sexta-feira, 29 de outubro de 2010
INCITATUS,
O CAVALO SENADOR
Reflexões sobre a sabedoria,
a vaidade e a ignorância
Calígula fez do seu cavalo, Incitatus, senador do poderoso Império Romano. Mesmo os mais devotados súditos, se os houvesse, não tiveram mais dúvidas sobre a insanidade do imperador, embora, certos cínicos, vislumbrassem alguma lucidez no evidente estado de loucura do governante. Não por acaso alguns senadores conduziam-se como verdadeiros ruminantes.
Inspirados neste e em outros exemplos históricos, um sem número de circunstâncias têm conspirado em favor da concessão de um atestado de sabedoria a certos privilegiados sem qualquer sucesso. O professor e jurista Jalles Costa, reverberando de indignação contra o sistema automático de aprovações dos alunos do curso de graduação em direito, dado como irresistível e invencível, impôs uma condição a um concluinte que pretendia o abono de faltas para habilitar-se ao seu diploma de bacharel em direito: que ele assumisse formalmente o compromisso de jamais exercer os ofícios pertinentes à sua diplomação, tal o estado de indigência intelectual do graduando. O indigente concordou e manteve seu compromisso até hoje, malgrado haver recebido o título de bacharel em direito, prerrogativa que lhe confere o pontificado da ciência jurídica.
Aprendi, no pó das estradas e nos velhos livros salvados das traças, que a sabedoria não reclama titulação, nem que esta presume o conhecimento acadêmico.
Todas estas observações se devem ao fato de haver testemunhado uma discussão entre dois colegas professores de direito cujo desfecho deixou-me estarrecido. Um dos contendores, tido e havido como profissional de boa cepa, estudioso, dedicado ao seu ofício, com produção intelectual ativa e de boa qualidade, não ostentava, no entanto, qualquer título de pós-graduação. Já o outro, contumaz arauto dos próprios e supostos dotes intelectuais, comprazia-se em apoucar a singeleza dos argumentos do oponente, sem sequer dar-se ao trabalho de questioná-los cientificamente, à luz da moderna argumentação. Ao revés, ignorava as alegações do colega, desfiando teses sem nenhum senso jurídico, mas apresentadas como “modernas”, defendidas, segundo o erudito jurista, pelos mais importantes jusfilósofos da atualidade. Estrangeiros, naturalmente, cujos nomes, impronunciáveis, eram desconhecidos mesmo entre alguns estudiosos da matéria.
O colega não-titulado, oprimido pelo peso de tanta sapiência, ainda assim mantinha-se intransigente na defesa das suas razões e evidenciava o vigor e a validade dos seus argumentos. Em dado momento, havendo esgotado o arsenal argumentativo sem convencer o denodado replicante, nem sensibilizar as testemunhas da discussão, o ilustre jurista, que nem um espadachim enraivecido, brandiu para o adversário desarmado a sua condição de mestre, doutor ou sei mais o quê, insinuando, nas reticências, que essa titulação conferia-lhe espécie de notório saber, convertendo-o em latifundiário da verdade.
Concluída a escaramuça intelectual, com a providencial saída dos duelistas, um dos circunstantes comentou o despropósito do pós-graduado, observando que a quase totalidade dos escritores jurídicos fundamentalistas, os ícones da cultura jurídica nacional e internacional que serviam de fonte aos titulados jamais obtiveram um título formal de conclusão de pós-graduação. E que alguns dos mais importantes ensaístas e filósofos do mundo não exibiam sequer um simples título formal de graduação.
É evidente que um título, seja de graduação, ou de pós-graduação, não confere sabedoria ao seu portador. Nem pode gerar essa presunção. A titulação atesta a aptidão do titulado para determinada área do saber, habilita-o para as funções específicas do seu ofício, confirma a expansão ou o acréscimo do seu conhecimento, mas não atesta a sua sabedoria. E, no caso da pós-graduação, a acessão do saber novo não supõe a mais-valia do saber original na área estrita da graduação.
A mais-valia do saber é a agregação do conhecimento original, próprio de quem o desenvolveu. Não se confunde com aquele tipo de aquisição que apenas reproduz o conhecimento compilado de fontes alheias. Este, identifica-se como acumulador de energia intelectual, repositório de referenciais teóricos, descompromissado com as revelações imponderáveis advindas da reflexão crítica, da pesquisa e da experimentação, responsáveis pela produção original. Vale dizer que o “sábio” por acumulação do saber produzido por antecessores, é como se fora um boneco de ventríloquo, um títere, uma marionete, nunca um “criador”, mas simples “criatura” intelectual.
Da espécie “criador” foi Descartes, que abandonou todos os dogmas e referenciais bibliográficos, dedicando-se apenas à racionalização para produzir o “Discurso sobre o Método”. Para glorificar um exemplo local, sábio foi Câmara Cascudo, que, simples bacharel em direito, sem nenhuma titulação acadêmica na sua área de estudos, fez-se dos mais importantes antropólogos e folcloristas do mundo, responsável por uma obra original, resultante de pesquisas, reflexões e experimentações, reconhecida e haurida pelos estudiosos daqui e de alhures. Sábio foi Jorge Fernandes, para dar outro exemplo local, cuja poética, mesmo com dicção nordestina, tem tessitura original, expressa sentimentos, contextos e conjunturas universais, numa estilística inovadora. Sábio é Miguel Reale com a sua original teoria tridimensional do direito. Os outros são reprodutores do conhecimento gerado por alguém, e que podem até mesmo ser originais no seu modo de interpretar, clarificar ou expressar certo tema jurídico, mas isso não lhes confere o certificado de sabedoria.
O falecido ex-padre e escritor José Luiz distinguia os inteligentes dos sabidos, caracterizando os segundos por sua capacidade de capitalizar em proveito pessoal, a “aparência” de sabedoria, conquistada através de meia dúzia de frases e observações espirituosas, citação de uma dezena de eruditos, de hábito, desconhecidos da massa de intelectuais, inconfundíveis autores de “plaquetes” que nada acrescentam a coisa alguma. Certa vez cheguei a admitir o brilhantismo de um desses espécimes que acabara de conhecer. Mas, ao longo de dois anos de convivência constatei que a sua erudição andava em círculos, e “oitavava”esbarrando sempre com as mesmas citações e autores. Cansei.
O sociólogo, escritor e professor Itamar de Souza, chegou a classificar os pensadores da província em intelectuais, eruditos e “xeretas”. Os primeiros dedicavam-se à reflexão, análise e pesquisa, extraindo o seu conhecimento de verdadeiro trabalho de lavra intelectual. Os segundos, valiam-se do artifício que José Condé em um dos seus “Arquivos Implacáveis”, denominava de “cultura de fichário”. Habituais leitores de orelha de livros, resenhas críticas e de verbetes de enciclopédias, os eruditos sabem tudo de todas as áreas do conhecimento. Os “xeretas” são hábeis plagiadores. Apropriam o conhecimento alheio, repassando-o tal como o adquiriram, ou lhes dando algum recheio para personalizá-lo conquistando a dotação de “inteligência prodigiosa” e de “vastissima cultura geral”.
O jornalista, escritor e crítico literário Franklin Jorge referiu-se a um festejado escritor potiguar como alguém que utilizava as palavras com muita esperteza...Um manipulador, alguém que avia as receitas na farmácia, um arranjador que é capaz de recriar obra original, um escultor que trabalha estátuas ocas, porém com muita expressividade. Menos um criador.
O rescaldo dessa espécie de sabedoria é a vaidade intelectual, o acreditar-se expressão do saber único.
Recolho em Matias Aires, nas suas “Reflexões sobre a vaidade dos homens”, cuja edição original foi publicada em Lisboa no ano da graça de 1752, a seguinte sentença:
“Sendo o termo da vida limitado, não tem limite a nossa vaidade, porque dura mais do que nós mesmos e se introduz nos aparatos últimos da morte. Que maior prova do que a fábrica de um elevado mausoléu? No silêncio de uma urna depositam os homens as suas memórias, para com a fé dos mármores, fazerem seus nomes imortais; querem que a suntuosidade do túmulo sirva de inspirar veneração, como se fossem relíquias as suas cinzas...”.
O generalissimo Franco que fez erigir o “Valle de los callidos” muito menos para perpetuar a memória das vítimas dos republicanos que para imortalizar-se no suntuoso mausoléu, é, no entanto, lembrado pelas atrocidades que patrocinou e pelo obscurantismo que impôs à Espanha. O monumento não subverte a memória do povo, nem sacraliza os ímpios.
Vanitas vanitatum, et omnia vanitas. Sócrates, o pai da filosofia ocidental, depois de tanta investigação concluiu amargamente que tudo o que sabe é que não sabe nada.
O vaidoso dedica muito tempo à construção da própria imagem de sábio, eis porque, a propósito de Beaumarchais, autor, dentre outras peças celebres de “O Barbeiro de Sevilha” e “O casamento de Fígaro”, dizia Voltaire que esse teatrólogo não era mais valoroso porque cuidava mais da própria vida que de sua obra. Não lhe sobrava muito tempo para ler, pesquisar, escrever. Esses tipos, encontradiços no dia a dia da ciranda da intelligentszia provinciana, instituem-se seus próprios personagens numa confusa autobiografia romanceada e por isso produzem muito pouco, justificando a contribuição escassa e temporã pelo excesso de ocupação, esquecendo-se de que são trabalhadores intelectuais.
Não creiam na sentença produzida em causa própria pelos vaidosos, segundo a qual a modéstia é o apanágio da mediocridade. Não é a modéstia um escudo para os medíocres, mas a vaidade. Senão, porque alardear as suas supostas qualidades? Certamente porque não foram reconhecidas, ou o foram precariamente, em desacordo com o julgamento dos supostos desfavorecidos.
O tempo é grande juiz da valoração intelectual. O que é valoroso sobrevive aos modismos e às circunstâncias. Shakespeare nunca será postergado. Nem Kazantzakis, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Balzac, Cervantes, Dante, Picasso, Rodin, Disney, o cinema de Fellini, John Ford, Chaplin. Qual a essência desses imortais? Eles foram criadores, assim como Thomas Edison, Marconi, Da Vinci, Santos Dumont, Pitágoras, Einstein, Freud...
Mas, nem mesmo a genialidade, a natureza intelectual criativa desses homens os autorizaria à vaidade, isto é, à exaltação do ego, porque, conclui-se, que nada é absolutamente original sob a face da terra. O desfecho, a conclusão, a aplicabilidade de certa tese, teoria ou experimento desenvolveu-se com base no subsídio de inúmeros predecessores, de outros tantos talentos igualmente originais que tributaram seus conhecimentos ao mesmo objetivo.
Diz-se que Hermés Trimegisto (ou seria Tales de Mileto?) produziu um prisma que captava energia solar e que dirigido a um corpo sólido era capaz de promover fissuras em sua estrutura, produzindo efeito similar aos raios laser. O cinematógrafo de Lumiére, antecessor e responsável pela moderna técnica cinematográfica, certamente incorporou o jogo de luz e sombras chinesas e as rústicas caixas de projeção de imagens animadas.
Quando tratava de Direitos Autorais defendia, perante meus alunos, o domínio público da criação artística, literária e científica porque jamais constatei a criação única, original, autônoma de qualquer empreitada no campo intelectual. Sempre há semelhanças entre a criação contemporânea e uma outra de remota e/ou imprecisa existência. É até provável que o autor contemporâneo não tenha tido conhecimento consciente da obra antecedente, mas há sempre a possibilidade de uma aquisição involuntária subtraída do inconsciente coletivo ou individual.
Ademais, é forçoso admitir que algumas obras reverenciadas como geniais pelos sapientes transmissores da cultura, apoiaram-se em produção alheia, ou revelaram-se verdadeiros monumentos ao equívoco, conquanto hajam enriquecido a discussão sobre o tema. Veja-se no campo específico do Direito, a contribuição valiosissima de Von Ihering na elucidação de uma teoria possessória, que, não obstante, susteve-se no “Tratado da Posse” de Savigny, não já fosse este último um dos luminares pós-compiladores do Direito Romano.
Célebre é o caso de Dumoulin, dado como o “príncipe dos jurisconsultos franceses”, um que fazia inscrever no preâmbulo dos seus pareceres a frase “Ego qui nemini cedo, et a nemine doceri possum” – em bom vernáculo, “Eu que sou o primeiro entre todos e que de ninguém recebo lições”- responsável pela construção das mais equivocadas teorias sobre a indivisibilidade das obrigações, depois de haver prometido fornecer as dez chaves que abririam as portas desse labirinto. Pela presunção e correspondente equívoco, aludido “príncipe” mereceu de Gianturco o comentário de que as citadas dez chaves não abriram porta alguma ou, se a abriram, deram para outro labirinto muito mais complexo.
Lembro uma caracterização oferecida por Céline – intelectual mais conhecido como colaborador do regime nazi-fascista que pela genialidade dos seus escritos – pela boca de um dos personagens do romance “Norte”: `Um rapaz sem nenhuma importância social ‘. Quis o escritor determinar alguém que não se apercebeu da missão de construir o coletivo, de notabilizar-se por sua contribuição social e que, ao invés, passa pela vida examinando o próprio umbigo, ou a vida passa por ele sem percebê-lo.
Stradivarius, que, além dos notáveis dotes de musicista virtuoso, foi o responsável pela construção dos mais sonoros violinos do mundo, legou-nos uma das confissões mais comoventes sobre a modéstia dos gênios. Disse ele: “A perfeição não consiste em fazer coisas extraordinárias, mas em fazer coisas simples, extraordinariamente bem feitas.” Logo ele !...
Da minha autoconfessada ignorância, concluo como o poeta Ferreira Gullar, resistindo ainda, diante de tanta perplexidade: “Nada vos sovino, com a minha incerteza vos ilumino”.
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PEDRO SIMÕES NETO -escritor
quarta-feira, 27 de outubro de 2010
ODE /A MACAÍBA
Oh, /Palmeira alta,/ querida terra minha/
Quantos sem vestes/ e trajados/ acolheste/
A ribanceira do Jundiaí/ detinha/
Provincianos/ indagando como nasceste/
Oh, /Palmeira florida,/ cheirosa/ terra minha/
De mil ancestrais/ tão destemidos/
Embora conscientes/ desconhecidos/ de Caminha/
Perpetuaram-se/ descendentes/ instruídos/
Oh,/ Palmeira linda,/ terra minha/
Nos musicistas poetas/ e na beleza/
Brancas Sinhás,/ pretas mucamas/ e sinhazinha/
Retos homens/ confirmaram tua grandeza/
Nas estradas,/ veredas,/ pontes/ e na vertente,/
Farinhadas,/ currais,/ feiras/ e cantadores,/
Igrejas,/ Solares/ e Escolas/ instruindo gente/
De nativos,/ Casa assombrada,/ Coité/ e Pedroza/
Do algodão,/ historiador,/ jurista/ e engenheiro/
Brilhante/ e infinda/ nasceu/ nossa Palmeira/ gloriosa.
RSS (Rui Santos da Silva)
Out.2010
terça-feira, 26 de outubro de 2010
III ENCONTRO POTIGUAR DE ESCRITORES – EPE
COMEÇA HOJE, DIA 26, O III ENCONTRO DE ESCRITORES PROMOVIDO PELA União Brasileira de Escritores UBE/RN, na Livraria Siciliano do Midway Mall.
Na abertura Solene, às 10 horas, será prestada homenagem aos 19 escritores fundadores da entidade, fundada em 16 de novembro de 1984, portanto há 26 anos. Dos 19 escritores, 11 partiram na nau da eternidade (Antonio Soares Filho, Eulício Faria de Lacerda, Fagundes de Menezes, Franco Jasiello, Luiz Rabelo, Luís Carlos Guimarães, Marcos Maranhão, Dom Nivaldo Monte, Reinaldo Aguiar, Veríssimo de Melo e Zila Mamede) e oito estão vivos (Deífilo Gurgel, Edna Duarte, Itamar de Souza, Jansen Leiros, Marize Castro, Paulo Macedo, Racine Santos e Valério Mesquita). Estes receberão o Diploma de Sócio Precursor. Com o Diploma de Sócio Honorário serão agraciados: Raimundo Soares de Brito, decano dos Escritores Potiguares , 90 anos; Dorian Gray, 80 anos; Ciro Tavares, 70; Franklin Capistrano, 60, e Pedro Vicente, 60).
LOGO EM SEGUIDA TEREMOS O PRIMEIRO PAINEL :
11h30 – Jornalismo Político ontem e hoje
(Agnelo Alves e Ticiano Duarte)
Moderador: J.Pinto Júnior
NO HORÁRIO DA TARDE TEREMOS A CONTINUAÇÃO:
15h – Nossa Editora: uma proposta editorial
(Pedro Simões)
16h - Três leituras sobre o Dilúvio: Gênesis, Miguel Torga e Machado de Assis
Araceli Sobreira Benevides
17h – Cultura Mossoroense em Questão
(Crispiniano Neto , Caio César e Clauder Arcanjo)
Moderador: Cid Augusto
18h30 – Lançamentos de livros e sarau com a Academia de Trovas RN (Coordenação José Lucas de Barros).
domingo, 24 de outubro de 2010
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