sexta-feira, 16 de julho de 2010


CAFÉ-CONCERTO E FORRÓ INACABADO
PARA O AMIGO JANSEN LEIROS


“Cada novo amigo que ganhamos no decorrer da vida aperfeiçoa-nos e enriquece-nos, não tanto pelo que nos dá, mas pelo que nos revela de nós mesmos.” (Don Miguel de Unamuno)

No reino muito próximo e muito próspero da Macaíba, um menino mal saído dos cueiros gostava de acordar antes dos galos, para saudar a fundação do dia e ouvir os seus acordes. Atravessava com muito cuidado os vãos da pequena casa da rua Benjamin Constant, vencendo com dificuldade a ainda reinante escuridão e, pela porta dos fundos, tomava o rumo do curral onde o pai mantinha sempre meia dúzia de vacas para o leite doméstico.
Seu pouso era o tanque de beber dos animais. Lá, punha-se de pé numa das paredes do bebedouro e se esticava, alongando o olhar na direção da longínqua ponte de igapó, nas quase brevidades do pressentido rio Jundiái.
Ali, aguardava que o dia se mostrasse.
Fascinava-o o lento e mágico alvorecer. A tímida mas determinada luz precursora de um sol ainda em trânsito do outro lado do mundo, que punha claridade no negror, azulejando-o. Depois, apresentava-se numa convulsão cinza-claro se esbranquiçando, já mesclado com estertores da agonia escarlate, sugerindo um parto sanguinolento e, afinal a criança alva vindo à luz, gloriosa qual o Cristo ressuscitado.
Era quando olhava ao derredor, uma rotina que o tranqüilizava e aumentava o seu domínio da beleza. Conferia as suas posses visuais: o pomar verde pontilhado de promessas multicoloridas, cheio de vida animal que dele se nutria. Até escolhera a sua árvore: um pé de pinha. Mas sabia que a rainha do terreiro era uma jaboticabeira, porque era árvore ritual da antiga vila de Coité, que definia uma época em que todos a celebravam, como doce e sumarenta excentricidade, nascida tão agarradinha ao tronco, como a criança ao ventre materno.
E se fascinava com os arautos da manhã. Primeiro, o galo despertador; depois, os resmungos dos perús e das galinhas alvoroçadas. O grito desagradável do pavão e o tô fraco falso e acanalhado dos guinés. Até mesmo o zurrar do burro sendo acangalhado para o transporte de água.
Mas o seu deleite eram os pássaros, aquelas pequeninas e maravilhosas criações de Deus para alegrar as criaturas. Especialmente os sabiás, bem-te-vís e canários e também os azulões. Até mesmo o crocitar dos gaviões o encantava. Era tudo testemunho de vida.
Observava os volteios elegantes e graciosos dos beija-flores e das libélulas, a sem cerimônia das borboletas, pousando onde queriam. E, antes que o dia estivesse definitivamente instalado, dizia aos seus amigos invisíveis que não precisava de nenhuma prova da existência de Deus. Estava satisfeito e consciente da sua onipresença, a sua obra o autenticava.
Esses amigos somente ele enxergava. Gente desconhecida, uns solenes, outros simples. Sentia-se à vontade com o avô adotivo paterno, Neco Freire, que lhe transmitia recados para o filho, seu pai, a respeito de assuntos os mais variados, desde o pedido de cautela com certa iniciativa até orientações para a vida de relações.
Felizmente, nascera numa família espírita, onde se acreditava na transmigração das almas a partir da reencarnação. E da possibilidade de comunicação com os que já morreram. Por conta desses dons, tornara-se mal visto pelos companheiros, como fosse uma espécie esquisita.
Imagine-se numa época de extremos saberes, em que pontificava, de um lado, os dogmas religiosos, e do outro uma intolerante ciência que também punha os seus dogmas como verdades absolutas. Onde se situaria uma criança cheia de imaginosos amigos invisíveis, em diálogos diários com o avô falecido?
Reprimiu as revelações, mantendo-as para si mesmo e para um grupo restrito de familiares.
Mas a “fatalidade” o perseguia. Foi estudar no Grupo Escolar Auta de Souza, onde havia nascido a poeta do “Horto” e lá, todos os dias, a notável macaibense postava-se ao seu lado, estimulando-o e o auxiliando nas lições. O menino sabia quando ela chegava porque sentia um forte cheiro de jasmin.
(Certa vez andava no velocípede no chão de mosaicos da sua casa, quando uma figura feminina, muito magra e pequenina, cercada por um halo muito luminoso, atravessou a sala de um a outro vértice, sorrindo para a criança, como um anjo o faria. A primeira reação foi a de gritar para que alguém o socorresse. Depois, foi sendo envolvido por uma paz, um conforto que o relaxou. Teria uns cinco a seis anos. Já era a sua “madrinha” assegurando-lhe proteção)
E ela o acompanhou a vida inteira. Se não aproveitou as orientações recebidas, foi por pura rebeldia ou enfado, um cansaço existencial que acomete os que derivam para outros planos sensoriais, cercando-se de regras e princípios inflexíveis, afastando-os do humano e achegando-os para o divino. Um fardo muito pesado, sobretudo para a criança.
Até hoje não soube porque a iluminada conterrânea o cerca com tanto carinho e tanto zelo. Talvez, cogita, afinidade poética, raízes telúricas, a sua alma peregrina e penitente...
(Pouca gente leu Unamuno, que é recorrente para mim, senão concordaria com o filósofo espanhol quando afirmou que “Aquilo a que chamamos espírito parece-me muito mais material do que aquilo a que chamamos matéria; sinto a minha alma mais manifesta e mais sensível do que o meu corpo.”)

Foi estudar em Natal, no Ginásio Sete de Setembro, depois, no Colégio Marista e finalmente, no Atheneu.
Retornou a Macaiba após casar-se, aos dezoito anos. Em decorrência da responsabilidade assumida, foi trabalhar na Cooperativa Banco Auxiliar do Comércio , de Jessé Freire. Alguns anos depois, foi nomeado para o Instituto do Açúcar e do Álcool, onde trabalhou durante... anos.
Conheci-o na velha Faculdade de Direito da Ribeira, em 1963. Estava no primeiro ano de direito e ele já no quarto ano. Candidato á Presidência do Diretório Acadêmico Amaro Cavalcanti, pelo bloco da esquerda, os estrategistas da sua campanha entendiam que o candidato a Vice-Presidente da sua chapa deveria ser alguém do primeiro ano, a turma mais numerosa, e que polarizasse votos de outros segmentos.
Então eu era ligado aos intelectuais, aos desportistas, pois era um bom atleta de voleibol e de basquete, e também ligado à esquerda. Além disso, segundo os mesmos analistas, depois que aprovaram o meu nome, eu era bem apessoado e “moderno”, dado às festas e eventos sociais, agradando ao eleitorado feminino.
Como já referi nesta mesma série, quando retratei o amigo Manoel Onofre Júnior, da minha chapa só eu fui eleito. E foi a minha desdita, pois, por circunstâncias alheias à minha vontade, assumi a Presidência do Diretório em razão do seu titular haver assumido a Presidência do Diretório Central Universitário. Corria o ano de 1964 e, pelo simples fato de me destacar como liderança estudantil, e no ambiente universitário, fui devidamente estigmatizado, como tantos outros companheiros ditos “de esquerda”.
O meu candidato à presidência, por determinação pessoal conseguiu transferir-se da Delegacia de Natal do IAA para o Rio de Janeiro.

Desatinou-se, e num dia tempestuoso, desaguou no Rio de Janeiro e do ano inteiro. Um peixe fora d´água que se tornou anfíbio. Aprendeu a falar carioca sem sotaque macaibeiro e passou a ser. Andava por Copacabana, Leblon, Ipanema e algures como Marco Polo no Cipão. Depois de gastar tanto as solas dos andadores sapatos, verificou que apesar de diferentes da rua do Pernambuquinho, das Cinco Bocas e do Porto das Macaíbas, os afluentes do rio eram iguais, porque, tal como bem o disse o sábio beiradeiro Manoel Onofre a respeito de sua serra, no “Caçador de Jandaíras”, era Macaíba que levava consigo aonde quer que fosse.
Tentou ser um carioca postiço. Lutou para afastar as suas origens, não por vergonha ou arrependimento, mas porque queria criar raízes, aprumar-se, ter um rumo definido para sentar praça neste mundão de Deus. Afinal, ouvira seu pai dizer, “em Roma como os romanos”. Mimetizar-se, ser igual ao camaleão, o louva-Deus, o bicho-pau, era de boa guia para escapar aos predadores de paus de arara.
Com o tempo, o Rio ficou pequeno, quase um córregozinho para a visão pós-horizontina dele. Afivelou as malas e danou-se pelos ocos do mundo. Só não foi onde não quis, porque não quis. Mas tem sustança para falar de Seca e Meca, do que viu e que quase não acreditou, só dando crédito porque os seus olhos, que a terra há de comer, foram testemunhas de vista, a mais acreditada das provas.
(`Qui pra nós, não é pra mode gabá-lo, mas até conheceu umas figurinhas carimbadas da História do Brasil: Sua Alteza, o Príncipe Dom Eudes de Orleans e Bragança e sua digníssima consorte, a princesa Mercedes, o compositor Herivelto Martins, o cantor e compositor Luiz Vieira, entre outros).
De vez em vez batia uma mistura de calundu com banzo, uma raiva dos costumes estranhos e uma saudade da vida de quintal e de terreiro que tivera, tanta, que o deixava em maus lençóis de edredom em pleno calor.
Abandonou o emprego, onde andava sem sair do lugar, e decidiu fazer um estágio para voltar às origens. Deu por si em Itumbiara, na distante Goiás, onde morava a sua irmã Natércia. Precisava readaptar-se e nada melhor que um mergulho em profundidade nos sertões recônditos do Brasil
Fui revê-lo já iniciado os anos oitenta, graduado pela Faculdade Nacional de Direito.
Eu havia instalado uma editora e ele buscava a publicação do livro “Apólogos do Nascer do Sol”. Então ele prestava assessoria a Valério Mesquita, paradigma-macaibense, na Fundação José Augusto. Ajustamos os detalhes da edição e, desde então, tornamo-nos amigos e, a intimidade me trouxe uma visão mais acurada da alma Janseniana.
Mantinhamos afinidades várias: no gosto pela boa música – as suítes para cello de Bach, interpretadas por Yo-Yo Ma – os amarelos e azuis delirantes, os corvos, os trigais, os girassóis e, as noites estreladas de Van Gogh, o paisagismo sépia de Vermeer, as figuras andróginas e os santificados de Caravaggio; as leituras inquietantes, que nos roubavam o sono e nos punham em estado de dúvida – Saramago, Thomas Hardy, Kazantzakis, Kafka – e o providencial Kardec, o recorrente Kardec.
Também o amor pela natureza e uma especial atração pelos pássaros e pelas flores. O meu amigo ama os canários e as orquídeas; eu, os bemtevis, os golinhas; os jasmins, os bugaris e as açucenas. O jogo de cartas (buraco) sempre em dupla comigo, tendo como adversárias a minha mulher, Jailza e a amiga querida Lélia Silveira; e o cinema.
Assim como eu, também ama os casarões, os velhos abrigos grávidos de história, com uma alma imortal. Por isso habitou por longo tempo o Solar da Madalena, onde se deleitava como se fora donatário de um império. Ali criou cavalos e bois, marrecos, patos imperiais, cisnes, cacatuas, aleitou orquídeas, estimulou jasmineiros, cultivou mais amigos do mundo espiritual, deu à luz livros e composições. Foi um grand seigneur, como lhe é dado ser.

Trato do amigo Jansen Leiros Ferreira, um multifário – escritor, musicista, pintor bissexto, compositor, geneticista, evangelizador com surpreendente fluência verbal e cidadão do mundo, com périplos na Oropa, França e Bahia. Habitante daqui e d´algures, onde o conduza a sua vontade liberta e independente de passarinho nunca exilado nem vítima dos alçapões da vida.
Jansen crê num único repositório da verdade absoluta: a doutrina espírita kardecista, a partir do Evangelho Segundo o Espiritismo. Quanto ao resto tudo se concentra num relativismo que a dialética ajuda a esclarecer. Sectário? Não, crente. Se não fosse essa fé que guarda no destino do homem, na sua verdadeira natureza e condição humana, talvez já tivesse migrado para o nihilismo, tantos e tamanhos foram os desencontros que testemunhou e vivenciou, ele próprio.
Não fosse a certeza que acalenta da existência de uma planilha cármica, proposta pelo próprio ser, onerado pelas obrigações pretéritas não realizadas em trânsito para outra existência, jamais entenderia porque tanto sofrimento e tantas frustrações amealhadas pelos que se conduzem com moderação, equilíbrio e um quê de bondade herdada do Criador, mesmo mesclada pelas nódoas da constituição humana.
Nem porque aqueles que se excetuam do contexto do “povo de Deus” obtém tanto sucesso material, tantos teres e haveres e são donatários do poder , da glória...e da impunidade.
Pacificou-se desde que se descobriu habitante de dois planos sensoriais: um, dito real, que emerge dos sentidos humanos comuns; outro, que se distingue do primeiro porque não se revela pelo olfato, paladar, visão, audição ou tato, embora também possa assim ser expresso, mas pela possibilidade de enxergar, escutar, comunicar-se e sentir com a alma. E até concede como recurso argumentativo – com a mente, para que se aquietem os investigadores (quase dizia os “inquisidores”) científicos.
Quantas e quantas infinitas vezes tresvariou e foi harmonizado pela fé, por amigos invisíveis, que nunca o deixaram em solidão?
E também porque, nessas ocasiões, procura compensar-se, dando testemunho da sua crença e reforço à sua missão evangélica, escrevendo os seus comoventes romances espíritas, de sua própria lavra, embora intuídos pelos habitantes do mundo invisível.
Talvez seja o autor espírita norte-rio-grandense com o maior número de títulos publicados sobre a temática espírita, sem prejuízo da qualidade das escrituras. São obras de ficção com conteúdo moral, destinadas a servirem de referência ao processo de desconstrução e reconstrução do ser humano, no milênio de sua redenção.
Aliás, transijo. Não sei se posso classificá-las como ficção, já que a arte imita a vida e também porque elas ou são sussurradas ao ouvido do meu amigo ou lhes são sugeridas.
Fragmentos de Reflexões, Contos de Entardecer, Apólogos do Nascer do Sol, Prelúdios de um Novo Dia, Adágio de Esperanças (o seu preferido), Sonata do Alvorecer de Aquarius, Garimpando a Luz e o recém-lançado Aleluia do Homem Novo. No prelo, a única obra memorial, as encarnações da irmã Daphne, falecida tragicamente: Daphne – Compromissos e Resgates.
Esse último livro foi escrito a partir do pedido da própria irmã, através de uma médium que participava de um congresso espírita. O autor faz o seguinte relato: “...fui assistir à palestra da médium Marilusa Vasconcelos, portadora de mediunidade pictórica que, em brevíssimo tempo executava quadros representativos dos mais célebres pintores do mundo...De repente fui atraído pelo questionamento de alguém que consultava a platéia para saber se havia algum parente de Daphne. Se houvesse, que subisse ao palco pois havia uma mensagem. Subi e quando a médium me identificou disse-me que a mensagem era a seguinte: “Jansen conte a história das minhas existências. Beije meus pais e minha irmã”.
Em seguida, a médium entregou-me uma tela que mostrava um rosto de mulher envolto em chamas – tal como a minha irmã caçula havia desencarnado.”

O meu amigo tem dupla natureza, eis que usina magnetismo. Nele habitam dois seres antípodas: Janjão e Filisteu.
O primeiro teria sido sanfoneiro nas folganças forrozeiras e nas trabalhosas feiras de Macaíba, daí o nome Janjão Sofoneiro (assim mesmo). Teria sido um espírito bonachão, cheio de prosa e repentes, riso emoldurado na boca escancarada. Um boêmio colecionador de noites de dança, sanfoneios e cerveja. Sem eira nem beira, desenraizado por querer, espalhava-se pelas quebradas do agreste de Coité. Já que só tinha ele, era ele mesmo.
Quando desencarnado, Deus aproveitou a sua alegria e o mandou ser cantor e tocador no coro de anjos. Tornou-se, no plano evolutivo, um missionário contemplativo, mais para o Zen budismo que para o esoterismo. Era esse-um que habitava Jansen: uma alma poética, reflexiva, amante da natureza, mal comparando, um sertanejo diria sem querer ofender, que era como um boi capinando, aquela placidez bovina de quem não sabe a força que tem e não está nem aí para tal sabença. Queria mesmo era poetar, encher os olhos de beleza e estar em paz com Deus.
Aquele-outro era diferente.Olho raiado de vermelho, nó na goela, cara mais trancada que baú de pão-duro, era rancoroso, mandão e brabo. Que ninguém se metesse a besta ou o cipó brocha ou o relho assobiava e o lombo era lenhado. Besta-fera do cangaço, fez trato com o tinhoso para fechar o corpo e encorpar a valentia.
Quando se foi desse mundo, ficou entrevado e, depois de muita teima dos seus benfeitores, encastoou-se em Jansen, para aproveitar a valia de Janjão e o azougue do médium.
Vez em quando, pegava Janjão dormindo e o guardião sanfoneiro de guarda arriada e dava trabalho, apresentando-se como se fosse o pobre do encarnado. Vixe Maria! Aí se espalhava e quem não quisesse sobra que saísse de perto.
Isso explica o vai-e-vem dos bons e maus instantes do meu amigo. Aliás, todos temos os nossos Janjões e Filisteus, com outros nomes. Os mais afortunados e letrados, com nomes impronunciáveis tirados da psicologia e da psiquiatria. Os mais precisados, com “encostos” que atendem pelos nomes conhecidos das artes das mandingas.

Jansen é exímio pianista, tendo sido aluno do Maestro Waldemar de Almeida, Dulce Cicco, Nilda Guerra Cunha Lima, Gerardo Parente e José Kaplan. Estudou canto com a Professora Atenilde Cunha e Nino Crime e regência coral com Pedro Santos e Padre Pedro Ferreira. Criou a “Camerata Oswaldo de Souza” e o “Quinteto Oficina”.
Compositor de uma dezena de peças harmonizadas para orquestra de cordas, estas foram apresentadas em concerto realizado pela referida Camerata, na Aliança Francesa, em homenagem à irmã Daphne.
Orador com fluência verbal e voz empostada, é freqüentemente convidado a proferir palestras nos diversos centros espíritas daqui e de outras cidades.
Seu amor pelos animais em geral e em particular pelas aves o fez pesquisador da genética, processando inúmeros e bem sucedidos cruzamentos. Já foi juiz do Kennel Club do Rio de Janeiro, onde morou, criou cavalos e gado de raça, galinhas e canários belgas, tendo sido presidente da Associação dos Canaricultores do Rn.
Sua maior paixão, no entanto, foi a criação experimental de aves de cor branca, resultado de minuciosa busca e pesquisa de cruzamento genético. No Solar da Madalena, onde morou longo tempo, manteve um plantel composto por galinhas Leghorn, perus, patos marrecos, gansos, guinés, uma cacatua e um bando de cisnes, todos imaculadamente brancos. Por que? Quem sabe...talvez impulso estético, a sublimação da pureza para as aves, seres divinos...
Porque Jansen é um esteta disciplinado. O modo como se veste, com aprumo, método e harmonia uniformista, revelam essa preocupação. Sapatos combinando com cinturão e pulseira do relógio; camisa da cor do mostrador do relógio e das meias; geralmente usa paletó, nesse caso, a gravata tem de se harmonizar com a cor do terno. É um dândi.
Sua formação jurídica o levou à advocacia, em Natal iniciou-se no ofício no escritório de Nei Marinho, depois se estabelecendo como profissional liberal autônomo. Foi juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral, Assessor Jurídico do Estado do Rio Grande do Norte e Presidente do Tribunal de Ètica da seccional da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ostenta diversas honrarias – títulos, comendas e homenagens – é sócio do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte e membro da União Brasileira de Escritores/Rn.
Atualmente, aposentado do serviço público estadual, pratica a advocacia e é Assessor de Relações Institucionais da Federação do Comércio do Rio Grande do Norte, cargo que exerce com maestria, pois, cidadão do mundo e cultivador de relações pessoais, nada mais faz do que ser o que é.
Mas, os seus maiores galardões talvez tenham sido a de filho do honrado Aguinaldo e da dedicada e terna Leonor, sua mãe – que perdeu a beleza do nome, registrando-se apenas Maria, por esquisitice do tabelião. Pai de seis filhos, muito especialmente da doce Maria Leonor, recolhida por Deus para a semeadura do carinho entre os aflitos. E dez netos. Fechando com chave de ouro o ciclo efêmero do seu trânsito planetário, Deus o abençoou no reencontro com Anair, a que tem sido um pouco do seu quase tudo, a compensação dos muitos sofreres e desencontros, companheira, companheira, companheira...


PEDRO SIMÕES – Professor de Direito aposentado. Escritor e Advogado.
Interesse Público
Justiça sem censura
Ivan Lira de Carvalho

TRIBUNAL REGIONAL ELEITORAL DO RIO GRANDE DO NORTE
Representação Eleitoral n.º : 4059-21.2010.6.20.0000
Assunto: Propaganda Eleitoral Extemporânea Negativa
Representante: COMISSÃO EXECUTIVA REGIONAL DO PARTIDO HUMANISTA DA SOLIDARIEDADE – PHS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE
Advogada: Renata Colombieri Mosca
Representado: ALESSANDRO BATISTA SANTOS
Juiz Auxiliar: Ivan Lira de Carvalho

I – BREVE RELATO DA CAUSA

1. Em síntese, trata-se de representação ajuizada pela COMISSÃO EXECUTIVA REGIONAL DO PARTIDO HUMANISTA DA SOLIDARIEDADE – PHS NO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE em desfavor de ALESSANDRO BATISTA SANTOS, proprietário do blog sediado na Internet, com endereço “www.aleagora.blogspot.com”, pedindo a aplicação das sanções previstas no art. 36, §3º, da Lei n.º 9.504/97, por prática, em tese, de propaganda eleitoral negativa extemporânea, em relação ao pleito que se realizará no próximo dia 03/10/2010, mediante exposição de matéria ofensiva a pessoas filiadas ao PHS e pedido liminar de retirada das peças publicitárias ofensivas afixadas no blog acima mencionado.

2. Sustenta que o mesmo blog “faz elogios a outros pretendentes, sendo que esses fatos não são permitidos pela legislação vigente”.

3. Trouxe à colação impressões do mural exposto no blog da Internet e mídia em DVD.

4. Está relatado.

II – DECISÃO INTERLOCUTÓRIA

5. Os partidos políticos são instituições imprescindíveis ao processo democrático, fato que lhes confere legitimidade para controlar os abusos porventura praticados durante o período de campanha eleitoral ou mesmo na fase que a essa antecede, principalmente quando se trata de filiados à própria agremiação política atingida.

6. Com efeito, espaços publicitários que se voltam à prática de ilicitudes propagandísticas favorecedoras de candidatos ou partidos (mesmo que através da negação de qualidades dos pretensos disputantes, como é denunciada na espécie), merecem atenção e reprimenda do Poder Judiciário.

7. Assim, se não for seriamente ilidida a argumentação traçada pelo Representante, através de contraprova eficiente trazida pelo Representado, será razoável que se enxergue, na espécie, atentado contra a vedação de propaganda eleitoral antes do dias 06.07.2010 (Resolução-TSE nº 23.191/09, art. 2º, em combinata com o art. 36, caput e § 2º, da Lei 9.504/970;

8. Contudo, na espécie, o que deve ser combatida é a divulgação de fatos depreciativos que levem o eleitor a não votar em determinada pessoa, provável candidata às eleições vindouras, podendo, a priori, ser tipificada como propaganda antecipada negativa, o que já foi objeto de manifestação do Colendo TSE no Respe 20.073/MS, Rel. Min. Fernando Neves, DJ de 13/12/2002.

9. Frise-se que, nesta fase de cognição sumária, cumpre ao relator examinar e sopesar, apenas e tão somente, se os fatos e provas apresentados na petição inicial agasalham, com rigor e precisão, os requisitos autorizadores do provimento de ordem liminar, notadamente o fumus boni iuris e periculum in mora.

10. Fazendo-se uma análise do conjunto probatório dos presentes autos, prima facie, entendo que a peça publicitária em apreço, exposta em blog da internet, contendo imagens depreciativas, assume contornos de propaganda eleitoral extemporânea negativa.

11. O contexto da notícia veiculada, com a divulgação de costuras político-partidárias praticadas por pré-candidatos a cargos públicos, aliada às imagens grosseiras e deselegantes expostas em blog sitiado na internet, embute no inconsciente dos eleitores-internautas a idéia de que não se deve votar em determinada pessoa, candidata às eleições que se avizinham.

12. As provas trazidas aos autos, inclusive com impressões e mídia do conteúdo da peça publicitária exposta no blog da internet, esboça verdadeira fumaça de propaganda antecipada negativa.

13. Desse modo, fazendo juízo perfunctório das provas colacionadas aos autos, vislumbro a presença do fumus boni iuris.

14. Quanto ao segundo requisito autorizador da medida liminar pleiteada, ou seja, o periculum in mora, observo que, se deferida a prestação jurisdicional apenas quando do julgamento final, a igualdade entre os candidatos nas eleições que se avizinham poderá ficar ameaçada.

15. Portanto, verificando a probabilidade de ineficácia do provimento definitivo, entendo presente o periculum in mora.

16. De mais a mais, qualquer prática de conduta agressiva tendente a atingir a honra e imagem das pessoas é atividade que merece ser suspensa e inibida de pronto pelo Poder Judiciário, principalmente diante do revestimento constitucional que esses bens jurídicos detêm.

17. Nesse sentido, a prudência recomenda a retirada dos textos e imagens mencionados pelo representante, apontadas como anti-propagandas do PHS (e, por conseguinte, dos seus filiados), contidas no blog www.aleagora.blogspot.com, inserida no dia 23 de junho de 2010 (art. 461, § 4º do CPC). Digo, especificamente, da matéria à qual se tem acesso através do htm http://aleagora.blogspot.com/search?q=pai%C3%B3, nas retrancas “Não aguento mais essa diarréia” e “Grupo liderado por ex-prefeito apoiará a dobradinha João Maia e Fábio Dantas”, razão pela qual DEFIRO parcialmente a liminar, ordenando a imediata retirada, do blog em apreço, dessas retrancas, sob pena de aplicação de multa diária de 1.000,00(hum mil reais) em desfavor do Representado, pelo descumprimento da obrigação, nos termos do art. 461, § 4º, do CPC.

18. No tocante à segunda parte do pedido liminar, no sentido de que o representado “ se abstenha de veicular propaganda eleitoral negativa antecipada”, indefiro a tutela inibitória, eis que configura pedido demasiadamente genérico, com características de censura prévia, expressamente vedada no comando do art. 220 §2º da Carta Magna.

19. Notifiquem-se o Representante e o Representado para tomarem conhecimento desta decisão, este último também para a apresentação de defesa, no prazo legal.

20. Publique-se, de imediato.

Natal, 09 de julho de 2010.
Juiz Federal IVAN LIRA DE CARVALHO
Juiz Auxiliar da Propaganda Eleitoral.
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FONTE: Jornal de Roberto Guedes (16/7/2010)

quinta-feira, 15 de julho de 2010

RECORDAR É VIVER

----- Original Message -----
From: marivaldo ernesto dos santos
To: undisclosed-recipients:
Sent: Tuesday, July 13, 2010 1:26 AM
Subject: Natal: Uma província à luz do sol!

Amigo, esta é minha praia,
onde também fui "artista," Rsrsrs
me lembro de quase tudo e
comheço a metade do pessoal.
alguns são bons amigos,
contracenam comigo até hoje.
Mariva.


ANOS DOURADOS

Clotilde Tavares

Na semana que passou vi uma matéria no RN-TV sobre a decadência que tomou conta da praia dos Artistas. Mostrava a insegurança daquele pedaço, entregue a assaltantes, e a visão triste das meninas prostitutas a desfilar sua tragédia pelas calçadas. A matéria também falava de uma época em que aquele pedacinho de praia era o point mais descolado de Natal. Sei disso, porque vivi essa época.
Os anos dourados da Praia dos Artistas começam mais ou menos em 1975, quando a grande frequência da galera que fazia teatro, artes plásticas e música começou a frequentar aquele pequeno trecho de areia. Por causa exatamente desses frequentadores é que o local terminou ficando conhecido como Praia dos Artistas. A patir das onze horas da manhã, o pedaço começava a se encher de gente. Da Faculdade de Medicina desciam Zizinho, Vac-Hone, Carlos Piru, André de Mello Lima, Napoleão Veras... Mirabô morava ali onde hoje é o Novotel, e na casa dele sempre havia um artista hospedado: numa semana era Alceu, na outra Gonzaguinha, Fagner... Os mais assediados, mais famosos, como Rita Lee, ficavam na granja de Chico Miséria, que também era um dos frequentadores da praia.
Sérgio Dieb fazia artesanato em couro e Kátia Meirelles e Claudinho comandavam uma boutique louquíssima cheia de roupas divinas. Chico Kurroutek, cearense, desfilava seus cachos e bermudões coloridos pelas areias. No barzinho que ficava embaixo do Salva-Vidas, o Caravela, ficavam os surfistas e era uma beleza ver Brás entrar no mar, com seus louros cabelos de viking. Os campeonatos de surf também eram famosos, apresentados ao microfone com muita gíria e loucura por Big Terto (hoje transformado no publicitário Tertuliano Pinheiro), que tinha também um programa na rádio – não lembro qual – em que tocava muito rock.
À noite, nos dividíamos entre o Castanhola e o Asfarn, bares onde comíamos isca de peixe com molho rosé e sempre havia confusão na hora de pagar a conta. No Asfarn, havia uma cadelinha chamada Nuvem, adotada como mascote pela turma: Jácio Fiúza, Tião e Beto Madruga, Reinaldo Cabeçote, Petit das Virgens, Chico Guedes, Renê, Ícaro, Sapinho, Juliano Siqueira, Cacá de Lima, Xêxo, Mororó, Gurgel, e nós, as garotas: Gleide Selma, Cecília e Graça Pinto, Gracinha Ferreira, as irmãs Branca e Kalica, Verinha, Cristina (as duas: a de Piru e a outra, irmã de Carmen), Malu, Graça e Fafinha Arruda... Na eleição de 1976 – se não me engano – nos juntamos todos num mutirão para eleger Sérgio Dieb nosso vereador, o que fizemos, e era uma graça ver Serginho usando paletó e gravata, dizendo "Vossa Excelência podes crer..."
Eram dias e noites de muita criação. Poesia, literatura, teatro, música, cada um naquilo que sabia fazer. Tudo isso ao som de Belchior ("Eu sou apenas um rapaz..."), Fagner ("Ave noturna"), Ellis Regina ("Como nossos pais"), João Bosco ("Transversal do tempo"), Gonzaguinha ("Doidivanas"), Milton Nascimento ("Paula e Bebeto") e Chico Buarque ("Meus caros amigos"). Bebíamos qualquer coisa que contivesse álcool e os nossos vestidos eram bordados de lantejoulas. Os rapazes (com exceção dos que faziam política) usavam camisas floridas e cabelos enormes e passávamos a noite de bar em bar. Às vezes, a violência da ditadura descia o seu punho selvagem sobre nós, e os tiras entravam nos bares, ameaçavam todo mundo, derramavam no chão o conteúdo de nossas bolsas. Mas na maioria das noites tudo era curtição na República Independente da Praia dos Artistas onde amanhecíamos o dia e muitas vezes subíamos direto para a Faculdade, onde tentávamos assistir às aulas, mortinhos de sono.
Em noite memorável, arrastamos o poeta e escritor pernambucano Jomard Muniz de Britto numa dessas maratonas e ele, encantado com as nossas loucuras, pronunciou a frase que ficou famosa: "Natal é a Londres nordestina!" Naquela época, poeta, era mesmo. Vinte e cinco anos atrás, numa Natal muito menor do que hoje, fazíamos moda e estabelecíamos atitudes. Daquele núcleo de gente maluca surgiu a Banda Gália, que revolucionou o Carnaval de rua na cidade e que também fez história, em época posterior.
Mas o movimento da vida é esse mesmo, e como diz João Bosco na música memorável não podemos ficar "parados dentro dum táxi, numa transversal do tempo". Mudamos, evoluímos, crescemos, ficamos mais velhos e hoje somos empresários, profissionais liberais, políticos e, é claro, artistas. Alguns já se foram: Sergio Dieb, Chico Miséria, André de Mello Lima, Malu Aguiar...
Não podemos mais viver aquela época, que pertence ao passado. O que dá tristeza é ver aquele belo pedaço de praia, que foi palco de um momento de intensa efervescência cultural para a cidade entregue ao abandono e ao descaso. No nome da praia – Artistas – está a sua vocação e seu destino. Talvez com um centro de Artes e um pequeno espaço para shows e espetáculos de teatro – um teatro de bolso, com uns 100 lugares – a Praia dos Artistas poderia ser conduzida de volta ao seu clima original. Fica o recado para os donos do poder e do dinheiro que, quando querem, podem e pagam.

Sábado, Março 05, 2005

Uma província à luz do sol

Reeditado a partir do
http://geocities.yahoo.com..br/natalnareia/

O tempo passava e o mar se tornava cada vez mais próximo, mais presente. Nos anos trinta a quarenta, ele era pouso obrigatório das famílias de classe alta, que durante o verão migravam para a areia, mudando-se completamente para as suas residências praieiras. Eles levavam mobília, pertences, empregados e, por até três meses, fixavam-se ali. Não havia visitas esporádicas à cidade. O reabastecimento dos mantimentos ficava por conta de algum criado, que ia e voltava da cidade à pé, trazendo os pacotes nos braços.

Muitas de nossas praias urbanas encontravam-se ainda selvagens, seu grande atrativo era a tranquilidade, o repouso. Natal já possuia muitos dos traços urbanos da época e as pessoas buscavam modos alternativos de vida durante as férias, fugindo da cidade.Os veraneios de antes eram bem semelhantes aos de hoje, as diferenças ficavam por conta da relação entre as pessoas, todos ali eram amigos, parentes, conhecidos ou filhos de conhecidos. Havia segurança e confiança nos nativos do lugar. Os pescadores da área ajudavam a vigiar as casas e tinham livre acesso às suas portas. Claro, o mar era um prazer para um público seleto. Contavam-se poucas casas de veraneio, mas estas congregavam bastante gente, grandes famílias com muitos filhos, primos e sobrinhos.

Os novos exploradores do mar tinham liberdade para conhecer a área e descobrir os brinquedos do litoral. O território do Forte dos Reis Magos era aberto, sem vigilância, o que o tornava cenário favorito dos pique-niques organizados na época, uma diversão que durava um dia inteiro. A rotina dos dias resumia-se a passeios, brincadeiras na areia e banhos de mar, este último, o mais apreciado. As noites ficavam por conta dos violões dos seresteiros, que reuniam toda a gente das vizinhanças nos alpendres, embalando flertes e conversas com suas canções, que fluiam ao sabor da maresia.

O médico Jahyr Navarro, antigo veranista da praia de Areia Preta, - a primeira a abrigar esse tipo de casas - acompanhou o desenrolar de três décadas naquelas areias. Ele recorda que quando menino seu passatempo favorito era escorregar nas dunas sentado numa prancha de madeira, lubrificada com um pouco de cera de vela. Isso, em 1935, muito antes de alguém associar essa prática ao esporte de neve e apelidá-la de "skibunda". Navarro lembra de detalhes do cotidiano nas praias, como o ônibus amarelo da Força e Luz, única alternativa de transporte além do bonde. "Era um ônibus amarelo da companhia de luz elétrica, que quando chovia era obrigado a ultrapassar o barro acumulado na ladeira do sol de marcha ré, as crianças o usavam como meio de chegar até a escola".

Saudoso daquele tempo, Jahyr recorda ainda a atmosfera das praias na década de cinquenta, quando se reunia com seus companheiros no bar "É Nosso", para ensaiar as marchinhas de carnaval que seriam cantadas nos bailes do Aero Clube - sucessor do Natal Clube na preferência do high society. Vem dessa época também, o surgimento da Praia dos Artistas, mais reservada que as demais. A origem do apelido deve-se a fama de ter hospedado os grandes artistas do rádio, como Cauby Peixoto, Francisco Alves e Maria Creuza, que a escolhiam por estar mais distante da concentração de pessoas. Lá eles podiam tomar banho isolados na prainha. Algum tempo depois a fama de esconder artistas começou a atrair mais gente para a praia, afastando os frequentadores ilustres, mas, deixando o rótulo.

Começava a se espalhar a moda da paquera na areia, "Conhecíamos o ‘ponto’ onde cada moça tomava sol. Elas sempre escolhiam o mesmo lugar, para facilitar o acesso dos pretendentes", afirma o médico. Claro, todo o envolvimento transcorria com muita discrição, não se sonhava ainda com as ousadias de hoje em dia.

Na década de cinquenta, as praias de Natal tiveram a exibição do que seria um traje de banho moderno. A primeira mulher a pisar vestida de maiô numa praia de Natal foi uma aeromoça espanhola, trazida por um rapaz chamado Faruk. A visão das suas curvas ajustadas na peça, que se estendia até os joelhos, desencadeou um tumulto imprevisto nos rapazes, que ameaçaram reduzir bem mais o tamanho do traje, arrancado-o aos pedaços. Felizmente, a moça foi protegida e seu maiô escapou ileso. Era a modernidade começando a arranhar nosso provincianismo.

Música, arte e psicodelismo na areia

Mas, cedo ou tarde as mudanças chegariam. Nos anos sessenta a concentração de banhistas se deslocaria de Areia Preta até a Praia do Forte, com suas piscininhas naturais e a imponência do Forte dos Reis Magos guardando o lugar. Para lá se dirigiam as famílias, crianças com pás e brinquedos de areia, casais de namorados que caminhavam de mãos dadas sob o olhar de todos.

A Praia do Meio, na sua condição de ser do meio, deixava que viessem a ela as classes mais baixas: quem descia das Rocas ou tomava o ônibus no Alecrim ou Cidade da Esperança. O pessoal de uma praia não invadia as areias da outra, cada um consciente de seu espaço.
Com os anos setenta, novos ventos sopraram naquele pedaço de praia. A revolução mundial dos costumes refletia por aqui. Contracultura, movimento hippie, baseados, tudo isso vinha aportar também em nossas praias. Filmes como Easy Rider e Woodstock eram exibidos na Sessão de Arte do cinema Rio Grande, discos dos Beatles e dos Rolling Stones evaporavam das prateleiras. O comportamento jovem passava a ter outro relevo. Tudo era determinante, as roupas que se usava, aquilo que se comia e, claro, a praia a qual se frequentava.. Segundo o músico Luiz Lima, que viveu ativamente essa época, " no início da década de setenta, começou a acontecer uma transformação nos ares e nos lugares da cidade, em toda parte a moçada começava a se dividir. De um lado ficavam os ‘caretas’, de outro, nós, os ‘malucos’ ".

Para os caretas, tudo continuaria igual, já os outros precisariam de mais espaço para estravazar sua arte e inconformismo, distante da área militar e família da Praia do Forte. Foi aí que se descobriu a Praia dos Artistas.

A praia deixava de ser um lugar destinado apenas a caminhadas ou banhos de sol e mar, tornando-se porto para o deleite do corpo e da mente, aproveitado ao longo de todo o dia e também durante a noite. Logo começaram a surgir bares, barracas, quiosques, boates, espaços culturais, que se estendiam da Praia dos Artistas até a Praia do Meio, que se tornaram cartão de visita de Natal e grande opção de quem quisesse conhecer a noite da cidade.

As areias ganhavam o colorido das batas indianas, camisetas explodindo em motivos psicodélicos, e o brilho dos corpos ao sol rivalizava com o brilho das lantejoulas ao luar. Arte e cor eram trazidas por uma grande leva de estudantes universitários, pretensos artistas locais, que tinham na Praia dos Artistas seu ancoradouro. O país atravessava uma fase de ditadura e opressão, talvez por isso, o ato de criar se fizesse tão necessário.

Bares como o Tirraguso, o Artmanhas, a Casa Velha se enchiam de rostos jovens. Eram atores, dançarinos, artistas plásticos, poetas ensaiando o que ia ser a época de ouro da cultura da cidade. Todos fazendo uso daquele espaço para mostrar o que sabiam. E não parava por aí...o tinham as barracas toscas da Praia do Meio, ainda na areia, como a famosa "Barraca da Marlene" para quem queria sentir o mar perto. "Era nas barracas que nos reuníamos para compor as melodias da banda Gato Lúdico, eu, Jaime Figueiredo, Carlos Lima e Claudio Damasceno. Lá vivíamos noitadas acompanhados do violão, dos mixes de cachaça com cerveja e tiragosto", lembra o arquiteto e artista plástico Vicente Vitoriano.

Na época, a praia possuia dois espaços culturais: a Galeria do Povo e o Artelier. Também abrigando o primeiro restaurante macrobiótico de Natal, onde o pessoal ia se liberar das toxinas consequentes dos excessos noturnos com os pratos do proprietário Véscio Lisboa. Na segunda metade dos anos setenta, surgiu o Festival do Forte, idealizado pelo músico Luiz Lima, o artista plástico Sandoval Fagundes e o escritor Carlos Gurgel.

"O festival acontecia na terceira lua de cada mês e era um momento de muita música, muita poesia e muita loucura, depois disso, nunca houve nada em Natal tão contundente para nossa cultura como o Festival do Forte", recorda hoje Gurgel, com os olhos cheios de nostalgia. Yuno Silva, estudante de Comunicação, era criança nesse período, mas lembra de quando era levado pelos pais junto com o irmão para curtir o festival, "Os moleques ficavam pulando naquela casa de armar no meio do Forte. Era incrível, sendo criança, ver de perto artistas como Raul Seixas, Gil, Jorge Mautner, Jards Macalé...são tempos que não voltam mais."

Durante os anos setenta e oitenta, a praia dos artistas era um lugar concorrido durante toda semana. A jornalista Cione Cruz diz que " a partir das quintas feiras, íamos à praia de dia para tomar sol e à noite exibíamos nosso bronzeado nos bares e boates de lá". Havia ainda uma turma que fazia da praia dos artistas a sua casa, gente que chegava de manhã, depois da aula, de mochila nas costas, trocava o calção de banho e ia jogar frescobol nas areias ou surfar naquelas ondas. Um bom exemplo desse tipo de frequentador era o jornalista Flávio Rezende, assíduo jogador de frescobol, "chegava por volta da 11, 12 horas, depois das aulas do curso de Comunicação da UFRN e ficava até às 18 horas". Nos anos oitenta se intensificou também a prática do surf, daí vieram o campeonatos ao bar caravela, transmitidos nos alto falantes. "Sinto saudade do rock muito alto que tocava durante os torneios, dos amigos sem hora pra ir embora, as paqueras na beira da praia e os beijos na boca apaixonadíssimos, que até deixava a gente meio fraco..."

Com a ida dessas décadas, foram-se também a grande maioria dos frequentadores do lugar. A maturidade e as ocupações iam distanciando pouco a pouco os antigos. E a falta de segurança inibia a formação de uma nova geração de praieiros. A reurbanização e construção dos quiosques de cimento, ao invés das barracas, não foram suficiente para assegurar a reestruturação da área.

Natal acontecia agora bem longe dali. As diversões eram outras, as praias também. A burguesia ia de carro até os distantes litorais norte e sul, procurando aquilo que já não se via mais no urbano: segurança, tranquilidade. O desfile de beleza nas praias urbanas, as paqueras no calçadão, davam lugar a um outro tipo de oferta. O "quem me quer" adquiria outra feição com a explosão do turismo e a procura dos estrangeiros pelas mulheres locais.

Somente o mar continua o mesmo

O mar urbano traz nas suas espumas as lembranças... a bruma e o seu cheiro são os mesmos, mas a ambientação mudou.
Espigões enormes dividem mar e cidade, no alto da ladeira do sol.

Arredores menos disputados, deslocados e diferenciados. A praia dos artistas concentra alguns bares, duas boites e um restaurante badalados, dividindo espaço com lojas e feirinhas de artesanato. Dividindo seu público com as feirinhas de artesanto. Da praia do meio em diante, é visível o abandono.

Um outro hotel e algumas pousadas, o centro de artesanato e os quiosques esquecidos, num lugar antes abrilhantado pelo público mais exigente da cidade.

A Tenda do Cigano, com seu caldo de feijão a
cavalo, era o fim de noite para muitos

"Quando a barraca era na areia, o movimento era muito bom. Hoje a época é outra", fala a saudosista Marlene Dias da famosa "Barraca da Marlene", descrente de dias melhores, nos seus 22 anos de praia. Para os frequentadores antigos das praias não restam dúvidas: as barracas à beira-mar deixaram saudades.

Simbolicamente os atuais quiosques chegaram para assistir ao fim áureo. A segurança, agora fragilizada, um dia já garantiu que as pessoas pudessem frequentar e visitar os locais praieiros com tranquilidade.

Enquanto foram redutos de muitos turistas que ficavam hospedados no Hotel Reis Magos, as Praias dos Artistas e a do Meio, viviam sua época de agitação. Hoje, o turismo é uma questão abordada com delicadeza por inferir imediatamente a exploração sexual das redondezas. Os turistas que procuram se instalar nas pousadas dessas praias, muitas vezes estão ali por economia. Como é o caso da jornalista sueca Agatha, 34 anos e o seu marido Chrytian, de 37. Eles dizem preferir fazer de conta que não vêem o que acontece de feio nas proximidades da pousada e ir conhecer outras praias do Estado.

Os demandos socioeconômicos encontrados pelas areias urbanas da cidade do Natal deixa evidente o processo de decadência que está sendo vivido. "Encontramos nas praias crianças com fome, envolvidas com drogas e prostituição. A sociedade e os governos não podem permitir isso de modo algum, principalmente de maneira tão visível como aqui", comenta Andréia Barros, que trabalha no comércio de artesanato na praia do Meio.

As praias já foram redutos de grupos que passavam horas agradáveis curtindo todos os prazeres possíveis, e produzindo arte e cultura na cidade num dos painéis mais bonitos. Agora, os poucos resquícios da invasão das artes dos anos anteriores são guardados. Somente as feiras de artesanato e os vendedores de artefatos hippie permanecem. Como o artesão Henrique Eduardo, 32, formado em Engenharia Textil, que hoje sobrevive da venda de suas bijouterias e tem os turistas como clientes."Gosto de trabalhar nas ruas, quando não estou aqui vou para Ponta Negra".

As perspectivas para o futuro do comércio e dos moradores das praias ainda não são muito calorosas... projetos de revitalização abrangentes devem ser providenciados, sendo a revitalização humana talvez a mais urgente.... para um pedaço da cidade que tem estimulado a deploração.


OBS.
Não foi possível editar as fotografias ilustrativas dos textos. VISITE O SITE
NATAL DE ONTEM (via google - www.nataldeontem).


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