sábado, 15 de julho de 2023
quarta-feira, 12 de julho de 2023
(Recebido de Ivan Maciel)
SOBRE A FELICIDADE
Quando se fala sobre felicidade, me lembro logo do que dizia um pensador que viveu no século XVIII e que foi um dos grandes ideólogos da revolução francesa de 1789 (a revolução que conduziu a burguesia ao poder e estabeleceu os princípios democráticos e liberais consagrados pelo capitalismo): Jean-Jacques Rousseau (1712-1778). Ele raciocinava como se tivesse existido um “estado de natureza”, anterior à constituição da sociedade, em que todos eram livres e viviam felizes (o “bom selvagem”). Depois se tornou necessária a celebração de um contrato social e a partir daí começou a infelicidade humana (sobretudo quando alguém cercou uma determinada área e disse: “isso me pertence”). Outro filósofo, Voltaire (1694-1778), escreveu uma carta a Rousseau em que dizia, a certa altura: “A gente tem vontade de andar de quatro (“marcher à quatre pattes”), quando lê sua obra”. Essas ideias serviram de base à luta contra o regime monárquico, pois o contrato social seria a fonte de todos os direitos. Hoje podem ser contrapostos às ameaças ditatoriais.
Mas em que consiste mesmo a felicidade? O nirvana de Buda (Siddhartha Gautama, 563 a.C.-483 a.C.) importa na superação dos sentidos e de tudo o que é material, ausência do desejo, da dor e da emoção, o “ápice da meditação”: “o espírito se liberta do corpo temporariamente”. Bem diferente do hedonismo, que via na busca do prazer (com serenidade e equilíbrio) o único caminho para a felicidade. Mas Santa Teresa de Ávila (1515-1582) encontrava a felicidade na clausura, no silêncio, na pobreza e nas atividades intelectuais. Em 1970, Paulo VI concedeu-lhe o título de “Doutora da Igreja, Mestra da espiritualidade”. Foi grande escritora e poeta. Muitos veem em seus poemas um arrebatado transbordamento misticossensual. Exemplo: “Eu estou com Aquele que me habita”.
Jorge Luis Borges se sentia feliz na companhia dos livros, para lê-los amorosamente. Tanto que imaginava o paraíso como uma enorme biblioteca em que se podia ler qualquer livro nas línguas mais diferentes. No entanto, ficou cego. E se satisfazia em acariciar os livros. Contratava intelectuais iniciantes para ler em voz alta os livros que ele não podia mais ler. Porém, reconhecia que essa experiência era frustrante: nada é comparável à leitura feita por nós mesmos. Meu pai, que lia em francês, italiano e inglês e tinha uma excelente biblioteca passou por idêntica provação: perdeu a visão por completo. Eu lia para ele jornais e revistas. Livros, tentei ler, mas ele achava que não valia a pena. Não conseguia concentrar-se na leitura feita por outra pessoa. Dizia que sua percepção era visual e não auditiva. Eu, então, percebia o quanto a doença o infelicitara: foi quando mais senti a absurda e abissal fragilidade da condição humana.
Valter Hugo Mãe simplifica dizendo que não existe propriamente a felicidade -- EXISTEM MOMENTOS DE FELICIDADE.
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A virtude da tolerância
Padre João Medeiros Filho
Segundo Platão, “a tolerância é o mais alto nível de educação.” Consiste na capacidade de reconhecer e aceitar o diferente. Não confundir com o divergente, que prima pela discordância e oposição. A intolerância está em não suportar a pluralidade de ideias, crenças e posições, como se a verdade pertencesse a um só indivíduo ou grupo e ali todos devessem buscar a luz. Uma lenda milenar narra que um pregador reuniu centenas de pessoas para discorrer sobre a verdade. Ao final da fala, em vez de aplausos, houve um silêncio sepulcral. Passados alguns instantes, uma voz se levantou: “O que o senhor acaba de afirmar não é a verdade.” O palestrante indignou-se: “Como, não é? Anunciei o que me foi revelado pelos céus!” Quem contestou, retruca: “Existem três tipos de verdades: a do senhor, a minha (ambas subjetivas) e a objetiva. Juntos devemos buscar a veracidade dos fatos reais.” De acordo com a filosofia aristotélica, “a verdade é a identificação do pensamento com a realidade” (“Identificatio intelectus et rei”). Os tiranos e arrogantes sentem-se senhores absolutos da verdade. Por esse motivo, mantêm-se intransigentes, não admitindo os direitos dos outros. Há quem defenda a força das armas e da violência como prioridade sobre as ideias. Faz algumas semanas, a mídia noticiou o brado de alguns extremistas, pregando a morte para os que não seguem sua ideologia. Os intransigentes usam a agressão física como argumento válido para convencer o mundo e mostrar quem está certo ou o que é correto. Esquecem a máxima oriental, ao ensinar: “Melhore a argumentação e baixe o tom de voz.” O intolerante é facilmente levado à beligerância, por ele denominada contraponto. É um inseguro. Por isso, agarra-se a seus caprichos, concepções e narrativas, como um náufrago à tábua que o mantém à tona. É unicista, indo na contramão dos ensinamentos filosóficos e éticos. Vê o que discorda como inimigo ou “o inferno”, consoante Sartre. Para ele, todos devem acatar docilmente suas opiniões. O tolerante não coloniza a consciência alheia. Admite que da verdade se depreende fragmentos. Tem consciência de que ela só é alcançável com um esforço comunitário. Reconhece a alteridade singular, que jamais deve ser negada. Apenas Deus vê a plenitude da verdade. O poeta Rumi aconselha: “Veja através dos olhos da compaixão. Fale com a linguagem do amor e sobretudo ouça com os ouvidos da tolerância.” Esta necessita ser a regra de ouro do comportamento humano. Pode-se inferir que se todos não pensam da mesma forma, tem-se apenas parte da verdade, sob ângulos diversos. Tolerar não significa abandonar o compromisso com a veracidade, e sim reconhecer que o outro tem o direito de decidir o rumo da sua vida e história. Pode-se aplicar ao tolerante o perfil descrito pelo apóstolo Paulo na Primeira Carta aos Coríntios: “É paciente e prestativo, não se irrita nem guarda rancor. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta” (1Cor 13, 4-7). Tolerância não é sinônimo de ingenuidade, tampouco parvoíce. Não faz tempestade em copo d’água. Jamais cede quando se trata de defender a justiça, a dignidade e a honra. Reconhece o direito de cada um ter princípios e agir conforme a sua consciência, desde que não redunde em opressão ou exclusão, humilhação ou morte. O cristianismo convida a ter sempre uma atitude de respeito e compreensão com o próximo. Assim recomenda o citado apóstolo Paulo: “Aceita o outro, mesmo mais frágil e não discuta sobre suas opiniões” (Rm 14, 1). Das intolerâncias, a mais inaceitável é a religiosa, pois divide o que Deus uniu. A religião não é uma imposição, ela está na essência do ser humano. Quem somos nós para, em nome do Pai celestial, decretar se uns são os eleitos e, outros, os condenados? Só o amor poderá nos tornar realmente tolerantes, pois quem ama compreende as reações de outrem e demonstra sempre gestos de compreensão, acolhimento e partilha. Proclama o salmista: “O Senhor é clemente e tolerante [compassivo], lento para a ira, rico em misericórdia e fidelidade” (Sl 86/85, 15).
A PASSAGEM DA NOITE
(*) Escritor.