memórias quase líricas de um ex-vendedor de cavaco- chinês”, continua pontificando no seu círculo intelectual e permanece com o brilho que sempre teve. Malgrado as minhas necessidades existenciais, ainda estou subindo e descendo as ladeiras da vida, com o mesmo andar “com medo de peido”.
Mas alenta-me poder declarar a minha amizade, intocada pelo distanciamento, e o meu orgulho em tê-lo como referência.
Vejo um quase Quasímodo projetado no meu amigo. Um que tenha sido adaptado por Zé Limeira para um auto de devoção a Nossa Senhora inspirado nele. A ternura e a devoção por trás do invólucro tosco, mas não disforme. A bondade natural, espontânea, que não simplória. A cigana Esmeralda, reinventada, transfigurada em Nossa Senhora. O fascínio pelas catedrais. O recurso ao pátio dos milagres que o converteu numa transcendência inimaginável.
Um anjo-torto numa imagem barroca de pedra-sabão, porque, acima e além de qualquer classificação, ele é barroco. Um fora-de-época, não à frente do seu tempo, mas de mui remota e prisca era. Deslocado.
Se tivesse vivido ao tempo de Aleijadinho, sem sombra de dúvida o notável escultor o teria convidado para posar para a série de profetas. Ás vezes, quando olho para o meu amigo, vejo-o vestido com a túnica dos profetas hebreus, o chapéu ritual, as barbas enormes, como as imagens do artista mineiro e concluo que é esta a sua origem e este poderia ser o seu destino, se Deus o quisesse feliz, se ele não tivesse que continuar o seu aprendizado no sofrimento para destituir-se das impurezas humanas e ingressar pela porta da frente, puro e redimido, no Reino de Deus.
É tão verdadeiro o seu “carma”, que lhe foi cumulativamente roubado e negado os seus mais preciosos projetos de realizações pessoais: o prolongamento da vida da sua mãe e o ofício religioso. Mas, longe de se tornar um renegado ou um ímpio, voltou-se para a sua fé e se resignou com as decisões divinas, embora irresignado com a ordem das coisas temporais.
Poderia ser um beato sertanejo, mariano, aguerrido e ousado; um cavaleiro da Ordem de Cristo, templário, ou um escriba de monastério, mas sempre seria Inácio, uma individualidade indivisível, íntegra, que perdura há encarnações sucessivas. Transcendente.
_____________________________________________________________________________
Pedro Simões Neto – Professor de Direito aposentado, Escritor e Advogado.
Bilhete de Bartolomeu Correia de Melo
Pedro:
Esse texto confirma, ao meu sentir, seus maiores dons literários – os mesmos de Proust,
Pedro Nava e Madalena Antunes: o sensível memorialista, o rico traçador de perfis e,
ainda mais, seu quase enrustido lado poético, faceta generosa, meio inusitada,
instigando bons pensares, semeando bons sonhares. Havendo partilhado
do mesmo tempo e lugar desses contares, gozo a gratissima sintonia de tais qualidades
evoladas dos seus escritos. Por vezes, não nego, tanto me ferem as saudades
que a vontade de chorar vence a de voltar.
Ninguém faria ao nosso Inácio maior preito nem melhor canção.
Bartolomeu
Escrito por Carlos Gomes às 09h55
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*********************************************************************************
04/06/2010
JURACY *
Adelle de Oliveira
Há nos teus olhos de infinita graça
Todo um poema de ideal candura,
Esse enleio sutil da criatura
Que abre as asas ao sonho e alto esvoaça.
Neles tu’alma docemente passa,
Embalada de leve, à tona escura
Quantas vezes emerge da ternura,
Ou à névoa do pranto se adelgaça.
Grandes, formosos, negros, sonhadores,
Teus olhos tanto brilham de esperança
Como se ofuscam à menor das dores.
É que em tu’alma plena de inocência,
Notam-se ainda anelos de criança
No esplendor lirial da adolescência.
*JURACY, sobrinha da poeta Adelle de Oliveira, nasceu em Ceará – Mirim no dia 02 de junho de 1908 e faleceu em Natal em 05 de junho de 1983. Foi casada com o médico José Tavares da Silva e mãe de Ciro José Tavares. Quem a conheceu jamais esquecerá.
(gentileza de CIRO TAVARES, poeta e advogado residente em Basília-DF)
INÁCIO MAGALHÃES DE SENA
Agora, lábios meus, / dizei e anunciai
os grandes louvores / da Virgem, Mãe de Deus.
Sede em meu favor, / Virgem soberana;
livrai-me do inimigo / com o vosso valor.
(Ofício da Imaculada Coceição)
Minha memória urbana do Ceará-Mirim dos anos cinqüenta limitava-se ao lá-em-cima e ao lá-embaixo. A cidade tomara as encostas de uma elevação que deve ter conhecido o seu momento de glória, antes que os fundadores da cidade a ocupassem. Mas à época era uma gangorra com algumas plataformas para descanso.
Vivíamos literalmente pendurados. As nossas casas, mesmo aterradas e aprumadas, eram equilibristas num plano inclinado. Toda vez que recorríamos à porta de entrada, a ladeira nos apresentava o instável equilíbrio da nossa engenharia.
Da Rua Grande até a praça do mercado, as ruas que apontavam para Várzea de Dentro e Capela, eram planas. Cortavam transversalmente a subida para o Patu e adjacências. Era como um descanso, uma pausa para o fôlego.
Na minha imaginação esse fato deve ter contribuído para a índole cultural do cearamirinense. Tanto que, quando perguntado para onde ia, o itinerante respondia invariavelmente: vou subir (ou descer) – nunca dizia o seu destino real. E também por isso, o andar dos nativos traía uma certa cautela, situando-se entre o esforçado e o cuidadoso.
E as casas se assemelhavam a navios num mar onduloso.
Identificávamos quem não era da cidade, porque estes andavam como escravos alforriados ou gente acanalhada, sem peias, livres das correntes, pernas abertas, debochados.
Até hoje guardo essa característica andarilha. Quando fui estudar no Marista meus colegas me diziam que eu andava como se estivesse “com medo de peido”.
Hoje, a cidade, que nem uma ave, aninhou-se no planalto. Esticou as asas no sentido da antiga mata da usina e da “terra da santa”. Os cristãos-novos, habitantes do Ceará-Mirim do altiplano, são mais afoitos e incorporaram aos pés uma “galocha” motorizada – o automóvel. Mas os antigos ainda conservam a mesma andadura.
Talvez o lá-em-cima e o correspondente lá-embaixo da época referida tenha marcado a minha geração como uma fatalidade, porque não havia alternativa senão caminhar, vencer a distância e o esforço com os próprios pés. Não fossem os caminhões das usinas, proibidos de dar carona na cidade (mas liberados para o transporte de passageiros no trajeto de volta), um ou outro caminhão, sempre comprometido com o transporte de cargas – o “misto” de Fernando Farias, na rota de Coqueiros, o caminhão de Chico Horácio e sua buzina de oito baixos, os velhos caminhões de Luiz Murat, para transporte de cal, de José Paiva e de José Mendes – restavam as camionetas de Manoel Pereira, Herbert Dantas (Betinho), José Bonifácio, Valdemar de Sá e Euclides Cavalcanti, o “land rover” de Vital Correia, e os jipes das usinas, que eu me lembre.
Por isso, o trabalho dos vendedores e feirantes era tão penoso.
José Soares, conhecido como “Zé Gago”, emérito saxofonista e orador do Náutico Esporte Clube, durante o dia conduzia o seu carrinho de sorvetes, anunciando o produto com aquele fon-fon das antigas buzinas de bicicletas; os vendedores de mugunzá (chá de burro), arroz doce, geléia com coco, cavaco chinês (anunciado com um triângulo usado nos grupos de baião), algodão doce, cocada, além do peso, andavam com maior cautela, um olho no conteúdo para não derrubá-lo, outro no possível freguês.
E os pregoeiros das feiras sabatinas e domingueiras?
A cantilena era entrecortada pelo esforço do trajeto lá-em-cima da feira, mas ainda assim animada. Roufenhos, uns que outros, esganiçados alguns. As mulheres se superavam, como estivessem numa disputa pela voz mais gritada. Essas nem se importavam com o peso dos taboleiros nas cabeças, sua atenção concentrava-se na potência da voz. (Mais impressionante que o pregão delas, só os gritos modulados pela língua das mulheres bérberes)
Quem não estava nem aí para o sobe-e-desce eram os orgulhosos proprietários dos carros de rolimãs, meninos grandes de calças curtas . Valia a pena descer embalado que nem o “cachorro da molesta”, mesmo pagando o preço da subida pesada.
Os mais afortunados, cavaleiros garbosos que nem Chico Campos e João Neto, (meus centauros redivivos), e os teimosos donos de burros, riam à toa. Embora os patriarcas cearamirinenses gostassem de ir a pés “fazer a feira”, orgulhosos, com cestas à mão. Essa era tarefa de homem. Era a oportunidade de disputar com as mulheres no que elas eram mestras – na arte de pechinchar.
Bicicleta só era usada por raríssimos heróis ou por quem transitava pelas planuras.
Até pedalar o velocípede era cansativo, mesmo para uma criança cheia de energia. Salvo se morasse numa das ruas de descanso, já referidas. Que nem eu, que morava em frente ao cinema de Jorge Moura, na então rua Pedro Correia, onde também moravam Chicó Pereira e Dona Alzira, Doutor Canindé Cavalcanti, Batu de Sá, Chico Leopoldino e onde ficava a “venda” de Chico Dantas. Era uma calçada só, de lá-de-casa até a casa de Jorge Moura.
É nesse ponto que particularizo um vendedor de confeitos, condutor de um tabuleiro pesado de madeira, sustentado aos ombros por uma tira de couro, que encantou a minha infância. Nós o chamávamos de “Melo” e não o conhecíamos por outro nome. Mais que um “baleiro” era uma criatura mágica, um ilusionista, um performático, para usar a linguagem moderna. Um ator consumado que encarnava com perfeição os personagens que caracterizava.
Eu o via sempre diante do cinema de Jorge Moura, nos dias de sessão, ou nas tardes preguiçosas do estio, sentado nos batentes da igreja de Nossa Senhora da Conceição. Mas tinha notícia de que era “deus”, isto é, estava em toda parte, ofertando as suas guloseimas.
Era apaixonado por cinema, sobretudo pelos filmes de aventura – os seriados, principalmente. Assistia às projeções com muita atenção e às vezes ficava tão concentrado que nem percebia a rapinagem dos seus confeitos pelos acanalhados freqüentadores da “geral”.
Participava também das trocas de “Gibis” em frente ao cinema.
E assimilava os personagens, para no dia seguinte oferecer a sua interpretação. Fascinava-me a sua performance dos árabes, engrolando a voz em sons guturais que lembravam a algaravia dos muezins muçulmanos.
Lembro-me que não poupava o velho Kalil, a quem chamava de “turco”, imitando-lhe o sotaque e relatando passagens cômicas do imigrante, como o célebre episódio da viagem no “misto” para Natal, quando pedira aflito ao motorista: “Pára, pára camiona gue Kalila gué cag...”
Alto e magro, andava com calças e camisas folgadas e alpercatas – uma espécie de sandália de couro com tiras que a prendiam ao tornozelo e cobriam o peito do pé. Geralmente tinham o solado feito da borracha do pneu de carro,
Era uma figura singular: cabelos alourados e ralos, boca funda, nariz proeminente, a pele com marcas de bexiga e precocemente enrugada e uma maneira de falar que parecia “soprar” as palavras. Era rápido nas respostas e nas contra-ofensivas. Como era rico o seu imaginário, atingia o agressor no ponto mais vulnerável e do modo mais ferino e irrespondível. Era também um implacável “botador” de apelidos e um pilheriador, desses que tiram os inoportunos do sério.
Constava-me que era um excelente filho e ótimo irmão. Um “arrimo de família” que se esforçava para ajudar no sustento da casa. Descendia de uma ilustre linhagem que se arruinara financeiramente.
(Nos anos oitenta, fui visitá-lo em sua casa, na Cidade da Esperança, e me deparei com o seu minúsculo quarto repleto de livros apanhados no “sebo”. Disse-me que não mais os guardaria. Á medida em que fossem lidos, seriam doados. Mas, surpreendeu-me o fato de que dispusesse apenas de um único cômodo. Todo o resto da casa era serventia de seu irmão “Beto”, portador de uma patologia crônica).
Era devoto de Nossa Senhora da Conceição, não um simples devoto, mas um prosélito, um fiel, alguém que converte o dogma em uma prática, um hábito, que humaniza o divino para tê-lo mais perto de si. Nossa Senhora era como uma madrinha protetora que o protegia, pacificava e lhe dava esperança.
Meus pais, sobretudo o meu pai, o tinha como modelo de dedicação familiar e de inteligência. Se não mantive com ele uma relação de amizade mais estreita nessa época, é porque nos separava a diferença de idade. Ele deveria ter pelo menos seis anos a mais que eu. Quando o conheci era um menino de calças curtas e ele um adolescente maturado pelas responsabilidades.
Encontramo-nos muitos e muitos anos depois em Natal. Era funcionário dos Correios e conhecido pelo verdadeiro nome: Inácio Magalhães de Sena.
Então, tornara-se um ícone da cultura autodidata. Leitor compulsivo, adquirira fama de erudição e de crítico mordaz dos maus costumes e das más leituras.
Quando assumi a Pró-Reitoria de Extensão da UFRN, um grupo de amigos comuns me procurou para que pleiteasse do Reitor Diógenes da Cunha Lima o encaminhamento e as gestões junto aos Conselhos Superiores da Universidade, para que fosse reconhecido e declarado o “notório saber” de Inácio, e assim ele pudesse ser contratado como professor da instituição.
Lembro-me de Vicente Serejo, João Batista e Doutor Chiquinho, como líderes do movimento. Na oportunidade do encontro, a ilustre comitiva me presenteou com um excelente livro de Aldous Huxley, “A eminência parda”. Na dedicatória, havia uma insinuação de que haveria traços comuns entre o personagem-título e eu. Não entendi a semelhança até hoje, embora tenha a obra como texto recorrente e preito de gratidão desses amigos.
Engajei-me, pela justeza do pedido e por razões afetivas. Mas o pleito foi vencido pelo formalismo acadêmico vigente.
Depois, publiquei de sua lavra um delicioso livro: “Agora lábios meus dizei e anunciai”, com ilustrações de Iaperí Araújo. Quem mais poderia ilustrar o livro de Inácio senão o barroco-armorial-sertanejo Iaperí Araújo, o intérprete imagético das bestas-feras, do fabulário e do mítico nordestino? O lançamento foi um sucesso.
Perdemo-nos no turbilhão da vida, cada qual voltado para a sua Meca. Voltei a ter notícia dele através da minha irmã, Joventina que me transmitiu um seu recado: que eu mudasse o título do meu livro de memórias, provisoriamente intitulado “Memórias de um menino sem eira nem beira” sob argumento de que o título não condizia com o real – que eu , de fato, teria eira e beira. Mudei o título para “De quando tudo era azul”.
Inácio alforriou-se do sobe-e-desce da sua terra. Andou pela Oropa, França e Bahia, publicou mais um livro, o excelente “Memórias quase líricas de um ex-vendedor de cavaco- chinês”, continua pontificando no seu círculo intelectual e permanece com o brilho que sempre teve. Malgrado as minhas necessidades existenciais, ainda estou subindo e descendo as ladeiras da vida, com o mesmo andar “com medo de peido”.
Mas alenta-me poder declarar a minha amizade, intocada pelo distanciamento, e o meu orgulho em tê-lo como referência.
Vejo um quase Quasímodo projetado no meu amigo. Um que tenha sido adaptado por Zé Limeira para um auto de devoção a Nossa Senhora inspirado nele. A ternura e a devoção por trás do invólucro tosco, mas não disforme. A bondade natural, espontânea, que não simplória. A cigana Esmeralda, reinventada, transfigurada em Nossa Senhora. O fascínio pelas catedrais. O recurso ao pátio dos milagres que o converteu numa transcendência inimaginável.
Um anjo-torto numa imagem barroca de pedra-sabão, porque, acima e além de qualquer classificação, ele é barroco. Um fora-de-época, não à frente do seu tempo, mas de mui remota e prisca era. Deslocado.
Se tivesse vivido ao tempo de Aleijadinho, sem sombra de dúvida o notável escultor o teria convidado para posar para a série de profetas. Ás vezes, quando olho para o meu amigo, vejo-o vestido com a túnica dos profetas hebreus, o chapéu ritual, as barbas enormes, como as imagens do artista mineiro e concluo que é esta a sua origem e este poderia ser o seu destino, se Deus o quisesse feliz, se ele não tivesse que continuar o seu aprendizado no sofrimento para destituir-se das impurezas humanas e ingressar pela porta da frente, puro e redimido, no Reino de Deus.
É tão verdadeiro o seu “carma”, que lhe foi cumulativamente roubado e negado os seus mais preciosos projetos de realizações pessoais: o prolongamento da vida da sua mãe e o ofício religioso. Mas, longe de se tornar um renegado ou um ímpio, voltou-se para a sua fé e se resignou com as decisões divinas, embora irresignado com a ordem das coisas temporais.
Poderia ser um beato sertanejo, mariano, aguerrido e ousado; um cavaleiro da Ordem de Cristo, templário, ou um escriba de monastério, mas sempre seria Inácio, uma individualidade indivisível, íntegra, que perdura há encarnações sucessivas. Transcendente.
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Pedro Simões Neto – Professor de Direito aposentado, Escritor e Advogado.
Bilhete de Bartolomeu Correia de Melo
Pedro:
Esse texto confirma, ao meu sentir, seus maiores dons literários – os mesmos de Proust,
Pedro Nava e Madalena Antunes: o sensível memorialista, o rico traçador de perfis e,
ainda mais, seu quase enrustido lado poético, faceta generosa, meio inusitada,
instigando bons pensares, semeando bons sonhares. Havendo partilhado
do mesmo tempo e lugar desses contares, gozo a gratissima sintonia de tais qualidades
evoladas dos seus escritos. Por vezes, não nego, tanto me ferem as saudades
que a vontade de chorar vence a de voltar.
Ninguém faria ao nosso Inácio maior preito nem melhor canção.
Bartolomeu
Escrito por Carlos Gomes às 09h55
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04/06/2010
JURACY *
Adelle de Oliveira
Há nos teus olhos de infinita graça
Todo um poema de ideal candura,
Esse enleio sutil da criatura
Que abre as asas ao sonho e alto esvoaça.
Neles tu’alma docemente passa,
Embalada de leve, à tona escura
Quantas vezes emerge da ternura,
Ou à névoa do pranto se adelgaça.
Grandes, formosos, negros, sonhadores,
Teus olhos tanto brilham de esperança
Como se ofuscam à menor das dores.
É que em tu’alma plena de inocência,
Notam-se ainda anelos de criança
No esplendor lirial da adolescência.
*JURACY, sobrinha da poeta Adelle de Oliveira, nasceu em Ceará – Mirim no dia 02 de junho de 1908 e faleceu em Natal em 05 de junho de 1983. Foi casada com o médico José Tavares da Silva e mãe de Ciro José Tavares. Quem a conheceu jamais esquecerá.
(gentileza de CIRO TAVARES, poeta e advogado residente em Basília-DF)
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