quarta-feira, 8 de junho de 2022

 

PÁGINAS DA VIDA

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Na política, não temos mais líderes como antigamente: os neófitos já saúdam os náufragos que irão morrer amanhã. A paisagem é deserta. As instituições se burocratizaram em blocos de ferro e cimento armado. Não têm mais lume nem leme. “Igrejinhas” tão somente. Não sei se há esperança. Não sei de há salvação. As únicas ameaças à ordem constituída continuam a ser a Covid, a dengue, a zica, a chikungunya e a varíola do macaco. Muitos acreditam que é o maior desafio ainda não enfrentado pelo Ministério Público. Por outro lado, Natal a cada dia, fica mais insuportável com a quantidade de veículos de motos. Principalmente aquelas que cortam o seu carro pela direita. Mas, assim caminham as capitais, as metrópoles para o futuro enganoso oferecido pelas imobiliárias. O ensino público e privado mercadejou-se tanto quanto o turismo sexual. Perdeu a qualidade. E viva a quantidade.

O homem social hoje virou ambiguidade ficcional. Previna-se o leitor: não confundir amizade social com solidariedade humana. São manifestações caracterológicas do vivente completamente heterogêneas. O egoísmo, a acomodação, modificadas pelo tom da luz reinante destruíram o sentimento cristão do mundo. O homem cresce, vive e morre numa jaula, limitado às imposições de sua vida miúda, repleta de frustrações e às circunstâncias. Há pessoas que pensam que não vão morrer nunca. Principalmente os que são ricos ou que, pelo menos, pensam. Assim imaginam muitos empresários, políticos, socialites, juristas e outros nomes, renomes e pronomes suspeitos. Fenelon já dizia “que ninguém dê crença a felicidade presente. Há nela uma gota da baba de Caim”. As fortunas inexplicáveis de alguns, da noite para o dia, cabem no raciocínio do pensador francês. Essa categoria de novos ricos torna-se perfeita, apenas, na ruindade e nem na morte é solidária.    

Às vezes, diante do infortúnio alheio, ancoram suas amarras no mais profundo silêncio e na mais abominável indiferença. A postura ante o mundo é de desamparo e desalento. Não há lógica própria nessa conduta centrada unicamente na anormalidade do desvio comportamental porque a amizade virou interesse, esbulho, vantagem, lucro. Lembro a minha mãe, que algumas vezes rebatia a solidão centenária com uma frase humilde, sábia e confortadora: “meu filho, se eu fosse uma pessoa rica a minha casa estaria repleta de visitas”. A humildade e a caridade cristã teriam sido substituídas pelo messianismo dos “pobres de espírito”? Seria ataraxia, morbidez ou equívoco trágico imaginar que ninguém seu morrerá nunca? Mas a vida é um labirinto movida por difusa fluidez temporal, constituída de fases e de fezes (no sentido consumista, digestivo da palavra).

E eu pensava nesse turbilhão do tempo, dos modismos, que o exercício da amizade fosse contínuo, mas é tão “imortal” quanto a hipocrisia de acreditar nos homens que integram as instituições públicas e privadas. Daí deduzir que toda celebridade em Natal quando não é célere e celerada. A corrosão cotidiana da busca pelo dinheiro e pelo poder enferruja com rapidez as “glórias e grandezas” de alguns profissionais que se julgam donos do mundo, quando pensávamos justos e coerentes. As mutações históricas dos valores da personalidade humana, ao que me parece, foram provocadas pela “revolução” dos costumes sociais, principalmente o comodismo, a apatia pelo semelhante, o medo de morrer, as fobias e a falta de religiosidade.

Aí, instaura-se um jogo de buscas. O coração desumanizado do selvagem habitante da cidade, que segrega o próximo jamais conhecerá qualquer modalidade de amor, principalmente na noite sem face e derradeira do ataúde, porque em vida foi ausente, insensível, reduzido à condição de bicho. Esse será o calvário do insensato, do que utiliza a amizade como negócio, como moeda de troca. Vai vagar como Caim na noite gelada do tempo sem jamais achar abrigo. Aos ricos materiais mas pobres em espírito, ofereço a reflexão do poeta Mário Quintana: “Essa idade tão fugaz na vida da gente, chama-se apenas presente e tem a duração do instante que passa”.

(*) Escritor.

 A cegueira do ódio 

 Padre João Medeiros Filho 

Segundo a teologia cristã, o ódio (ou suas nuances: cólera, ira, raiva etc.) é um dos sete pilares – pecados capitais – de desajuste dos seres humanos, que os leva à cegueira espiritual. Segundo o relato dos evangelistas, Cristo curou vários cegos (com deficiência visual congênita ou adquirida). Tal situação é verificada na sociedade brasileira da atualidade. Há uma multidão de míopes e “não videntes” ao redor de nós. Faz-nos lembrar o romance de José Saramago “Ensaio sobre a cegueira”, no qual descreve a “epidemia de ablepsia” numa cidade, que chega posteriormente à destruição. Pode ser lembrada também a obra do pintor holandês Pieter Bruegel, o Velho: “De parabel der blinden” (A parábola dos cegos), guardada no Museu de Capodimonte, em Nápoles (Itália). O autor retrata a alegoria referida por Cristo: “Se um cego guia outro, ambos cairão no abismo” (Mt 15, 14). Nessa passagem de Mateus, Jesus analisa a postura de seus opositores. Fala-se que o amor é cego. Todavia, pesquisadores afirmam que ele provoca cegueira, quando utópico ou irreal. Por outro lado, o ódio em todas as suas manifestações acarreta ausência de visão interior. Curar-se da ira é deixar que as traves caiam de nossos olhos, recobrando a luz. Tempos de trevas densas envolvem nosso país, levando muitos à barbárie e à desumanização. Atravessam-se dias obnubilados com brumas intensas, provocando desencontros e colisões. Faz-se abertamente a apologia de narrativas falaciosas, parciais e de sofismas, agressões, intransigência, arrogância, polarização etc. Urge conclamar à lucidez aqueles que mergulham profundamente no lamaçal da cólera. Jesus estimulou os discípulos a respeitar o seu semelhante, apesar de tal atitude não pressupor obrigatoriamente afeto. No entanto, essa é a origem do amor cristão, embora não inclua ternura. Do ponto de vista científico, a raiva é uma doença perigosa em animais e no homem. A ira é uma patologia mental ou espiritual grave, tendendo a tornar-se endêmica no Brasil hodierno. Pode ser mais ofensiva e devastadora que muitos vírus disseminados. Os coléricos não se dão conta do dever de reconhecer no próximo sua individualidade e seus direitos como cidadão. Concebem um mundo unilateral, no qual o “eu” se torna medida absoluta do valor e desvalor. Isto desumaniza ou inferioriza. Retira-se a dignidade da pessoa e legitima-se ilícita e iniquamente um poder arbitrário de praticar injustiça e opressão. Aqueles que destroem física ou psiquicamente alguém, perderam o sentido de Deus, da vida digna e dimensão social. A ira irracionaliza e apequena as criaturas. Não será este o clima que paira atualmente no Brasil? Quem curará a nossa amada pátria de tal morbidade? No aludido romance do escritor português uma mulher (esposa de um médico) não foi atingida pela doença e orientava os deficientes visuais. Estamos diante de uma metáfora. Segundo os quatro evangelhos, Cristo libertou da escuridão muitos que não enxergavam biológica ou espiritualmente. O Filho de Deus não está mais fisicamente entre nós. No entanto, a sua doutrina permanece, podendo sarar e transformar. O Brasil contemporâneo carece de conhecimento e vivência da Palavra divina. Infelizmente, ela é instrumentalizada e usada de forma distorcida, até ideologizada, numa afronta tanto à semântica bíblica, quanto à hermenêutica sagrada. “Tende confiança, eu venci o mundo” (Jo 16, 33). Acreditamos que a cegueira generalizada passe. Um dia, avistar-se-ão os escombros da destruição dos valores éticos da sociedade. Será necessário, como recorda o poema “O fim e o início”, da polonesa Wislawa Szymborska, que alguém faça a faxina, tire os entulhos das ruas e abra os caminhos para que as caçambas passem com o lixo moral. É preciso se imunizar do ódio. Os que têm alguma lucidez devem lutar para que no final dessa triste guerra ideológica, política e social haja quem se dê ao trabalho de um recomeço. Eduquem-se os brasileiros para o amor, que “é magnânimo, benfazejo, não é invejoso, presunçoso e colérico, não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade... e jamais acabará”, como declara o Apóstolo Paulo (1Cor 13, 4-8). E assim proclama o evangelista João: “Deus é amor” (1Jo 4, 8)!

domingo, 5 de junho de 2022

 ENTARDECER DO FAUNO

ele girava em torno
do politicamente correto
enquanto a vida passava
e sangrava a imaginação

mas em meio ao fastio da tarde
e o quebrar da luz na vidraça
lembrava-lhe o anjo a sua fome
e o seu alimento: o amor

e assim a  chave lhe repassava
do segredo transcendental

-  Horácio Paiva

 

ADEMILDE FONSECA

Berilo de Castro


ADEMILDE FONSECA –

(* 04/03/1921 + 27/03/2012 )

Ademilde Ferreira da Fonseca (Ademilde Fonseca, Rainha do Choro), potiguar de Pirituba, São Gonçalo do Amarante, situado na região metropolitana de Natal, o quarto município mais populoso do Estado, onde fica localizado o Aeroporto Internacional Aluízio Alves, território onde aconteceu o massacre holandês, quando exterminaram oitenta pessoas; tragédia que ficou conhecida nacionalmente e internacionalmente como o Massacre de Uruaçu.

Ademilde nasceu no dia 4 de março de 1921, de  família humilde e grande, com 10 irmãos. Aos 4 anos sua família veio morar em Natal, onde ficou até 1940. Sempre gostou de cantar; aos 7 anos, já fazia uma “fezinha” nas festinhas no colégio e nas casas das amigas.

Na adolescência, participou de grupos seresteiros, onde conheceu e fez amizade com bons músicos da localidade. No ano seguinte (1941), foi morar no Rio de Janeiro, já casada com um dos músicos (violonista) que conheceu nas rodas seresteiras: Naldimar Gedeão Delfino, quando passou a usar o nome Ademilde Fonseca Delfino; tiveram uma única filha: Eimar Delfino; anos depois se separarem, momento que resolveu definir e usar somente o seu nome artístico: Ademilde Fonseca.

Sua vida musical teve início no programa de Renato Murse, na Rádio Clube do Brasil, na Cidade do Rio de Janeiro, no Programa Papel Carbono, quando cantou o samba Batucada em Mangueira, do repertório da cantora Odete Amaral, acompanhada do Regional de Benedito Lacerda, quando foi muito aplaudida e aprovada; a partir de então passaram a fazer shows juntos em clubes e festas particulares.

Em uma dessas festas, decidiu cantar uma música que conhecia desde criança, até então só apresentada instrumentalmente: o choro “Tico-Tico no Fubá”, de Zequinha de Abreu e letra de Eurico Barreiros, do ano de 1942; foi de um tamanho sucesso que encantou a todos e sedimentou o seu talento como intérprete do choro (gênero musical gracioso, brejeiro e muito difícil de ser cantado).

Entusiasmado com suas interpretações, o grande instrumentista Benedito Lacerda lhe outorgou o título de “Rainha do Chorinho”.

Ademilde passou uma temporada de mais de 10 anos na TV Tupi; teve uma produção musical bastante significativa, chegando a uma tiragem de seus discos de mais de meio milhão de cópias. Fez parte do grupo de cantores da Rádio Nacional e Tupi do Rio de Janeiro; foi considerada como um grande nome da “Era do Rádio” (de 1930 a início da década de 1960).

Fez apresentação em Paris, em festa promovida por Assis Chateaubriand, em 1984 e, no mesmo ano, teve a glória de abrir o carnaval brasileiro em Nova Iorque. Contam que um famoso músico americano, ao ouvi-la, ficou tão impressionado que assim se expressou: “Ademilde não tem voz, ela tem um cavaquinho dentro do peito”.

Foram suas grandes interpretações: “Tico-Tico no fubá”, “Brasileirinho”, “Pedacinho do céu”, “Delicado”, “Teco teco”, “Rato, rato”, “Doce melodia”, “Urubu malandro”, “Fala baixinho”, “Choro chorão”, “Galo garnizé”, “Cachorro vira lata”, “Me dá, me dá”, “Pinicadinho”, “O que vier eu traço” e muitos outros.

No ano de 2010, recebeu o Prêmio Divas da Música Brasileira, uma justa e digna homenagem à Rainha do Chorinho; na sua localidade: Pirituba (RN), recebeu como homenagem o nome da principal Praça da Cidade.

Cantou e encantou até próximo dos seus 90 anos, quando passou a fazer dueto com a sua filha Eymar Fonseca. Recordo quando fui assisti-la no Programa Seis e meia, patrocinado pela Fundação José Augusto, no Teatro Alberto Maranhão, em Natal; grande e emocionante recordação.

Faleceu aos 91 anos, em sua residência, no bairro da Lagoa, no Rio de Janeiro, vítima de um enfarte do miocárdio, no dia 27 de março de 2012. Naquele momento, o Brasil perdia sua expressão maior do choro, que, segundo ela mesma definia e considerava o gênero musical com a cara, a alegria e a vibração do povo brasileiro.

Brasileirinho chegou e a todos encantou / Fez todo mundo dançar/ A noite inteira no terreiro / Até o sol raiar.(Brasileirinho- Waldyr Azevedo)…

 Berilo de Castro – Médico e Escritor,  berilodecastro@hotmail.com.br

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