terça-feira, 5 de outubro de 2021

 

Os alienistas jurídicos

Friedrich Dürrenmatt (1921-1990) foi um escritor suíço de língua alemã. Nasceu numa pequena cidade do cantão de Berna. Sua família era conservadora e protestante. Foi cedo morar na belíssima capital de facto do seu país. Estudou filosofia, filologia, literatura e até “ciências” nas universidades de Zurique e Berna. Logo abandonou a vida acadêmica. Foi escrever romances e, em especial, teatro neoexpressionista. Dürrenmatt não era engajado partidariamente, mas tinha uma posição político-filosófica de vida. À moda do grande Bertolt Brecht (1898-1956), embora mais desmascarador do que didático, suas peças (e seus romances também) visam menos o entretenimento da plateia/leitor e mais fomentar o debate público sobre temas fundamentais. É denúncia. E é bastante original. Dürrenmatt foi também pintor. Mas, cá entre nós, foram os seus leitores e espectadores que tiveram mais sorte.
Sua primeira peça foi “Está escrito” (“Es steht geschrieben”, 1947), que estreou com grande polêmica. A trama gira em torno de uma “batalha” entre um cínico carreirista e um fanático religioso, que leva as escrituras ao pé da letra, tudo isso acontecendo enquanto a cidade em que vivem está sob um cerco. A noite de estreia foi um furdunço. E aí já dá para se ter uma ideia do tipo de “denúncia” de que estamos falando. O primeiro grande sucesso foi a peça “Rômulo, o Grande” (“Romulus der Grosse”, 1950). Segundo Otto Maria Carpeaux (1900-1978), em “A história concisa da literatura alemã” (Faro Editorial, 2013), aqui, “ideias expressionistas, modernizadas up to date”, inspiram essa tragicomédia pseudo-histórica, “em que o último imperador romano, alvo do escárnio de milênios, é homenageado como grande estadista que não quis ‘salvar a civilização’, porque é impossível salvar civilizações. E que civilização!”. Sua obra-prima possivelmente é “A Visita da Velha Senhora” (“Der Besuch der alten Dame”, 1956), uma mistura grotesca de comédia e tragédia sobre uma mulher rica que oferece ao povo de sua cidade natal uma fortuna se eles executarem o homem que a abandonou no passado. Em “A Visita da Velha Senhora”, como anota Carpeaux, “o desfecho é a morte trágica de um ‘herói’ nada trágico, causada pela vingança patológica de uma velha senhora e pela cobiça patológica de todos”. Já no drama satírico “Os físicos” (“Die Physiker”, 1962), “a ameaça trágica da bomba atômica é uma intriga de manicômio e levará ao poder um governo universal, encabeçado por uma louca”. Quão atual!
Entretanto, para nós, cultores da literatura e do direito, talvez (e enfatizo a dúvida, uma vez que o autor escreveu outras peças e romances “jurídicos”) a mais interessante obra de Dürrenmatt seja “O Casamento do Senhor Mississippi” (“Die Ehe des Herrn Mississippi”). Como registra Carpeaux, o louco promotor público dessa peça, “que manda centenas de sujeitos à forca para moralizar a vida pública, é personagem tipicamente expressionista”. É, assim, peça de pleno desmascaramento. Pondo de lado as relações pessoais entre as personagens, a peça tem como centro o radicalismo do promotor Mississippi, que se acredita um lutador pela “justiça do céu”. Ele internalizou de uma maneira muito peculiar os ditames da Bíblia, especialmente as chamadas “Leis de Moisés”. Convidado a simpatizar com a “esquerda”, ele refuga. É infenso a qualquer moderação. Após uma revolta popular abortada, ele vai para um manicômio. De lá foge. Num ritual macabro de envenenamento recíproco, Mississippi morre ainda na crença de que o homem pode ser mudado por punições inumanas. Tem doido para tudo. Ao final, na peça, as personagens retornam à ribalta e fazem um balanço dos acontecimentos.
Bom, e que balanço nós podemos fazer disso aqui?
Há um meramente literário. “O Casamento do Senhor Mississippi” me lembra bastante “O Alienista” (1882), do nosso Machado de Assis (1839-1908), cujo protagonista da confusão é o médico psiquiatra Simão Bacamarte, o dono da Casa Verde, o seu próprio manicômio, até porque acabou internado lá.
Mas eu prefiro aqui meditar sobre uma observação do multicitado Carpeaux. O teatro expressionista/fantástico de Duerrenmatt “denuncia o absurdo na atualidade, que lhe garante sucesso universal”. Desmascara tragédias. Mas “o que parece tragédia, no mundo de hoje, é na verdade uma farsa, apenas de desfecho trágico”. Vimos isso entre nós, não vimos?
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

 

A CANÇÃO DE NINAR

 

Diogenes da Cunha Lima

 

É a primeira e mais terna comunicação, depois do útero, segredo íntimo entre mãe e filho. A canção tem andamento suave, ritmo lento que favorecem o adormecer. A música é feita com harmonia simples para induzir ao sono. A criança sente (e creio incorporar) o afeto da sonoridade, música e letra.

Para mim, não foi assim. A minha mãe ajudava a trabalhar no comércio, cuidava de seis filhos buliçosos e dava atenção à saúde do marido. Assim, atarefada, contratou uma babá para mim e meu irmão Daladier, cujo nome era Lúcia Antero de Oliveira. Ela nos protegia, mas contava histórias de assombração, cantava e nos fazia medo com um boi de cara preta que vinha nos pegar. Desconfiado, eu olhava para as frestas das telhas para conferir a presença do bicho-papão.

Herdamos de Portugal canções infantis, algumas têm mensagens negativas. Lembro “A Canoa virou / deixa ela virar / coitada da (menina) / que não sabe nadar”. Outra, noticia a briga do cravo com a rosa, em que ele sai ferido e ela despedaçada.

Talvez por isso, dediquei-me a fazer canções que refletissem o amor aos meus filhos, netos, sobrinhos e também a filhos de amigos. Foram mais de cinquenta. Tive o privilégio de contar com o talento de parceiros musicais como Oriano de Almeida e Roberto Lima, além dos arranjos geniais de Eduardo Taufic.

O surgimento das canções de ninar é imemorial. Há uma tablita de barro, babilônica, com cerca de 4 mil anos, que registra uma delas. Mas não é amável. A mãe adverte o filho do perigo. O seu choro poderia aborrecer o deus do lar.

As canções de ninar de Chopin, Brahms ou Mozart são maravilhas musicais. A de Chopin é a mais conhecida e sedutora. Brahms comove. Mozart transmite uma energia que conduz o sentimento ao pensar. Outra bela canção é a de Stravinsky, inserida em sua peça para o balé “O Pássaro de Fogo”. O príncipe Ivan liberta treze princesas enfeitiçadas. A canção é tão poderosa que faz adormecer eternamente o rei feiticeiro e seus ogros malignos.

São cantadas e bem conhecidas na Espanha as canciones de cuna (berço), as berceuses na França, e a lullaby nos países de língua inglesa. O Brasil tem maravilhosas invenções e aproveitamento de músicas tradicionais por Villa-Lobos e Waldemar Henrique, entre tantos.

As canções de ninar são cantadas para acalmar os meninos na primeira infância. As letras, geralmente, são positivas, transmitem segurança, esperança de um futuro feliz, além do valor da bondade. Retrata a importância do sonho e a beleza da vida.

A canção de ninar é fundamental à construção de uma família integrada e feliz.

 

 

 

 

 

Um salmo para os nossos dias

Padre João Medeiros Filho

O romancista e poeta François Mauriac, prêmio Nobel de Literatura em 1952, escreveu: “Há pensamentos que são verdadeiras orações. Em dados momentos, a alma está de joelhos, seja qual for a postura do corpo.” Isso é válido também neste tempo em que estamos ainda mergulhados num oceano de incerteza, angústia e desapontamento. Vivemos atônitos numa sociedade vitimada pela pandemia e inverdades, pelo radicalismo político, social e até religioso. Padecemos com as contradições e manifestações ideológicas antagônicas, acarretando mais sofrimento para o nosso povo.

No conjunto bíblico veterotestamentário é bem conhecido o Livro dos Salmos, lido e meditado por muitos. Trata-se de um manual de orações em forma de hinos e cânticos composto por nossos ancestrais, séculos antes de Cristo. Ali, estão contidas aspirações profundas do ser humano diante de si mesmo, da vida e do desconhecido. A oração – para quem acredita – tem por objetivo levar o finito da terra até o Infinito do Céu. E em cada salmo, está a alma do poeta perseguido, angustiado e carente. Dentre tantos, há um, em particular, apropriado para os dias de hoje, que assim começa: “Aquele que habita sob a proteção do Altíssimo descansará à sombra do Onipotente. Ele dirá ao Senhor: Meu refúgio, minha fortaleza, meu Deus, em quem confio.” (Sl 90/91, v.1) É o desabafo de um fiel em busca de socorro à sombra de Deus, procurando proteção e forças para superar as dificuldades pelas quais passa.

Deus é o refúgio (não fuga ou alienação) do ser humano, o qual no seu íntimo pressente que é amado por Ele. Manifesta sabedoria ao buscar auxílio junto a quem pode proteger e ajudar. Nele podemos confiar totalmente, pois nos garante: “Porque se apegou a mim, eu o livrarei e protegerei, pois conhece o meu nome.” (v. 14). Apesar do filósofo Immanuel Kant ter afirmado que “o valor da oração é apenas subjetivo e o desejo de falar com Deus é absurdo”, a criatura humana reza e, mormente nas horas difíceis, pois tem consciência da presença e compaixão divina. Os momentos de prece e recolhimento conduzem-nos à humildade bíblica, ignorada por pretensos sábios, os quais rejeitam Deus e fazem tudo para ocupar o seu lugar.

O Salmo 91/90, além de seu conteúdo poético, é uma reflexão sobre o tempo que passa e o que vai acontecendo ao ser humano. Fala de nossa condição terrena, através de imagens. Compara a vida do homem à efemeridade de uma planta. Alude à nossa história, cheia de contradições e sofrimentos, ao tempo cósmico e à perpetuidade de Deus. “Tudo passa. Só Deus permanece”, afirmara a poetisa e mística Santa Teresa d´Ávila! O Salmo, aqui citado, demonstra que todo poder e sabedoria pertencem a Deus. Descreve metaforicamente a existência de um quarteto sinistro (v.4 e 6) que poderá se aplicar aos tempos hodiernos de violência e pandemia: a) a flecha (bala) que voa de dia sem que saibamos seu percurso; b) o terror noturno a trazer insegurança; c) a peste que desliza nas trevas e d) a mortandade que se alastra à luz do dia (v. 5-9). No entanto, o Senhor acalma, promete sua proteção e dará vitória a quem crê e reza: “Andarás sobre cobras e serpentes e pisotearás leões e dragões.” (v. 11). E continua o salmista, tranquilizando o suplicante: “O mal não se aproximará de ti nem a praga chegará à tua casa.” (v.10).

 Porque ele me ama, eu o salvarei. Clamará por mim e eu o atenderei, com ele estarei na tribulação” (v.14-15). Assim, Deus assegura-nos a defesa contra os perversos e as desgraças. E enviará seus anjos que oferecerão refúgio e mostrarão o caminho. Finalmente, a salmodia arremata a prece com o consolo divino: “Eu o saciarei de longos dias e lhe mostrarei a minha salvação” (v. 16).  Neste tempo de perplexidades, peçamos confiantemente ao Senhor que venha amenizar este “vale de lágrimas”. Ponhamos nosso coração em nossas orações, pois “as palavras sem sentimentos não chegarão aos ouvidos do Eterno”, como escrevera William Shakespeare.