sábado, 30 de setembro de 2023
sexta-feira, 29 de setembro de 2023
UM TEATRO PARA MACAÍBA
Valério Mesquita*
Raríssimos são os municípios do Rio Grande do Norte com tradição de arte cênica. Macaíba é um deles. Desde o tempo dos Albuquerque Maranhão, apaixonados pela música e pelo teatro, na casa do velho Amaro Barreto que encomendava ao jovem Henrique Castriciano de Souza (1874-1947) peças para serem apresentadas em sua casa. É de Henrique a peça “A Promessa” que inaugurou o teatro “Carlos Gomes”, hoje “Alberto Maranhão”. Nas décadas de 1910 a 1930, a teatralização resumiam-se aos dramas (como eram inicialmente denominadas as peças). Foram de autoria de Isabel Freire da Cruz (Dona Beleza) e da professora Arcelina Fernandes. Os dramas eram encenados no palco do cinema ou em palanque armado improvisadamente no salão do grupo escolar “Auta de Souza” com a participação dos alunos.
No começo dos anos quarenta, seu Joca Leiros (1882-1958) fundou com familiares e amigos, um grupo de teatro amador denominado “Grêmio Dramático Auta de Souza”, considerado, à época, um dos melhores do Estado, cuja programação e desempenho artístico dos atores eram citados habitualmente no jornal “A República”. O grêmio do mestre Joca apresentou-se no Teatro Carlos Gomes em 03 de setembro de 1944, com a peça “A Cigana me Enganou”, comédia em três atos e cinco quadros. O espetáculo foi promovido em benefício da construção do teatro de amadores de Macaíba. A direção de Hiran Pereira com cenografia de José Muniz. Em fevereiro de 1945, ocorreu a segunda apresentação em Natal com a comédia “Feitiço” sob a direção de Joca Leiros. A peça patrocinada pela “Comissão do Esforço de Guerra”, da Liga de Defesa Nacional visava auxiliar a construção do hospital da “Sociedade Médico-Hospitalar de Macaíba”.
Após tantos anos de luta ficou patenteada a tradição cultural de Macaíba - até então notável no domínio da música e das letras com Auta de Souza, Henrique Castriciano, Tavares de Lira, Augusto Severo, Alberto Maranhão (na política), Otacílio Alecrim, entre outros - a sua notabilidade também na arte cênica, exercitada com amor, talento e inquestionável sentimento telúrico. Posso destacar excelentes artistas desse universo desaparecido, a começar pelo grande líder do movimento teatral João Viterbino de Leiros (autor e diretor), Luis Marinho de Carvalho (autor e contra-regra), Wilson Leiros, Antonio Coelho, Aguinaldo Ferreira da Silva, Edson Alecrim e Silva, Joanete Ribeiro, Mary Leiros, Ivete Leiros de Almeida, Nitinha Leiros de Almeida, Célia Pereira, Haydée Marinho de Carvalho, Branilze Costa, Alice de Lima e Melo, Luzinete Silva, José Muniz de Melo, Walter Leiros, João Leiros Filho, Luzanira Lima, Geny Maciel, Valda Dantas e Doralice Xavier.
Hoje, Macaíba não tem teatro. Existe uma plêiade de jovens vocacionados mas sem apoio nem esperanças das autoridades competentes. Macaíba precisa de uma casa de espetáculos que faça jus a tradição do passado luminoso. João Marcelino consagrado autor e ator teatral, filho de Macaíba, garanto que não se negaria na formação e seleção de grupos de atores. Sei que há outras necessidades prementes em favor do Município. Mas, o “Teatro Joca Leiros” reacenderia as luzes culturais de Macaíba de há muito apagadas.
Sem sair de Macaíba, lembro do saudoso Joca de Zé Ludovico que ainda hoje é lembrado pelos desportistas como o melhor volante de apoio do futebol macaibense. O seu futebol era inteligente e possuía uma notável visão de jogo. Vi-o atuar várias vezes defendendo a camisa azul do Cruzeiro FC. Nos anos 60, o Cruzeiro havia formado um excelente time que além de disputar o campeonato interiorano sagrara-se várias vezes campeão local. Mas, foi no clássico Cruzeiro x Arsenal de São José do Mipibu que ocorreu uma tragédia com o nosso Joca. O massagista cruzeirense era o famoso Poeta que aplicava uma massagem ritualística nas pernas do atleta com o bálsamo de sua criação chamado "Poetex" (marca patenteada). Nessa tarde o escolhido foi Joca. Os clubes já estavam em campo pousando para as fotos quando o público notou a ausência de Joca, que recebia potentes massagens com o produto "poetex". Joca, Joca, Joca, gritava a galera pelo seu ídolo. Após vinte minutos de extenuante massagem, Joca é liberado. As equipes já estavam formadas para o inicio do jogo e o juiz já impaciente apitava histérico. Nisso, ouve-se um alarido. Joca entra em campo. Após seis passos começa a ficar trôpego. Manca, cai, se levanta e, afinal, prosta-se aos pés do juiz totalmente combalido. O maqueteiro entra em campo debaixo dos impropérios da torcida. O efeito poetex nocauteou Joca que ficou três dias sem andar.
(*) Escritor.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023
A indispensável arte de escutar
Padre João Medeiros Filho
Ela exige dedicação e contínuo aprendizado. Talvez poucos se disponham a esse mister. Cristo, além de tantos carismas e virtudes, foi mestre também nesse assunto. Até orientadores de alma estão paulatinamente renunciando a esta nobre missão. Atualmente, muitos pagam a profissionais especializados para escutá-los. O mundo apressado de hoje não reserva espaço para tal postura basilar na vida social. O teólogo e pedagogo Rubem Alves escreveu: “Não é bastante ter ouvidos para compreender o que se diz. É preciso haver silêncio dentro da alma.” Já não se tem mais paciência ou tempo de acompanhar o que alguém tem a dizer. É frequente o impulso de interromper a fala do outro, dando palpites ou nela incluindo a sua opinião. Tem-se a ideia de que as palavras do interlocutor não são dignas de consideração e necessitam ser complementadas. Por vezes, muitos julgam suas opiniões melhores e mais importantes que as do próximo. Os quatro evangelhos narram a incansável atenção, paciência e solicitude de Cristo em escutar e dialogar. A incapacidade para tanto denota manifestação sutil de arrogância e vaidade. No fundo, acredita-se que se é mais justo, honesto, sábio ou capaz.
Proliferam escolas de oratória, retórica ou de falar em público. Faltam cursos de “escutatória”. Uma professora de língua e literatura espanhola costumava lembrar a seus alunos a diferença entre ver e olhar, ouvir e escutar: “Hagan el favor de mirar y escuchar, porque para oír y ver bastan los ojos y las orejas.” Nas empresas criam-se ouvidorias, que fogem de seus títulos e objetivos. Muitas reproduzem a filosofia e rotina de seus administradores. Os descontentamentos e reclamações adiantam pouco, sendo não raro registrados por mera formalidade. São contraditórias muitas audiências públicas. Alguns discursam e a maioria emudece. Em geral, terminam com a confirmação dos propósitos e ideias de poucos em detrimento da multidão. O salmista já observava esse desrespeito ao ser humano: “Têm ouvidos, mas não escutam” (Sl 115/114, 6). Aos atuais e futuros mentores espirituais dever-se-á insistir sobre a disponibilidade para a orientação interior.
A vida e o mundo estão cheios de sons e vozes. Percebê-los é um dom característico dos artistas. É clássico o exemplo dos pianistas. Entram no palco, encaminham-se para o instrumento, sentam-se e concentram-se. Parecem extasiados diante da melodia que irão executar. Após algum tempo de silêncio, a música ecoa. É necessário silenciar para se enriquecer com os delicados sons do universo. Há alguns que são raros, mas presentes na memória de cada um. Por exemplo, o rangido dos carros de bois, o apito das fábricas e locomotivas, o despertar dos galos, o repicar dos sinos, o crepitar do fogo nos fogões a lenha, o chilrear e trinado dos passarinhos etc. É preciso, por vezes, quietude para que eles surjam e nos conduzam ao passado. A sua beleza e musicalidade ficaram guardadas no âmago de cada um. Nas cidades há ainda os gritos dos vendedores, o vozerio das feiras, a algazarra das crianças ao sair das escolas, o ruído dos rádios dos trabalhadores, o latido dos cães na entrada das casas… E há a sonoridade da natureza: o assobio do vento, o barulho da chuva e o murmúrio das cachoeiras.
Há uma pergunta pertinente e atual. Quem nos ensinará novamente a mística do silêncio e a fundamental arte da escuta? O exemplo da vida monacal tem sua importância para o reaprendizado. Os monges trabalham, alimentam-se, oram silenciosamente e falam com moderação. Seus momentos contemplativos e preces dão a impressão de que percebem ou recebem algo de sobrenatural. Santa Teresinha do Menino Jesus dizia: “O silêncio nos capacita a encontrar Deus. É a voz divina que abafa as vozes humanas.” Santo Ambrósio, quando bispo de Milão, falava que “é importante desobstruir os tímpanos da alma.” Não consta que tal postura seja abordada nas escolas, igrejas ou mesmo em família. Há disciplina para tudo, mas inexiste quem oriente a ser tácito para saber escutar o outro. Convém ter sempre em mente o que diz a Sagrada Escritura: “Tudo tem seu tempo... Tempo de calar e tempo de falar (Ecl 3,1; 6).