sábado, 30 de setembro de 2023

 


Evocação a alguns amigos pets

Daladier Pessoa Cunha Lima
Reitor do UNI-RN

Em um dos seus exponenciais livros, Civilização e Cultura, Câmara Cascudo, no capítulo dedicado à Domesticação de animais, afirma: “O cão foi o primeiro animal que ingressou no convívio humano. É o mais universal dos mamíferos. Exceto os relativamente recentes de cães para almofadas e regaço, é auxiliar imediato e pronto para o serviço humano, em qualquer parte do mundo.  Era o único a carregar fardos no Novo Continente, superior à lhana fracalhona.  Sua popularidade torna-se fabulosa (...).  O latido é característico da domesticação. O cão selvagem não ladra.  Esculpido aos pés das estátuas tumulares como símbolo de fidelidade (...).  Curioso é que no Brasil seja cachorro, mais popular do que cão.  Cachorro era tradicional na Península Ibérica, uns 1.500 anos a.C..”
A seguir, um breve e saudoso relato dos cães aos quais dediquei e recebi afeição por grande parte da minha vida.
Quando criança, em Nova Cruz-RN, criei um lindo cachorro de nome Lassie, presente de meus pais que o trouxeram do Recife.  Ele veio em viagem de trem, pois, no passado, Nova Cruz se ligava por via férrea a Natal, a João Pessoa e a Recife.  Foram muitos avanços que o trem proporcionou à maioria das cidades do Nordeste, um progresso que, por descaso ou inépcia, deixaram definhar.  Para mim, em particular, e para meus irmãos, o trem era uma festa, não somente pelo burburinho alegre da estação de Nova Cruz, mas também pelas viagens para João Pessoa, cidade dos meus avós paternos.  Ainda hoje, ressoam na minha mente o apito da máquina Maria Fumaça, a voz dos vendedores de rolete de cana e o badalar dos sinos das estações.  Mas há uma outra benesse:  o trem tornou viável a vinda do Recife do meu cãozinho Lassie, talvez uma mistura de vira-lata com collie. Tinha pelos amarelo-ouro, era dócil, brincalhão e encheu de alegrias nossa casa de Nova Cruz, no meu tempo de menino.
Pouco depois de casar e de ter minha casa, tratei logo de criar um cachorro pequinês, todo pretinho, de nome Bug. Ele iniciou uma sequência de 12 cães, machos e fêmeas, que adotei e criei, sob constantes cuidados e carinhos de toda a família.  Devo dizer que sempre optei por cachorros que fossem nascidos de cruzamento de raças, melhor dizendo, que mostrassem algum sinal de origem vira-lata, pois muito me prendem a atenção esses cãezinhos tão espertos, leais e resistentes.  Ah!  Houve uma exceção, uma cadela de raça pura, a mais inteligente e a mais bonita que já passou pela minha casa, onde viveu por 18 anos.  De fato, ela era de raça pura, vira-lata pura, magrinha, esbelta, rápida, atenta, cor amarelo-mel, de porte médio-pequeno.  Veio da praia de Pirangi do Norte, e sua mãe chamava-se Catita, uma cadela de rua muito conhecida naquela praia, ainda no tempo em que o local era calmo e sem barulho. Para relembrar o nome da mãe, talvez, ela pegava qualquer catita errante que tentasse entrar em casa.  Ganhava dos gatos.
Nos dias atuais, tenho em casa um belo exemplar de cão, talvez uma mistura de vira-lata com pastor.  É robusto, tamanho médio, e atende pelo nome de Forte.  O dono dele mesmo é meu neto Gabriel, na casa de quem Forte viveu os primeiros meses de vida.  O cachorro cresceu tanto que logo tornou-se inviável tê-lo em um apartamento de convivência muito intensa.  Isto levou Gabriel a me dar a sugestão de criar Forte, e usou essa expressão:  “Vô, é guarda compartilhada”.  Aceitei de pronto e, desde então, só tenho alegrias pela guarda constante deste amigo sincero.  Em dias recentes, vi a notícia de que a guarda compartilhada de pets ganhou jurisprudência, com decisões judiciais que determinam animais de estimação viverem dias da semana alternados em casas diferentes dos ex-cônjuges.  Até nos Estados Unidos, a partir de 2017, a guarda compartilhada de pets já chegou aos Tribunais. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023


UM TEATRO PARA MACAÍBA

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Raríssimos são os municípios do Rio Grande do Norte com tradição de arte cênica. Macaíba é um deles. Desde o tempo dos Albuquerque Maranhão, apaixonados pela música e pelo teatro, na casa do velho Amaro Barreto que encomendava ao jovem Henrique Castriciano de Souza (1874-1947) peças para serem apresentadas em sua casa. É de Henrique a peça “A Promessa” que inaugurou o teatro “Carlos Gomes”, hoje “Alberto Maranhão”. Nas décadas de 1910 a 1930, a teatralização resumiam-se aos dramas (como eram inicialmente denominadas as peças). Foram de autoria de Isabel Freire da Cruz (Dona Beleza) e da professora Arcelina Fernandes. Os dramas eram encenados no palco do cinema ou em palanque armado improvisadamente no salão do grupo escolar “Auta de Souza” com a participação dos alunos.

No começo dos anos quarenta, seu Joca Leiros (1882-1958) fundou com familiares e amigos, um grupo de teatro amador denominado “Grêmio Dramático Auta de Souza”, considerado, à época, um dos melhores do Estado, cuja programação e desempenho artístico dos atores eram citados habitualmente no jornal “A República”. O grêmio do mestre Joca apresentou-se no Teatro Carlos Gomes em 03 de setembro de 1944, com a peça “A Cigana me Enganou”, comédia em três atos e cinco quadros. O espetáculo foi promovido em benefício da construção do teatro de amadores de Macaíba. A direção de Hiran Pereira com cenografia de José Muniz. Em fevereiro de 1945, ocorreu a segunda apresentação em Natal com a comédia “Feitiço” sob a direção de Joca Leiros. A peça patrocinada pela “Comissão do Esforço de Guerra”, da Liga de Defesa Nacional visava auxiliar a construção do hospital da “Sociedade Médico-Hospitalar de Macaíba”.

Após tantos anos de luta ficou patenteada a tradição cultural de Macaíba - até então notável no domínio da música e das letras  com Auta de Souza, Henrique Castriciano, Tavares de Lira, Augusto Severo, Alberto Maranhão (na política), Otacílio Alecrim, entre outros -  a sua notabilidade também na arte cênica, exercitada com amor, talento e inquestionável sentimento telúrico. Posso destacar excelentes artistas desse universo desaparecido, a começar pelo grande líder do movimento teatral João Viterbino de Leiros (autor e diretor), Luis Marinho de Carvalho (autor e contra-regra), Wilson Leiros, Antonio Coelho, Aguinaldo Ferreira da Silva, Edson Alecrim e Silva, Joanete Ribeiro, Mary Leiros, Ivete Leiros de Almeida, Nitinha Leiros de Almeida, Célia Pereira, Haydée Marinho de Carvalho, Branilze Costa, Alice de Lima e Melo, Luzinete Silva, José Muniz de Melo, Walter Leiros, João Leiros Filho, Luzanira Lima, Geny Maciel, Valda Dantas e Doralice Xavier.

Hoje, Macaíba não tem teatro. Existe uma plêiade de jovens vocacionados mas sem apoio nem esperanças das autoridades competentes. Macaíba precisa de uma casa de espetáculos que faça jus a tradição do passado luminoso. João Marcelino consagrado autor e ator teatral, filho de Macaíba, garanto que não se negaria na formação e seleção de grupos de atores. Sei que há outras necessidades prementes em favor do Município. Mas, o “Teatro Joca Leiros” reacenderia as luzes culturais de Macaíba de há muito apagadas.

Sem sair de Macaíba, lembro do saudoso Joca de Zé Ludovico que ainda hoje é lembrado pelos desportistas como o melhor volante de apoio do futebol macaibense. O seu futebol era inteligente e possuía uma notável visão de jogo. Vi-o atuar várias vezes defendendo a camisa azul do Cruzeiro FC. Nos anos 60, o Cruzeiro havia formado um excelente time que além de disputar o campeonato interiorano sagrara-se várias vezes campeão local. Mas, foi no clássico Cruzeiro x Arsenal de São José do Mipibu que ocorreu uma tragédia com o nosso Joca. O massagista cruzeirense era o famoso Poeta que aplicava uma massagem ritualística nas pernas do atleta com o bálsamo de sua criação chamado "Poetex" (marca patenteada). Nessa tarde o escolhido foi Joca. Os clubes já estavam em campo pousando para as fotos quando o público notou a ausência de Joca, que recebia potentes massagens com o produto "poetex". Joca, Joca, Joca, gritava a galera pelo seu ídolo. Após vinte minutos de extenuante massagem, Joca é liberado. As equipes já estavam formadas para o inicio do jogo e o juiz já impaciente apitava histérico. Nisso, ouve-se um alarido. Joca entra em campo. Após seis passos começa a ficar trôpego. Manca, cai, se levanta e, afinal, prosta-se aos pés do juiz totalmente combalido. O maqueteiro entra em campo debaixo dos impropérios da torcida. O efeito poetex nocauteou  Joca que ficou três dias sem andar.

(*) Escritor.





quarta-feira, 27 de setembro de 2023

 

A indispensável arte de escutar

Padre João Medeiros Filho

Ela exige dedicação e contínuo aprendizado. Talvez poucos se disponham a esse mister. Cristo, além de tantos carismas e virtudes, foi mestre também nesse assunto. Até orientadores de alma estão paulatinamente renunciando a esta nobre missão. Atualmente, muitos pagam a profissionais especializados para escutá-los. O mundo apressado de hoje não reserva espaço para tal postura basilar na vida social. O teólogo e pedagogo Rubem Alves escreveu: “Não é bastante ter ouvidos para compreender o que se diz. É preciso haver silêncio dentro da alma.” Já não se tem mais paciência ou tempo de acompanhar o que alguém tem a dizer. É frequente o impulso de interromper a fala do outro, dando palpites ou nela incluindo a sua opinião. Tem-se a ideia de que as palavras do interlocutor não são dignas de consideração e necessitam ser complementadas. Por vezes, muitos julgam suas opiniões melhores e mais importantes que as do próximo. Os quatro evangelhos narram a incansável atenção, paciência e solicitude de Cristo em escutar e dialogar. A incapacidade para tanto denota manifestação sutil de arrogância e vaidade. No fundo, acredita-se que se é mais justo, honesto, sábio ou capaz.

Proliferam escolas de oratória, retórica ou de falar em público. Faltam cursos de “escutatória”. Uma professora de língua e literatura espanhola costumava lembrar a seus alunos a diferença entre ver e olhar, ouvir e escutar: “Hagan el favor de mirar y escuchar, porque para oír y ver bastan los ojos y las orejas.” Nas empresas criam-se ouvidorias, que fogem de seus títulos e objetivos. Muitas reproduzem a filosofia e rotina de seus administradores. Os descontentamentos e reclamações adiantam pouco, sendo não raro registrados por mera formalidade. São contraditórias muitas audiências públicas. Alguns discursam e a maioria emudece. Em geral, terminam com a confirmação dos propósitos e ideias de poucos em detrimento da multidão. O salmista já observava esse desrespeito ao ser humano: “Têm ouvidos, mas não escutam” (Sl 115/114, 6). Aos atuais e futuros mentores espirituais dever-se-á insistir sobre a disponibilidade para a orientação interior.

A vida e o mundo estão cheios de sons e vozes. Percebê-los é um dom característico dos artistas. É clássico o exemplo dos pianistas. Entram no palco, encaminham-se para o instrumento, sentam-se e concentram-se. Parecem extasiados diante da melodia que irão executar. Após algum tempo de silêncio, a música ecoa. É necessário silenciar para se enriquecer com os delicados sons do universo. Há alguns que são raros, mas presentes na memória de cada um. Por exemplo, o rangido dos carros de bois, o apito das fábricas e locomotivas, o despertar dos galos, o repicar dos sinos, o crepitar do fogo nos fogões a lenha, o chilrear e trinado dos passarinhos etc. É preciso, por vezes, quietude para que eles surjam e nos conduzam ao passado. A sua beleza e musicalidade ficaram guardadas no âmago de cada um. Nas cidades há ainda os gritos dos vendedores, o vozerio das feiras, a algazarra das crianças ao sair das escolas, o ruído dos rádios dos trabalhadores, o latido dos cães na entrada das casas… E há a sonoridade da natureza: o assobio do vento, o barulho da chuva e o murmúrio das cachoeiras.

Há uma pergunta pertinente e atual. Quem nos ensinará novamente a mística do silêncio e a fundamental arte da escuta? O exemplo da vida monacal tem sua importância para o reaprendizado. Os monges trabalham, alimentam-se, oram silenciosamente e falam com moderação. Seus momentos contemplativos e preces dão a impressão de que percebem ou recebem algo de sobrenatural. Santa Teresinha do Menino Jesus dizia: “O silêncio nos capacita a encontrar Deus. É a voz divina que abafa as vozes humanas.” Santo Ambrósio, quando bispo de Milão, falava que “é importante desobstruir os tímpanos da alma.” Não consta que tal postura seja abordada nas escolas, igrejas ou mesmo em família. Há disciplina para tudo, mas inexiste quem oriente a ser tácito para saber escutar o outro. Convém ter sempre em mente o que diz a Sagrada Escritura: “Tudo tem seu tempo... Tempo de calar e tempo de falar (Ecl 3,1; 6).