quinta-feira, 2 de novembro de 2023

 

Para refletir no Dia de Finados

Padre João Medeiros Filho

Inexiste nos textos bíblicos neotestamentários qualquer palavra de Jesus se auto definindo como morte. Ao contrário, Ele proclama: “Eu sou o Pão da Vida” (Jo 6, 48); “Vim para que todos tenham vida” (Jo 10,10), ou ainda, “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida” (Jo 14, 6). Santo Agostinho pregava: “O cristão não conhece a morte, mas a vida que começa com a morte.” Esta é a porta da Eternidade, o sono que conduz ao Infinito. Certa feita, o Filho de Deus, diante de uma família sofrida pela perda da filha, exclamou: “A menina não morreu, ela dorme” (Mt 9, 24). Com a notícia do falecimento de seu amigo Lázaro, Jesus afirmara: “Ele está dormindo, irei acordá-lo” (Jo 11, 12). Sono é o termo empregado pelos primeiros teólogos da Igreja, quando cessa nosso existir. Daí surge a expressão da liturgia de réquiem: “Requiescat in pace” (durma, descanse em paz).

Para Mário Quintana: “Morrer não é o último ato biológico. Acontece também nas perdas cotidianas e naquilo que nos traz saudades, quando acabam planos, esperanças, amizades.” Integra imprescindivelmente a natureza do ser humano. “Morrer é um ato natural, como beber, comer e dormir”, escreveu o cirurgião plástico Ivo Pitanguy. Anormal é aquilo que muitas vezes o precede: aparelhos conectados e tubos introduzidos no corpo sem o paciente poder fazer nada, pois não é mais dono de si mesmo. Mister se faz atenuar a solidão e a ansiedade que precedem à morte. Poucos têm palavras para falar tranquilamente sobre a realidade inevitável. Contudo, é um dever para os que creem, um ato de misericórdia, análogo ao preconizado no capítulo 25 do Evangelho de Mateus. A ciência e as religiões não refletem suficientemente sobre esse aspecto. Há carência de serviços e movimentos espirituais para proporcionar serenidade, aceitação e desprendimento naqueles que partem. Falta quem saiba cuidar da inexorável separação. É graça – quando pressentido ou anunciado – nosso fim acontecer, de forma mansa e sem dores, em meio às pessoas amadas e num clima de paz e quietude.

Para o cristianismo, a morte é apenas o umbral do Céu. A sabedoria da fé leva a viver com toda responsabilidade e despedir-se da existência com pleno despojamento. A morte é a devolução de algo que não pertence ao homem. Consiste no verdadeiro nascimento do ser humano – “mors vere dies natalis hominis” – pregou o Bispo de Hipona. A vivência da fé proporciona o equilíbrio humano. Se de um lado, pensarmos somente no término dos dias, colocaremos o sentido de tudo no final da existência terrena. Há algumas pessoas que tendem para essa posição e acabam desprezando o viver, diminuindo o sabor da vida, dom divino. Entretanto, a tentação mais comum é a abordagem contrária: priorizar o existir efêmero. O enfoque no provisório pode gerar desespero, quando as limitações começam a aparecer. “Somos migrantes, moradores temporários neste mundo” (1Cr 29, 15). O apóstolo Paulo arremata peremptoriamente: “Somos cidadãos do céu” (Fl 3, 20).

Para tudo há o seu tempo. Há tempo para nascer e tempo para morrer” (Ecl 3, 2), diz a Sagrada Escritura. Viver e morrer não são antagônicos, mas irmãos. São Francisco de Assis percebeu tal verdade, ao falar da “Irmã Morte”. Isto exige que sejamos sábios para nos preparar quando a vida irá se plenificar. Poderia a Medicina desenvolver uma nova especialidade (tanatoatria) para assistir aos que terminam sua caminhada terrena. Sua missão seria preparar para o definitivo que leva à plenitude. Deverá fazer tudo para que o desenlace seja tranquilo e cercado de carinho. Poder-se-ia designar como padroeira de tal ramo da ciência médica Nossa Senhora da Piedade, simbolizada na ternura de “La Pietà”, de Michelangelo. Naquela escultura, Maria está representada com o seu Filho Amado, morto em seus braços. No colo de uma mãe o morrer não causará medo. A Igreja deve ser essa Mãe, expressão de afeto, que sabe nos envolver nos momentos do desabrochar da vida plena, onde de acordo com o Apocalipse “não haverá mais luto, nem choro, nem dor, pois as coisas de antes passaram” (Ap 21, 4).