Significado religioso-bíblico
das cinzas
Padre João
Medeiros Filho
O ato da imposição de cinzas
remonta ao Antigo Testamento. O livro de Ester narra Mardoqueu vestindo-se com
pano de saco e cobrindo-se de cinzas, ao saber do decreto de Assuero (Xerxes I,
da Pérsia), condenando à morte os judeus ali residentes (cf. Est 4,1). Atitude
semelhante teve Jó, demonstrando o seu arrependimento (Jó 42, 6). Daniel, ao
profetizar a tomada de Jerusalém pela Babilônia, escreveu: “Voltei o olhar para o Senhor Deus,
procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e
coberto de cinzas.” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, o povo de Nínive
se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e
sentou-se sobre elas (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram a prática religiosa
do uso das cinzas como símbolo de arrependimento, tristeza, penitência,
conversão e dor. Cristo aludiu igualmente a esse costume, quando se dirigiu aos
habitantes das cidades de Corazim e Betsaida que não se arrependiam de seus
pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido
realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado
arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas”, advertiu o
Mestre. (Mt 11, 21).
A Igreja, desde os primórdios,
continuou este ritual com um simbolismo análogo. Tertuliano aconselhava o
pecador a “vestir-se com um tecido de
estopa e cobrir-se de borralho.” Eusébio, primeiro historiador da Igreja,
relata que Natálio se apresentou com esses trajes, diante do Papa Zeferino,
para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía
do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para significar que o “velho homem” tinha sido destruído, dando
lugar ao “novo homem” (Ef 4, 24), do
qual fala o apóstolo Paulo.
Por volta do século VIII, as
pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido
rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e nele te
hás de tornar.” (Gn 3, 19). Este
rito foi tomando uma nova dimensão místico-espiritual e passou a significar
morte ao pecado, em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça,
inveja, ódio, violência, insensibilidade etc. Assim, com o passar dos anos, tal
costume foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o
velho homem existente em nós para ressurgir com Cristo, na Páscoa.
Na liturgia atual, as cinzas utilizadas na
quarta-feira são obtidas com a queima de sobra das palmas bentas no Domingo de
Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo:
“Lembra-te que és pó e nele te hás de
tornar”, ou então, com outra fórmula: “Converte-te
e crê no Evangelho.” (Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação
para a Páscoa pela vivência da quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de
tudo o que nos aniquila em nossa caminhada de fé e amor.
Aceitando tal ritual, expressamos
duas realidades fundamentais: a consciência de que somos criaturas efêmeras e
nossa fé na ressurreição. Cristo ressuscitou dos mortos, prometendo-nos que
também ressuscitaremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que
renasce das cinzas. Isto lembra-nos que delas também nós podemos surgir, como
criaturas novas, pela graça inefável de Deus. Elas simbolizam mudança radical,
na medida em que representam aniquilamento ou destruição. Por essa razão, somos
chamados a nos converter ao Evangelho de Jesus Cristo, mudando nossa maneira de
pensar, julgar e agir, libertando-nos da arrogância, do egoísmo e de tudo
aquilo que nos afasta de Deus. A palavra marcante com que se abre a celebração
da quaresma – a qual se inicia na quarta-feira, após o carnaval – é conversão.
O termo, de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação
da mente e do espírito. Foi isto o que Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele
indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser, pensar e viver. O apóstolo
Paulo, de forma inspirada, o chama de
“novo Adão”, qual seja, uma nova humanidade (Rm 5, 12-21).