Derramei os meus lamentos Nas surdas asas dos ventos, Do mar na crespa cerviz! Baldão, ludíbrio da sorte Em terra estranha, entre gente, Que alheios males não sente, Nem se condói do infeliz! III Louco, aflito, a saciar-me D'agravar minha ferida, Tomou-me tédio da vida, Passos da morte senti; Mas quase no passo extremo, No último arcar da esp'rança, Tu me vieste à lembrança: Quis viver mais e vivi! IV Vivi; pois Deus me guardava Para este lugar e hora! Depois de tanto, senhora, Ver-te e falar-te outra vez; Rever-me em teu rosto amigo, Pensar em quanto hei perdido, E este pranto dolorido Deixar correr a teus pés. V Mas que tens? Não me conheces? De mim afastas teu rosto? Pois tanto pôde o desgosto Transformar o rosto meu? aflição quanto pode, Sei quanto ela desfigura, E eu não vivi na ventura... Olha-me bem, que sou eu! VI Nenhuma voz me diriges!... Julgas-te acaso ofendida? Deste-me amor, e a vida Que me darias — bem sei; Mas lembrem-te aqueles feros Corações, que se meteram Entre nós; e se venceram, Mal sabes quanto lutei! VII Oh! se lutei! . . . mas devera
Expor-te em pública praça, Como um alvo à populaça, Um alvo aos dictérios seus! Devera, podia acaso Tal sacrifício aceitar-te Para no cabo pagar-te, Meus dias unindo aos teus? VIII Devera, sim; mas pensava, Que de mim t'esquecerias, Que, sem mim, alegres dias T'esperavam; e em favor De minhas preces, contava Que o bom Deus me aceitaria O meu quinhão de alegria Pelo teu, quinhão de dor! IX Que me enganei, ora o vejo; Nadam-te os olhos em pranto, Arfa-te o peito, e no entanto Nem me podes encarar; Erro foi, mas não foi crime; Não te esqueci, eu to juro: Sacrifiquei meu futuro, Vida e glória por te amar! X Tudo, tudo; e na miséria Dum martírio prolongado, Lento, cruel, disfarçado, Que eu nem a ti confiei: "Ela é feliz (me dizia), "Seu descanso é obra minha." Negou-me a sorte mesquinha. . . Perdoa, que me enganei! XI Tantos encantos me tinham, Tanta ilusão me afagava De noite, quando acordava, De dia em sonhos talvez! Tudo isso agora onde pára? Onde a ilusão dos meus sonhos? Tantos projetos risonhos, Tudo esse engano desfez! XII Enganei-me!... — Horrendo caos Nessas palavras se encerra, Quando do engano, quem erra. Não pode voltar atrás! Amarga irrisão! reflete: Quando eu gozar-te pudera, Mártir quis ser, cuidei qu'era... E um louco fui, nada mais! XIII Louco, julguei adornar-me Com palmas d'alta virtude! Que tinha eu bronco e rude Co’o que se chama ideal? O meu eras tu, não outro; Stava em deixar minha vida Correr por ti conduzida, Pura, na ausência do mal." XIV Pensar eu que o teu destino Ligado ao meu, outro fora,
Pensar que te vejo agora,
Por culpa minha, infeliz;
Pensar que a tua ventura Deus eterno a fizera, No meu caminho a pusera...
E eu! eu fui que a não quis!
XV
És d’outro agora, e pr'a sempre!
Eu a mísero desterro
Volto, chorando o meu erro,
Quase descrendo dos céus!
Dói-te de mim, pois me encontras
Em tanta miséria posto,
Que a expressão deste desgosto
Será um crime ante Deus!
XVI
Dói-te de mim, que t'imploro
Perdão, a teus pés curvado;
Perdão!... de não ter ousado
Viver contente e feliz!
Perdão da minha miséria,
Da dor que me rala o peito,
E se do mal que te hei feito,
Também do mal que me fiz!
XVII
Adeus
qu'eu parto, senhora;
Negou-me o fado inimigo
Passar a
vida contigo,
Ter sepultura entre os meus;
Negou-me
nesta hora extrema,
Por extrema despedida,
Ouvir-te a voz comovida
Soluçar um breve Adeus!
XVIII
Lerás porém algum dia
Meus versos d'alma arrancados,
D'amargo pranto banhados,
Com sangue escritos; — e então,
Confio que te comovas,
Que a minha dor te apiede,
Que chores, não de saudade,
Nem de amor, — de compaixão.
“A poesia “Ainda uma vez - adeus!”, bem como as poesias
“Palinódia” e “Retratação”, foram inspiradas por Ana
Amélia Ferreira do Vale, cunhada do Dr. Teófilo Leal,
ex-condiscípulo do poeta em Portugal e seu grande amigo. Gonçalves
Dias viu-a pela primeira vez em 1846 no Maranhão. Era uma menina
quase, e o poeta, fascinado pela sua beleza e graça juvenil,
escreveu para ela as poesias “Seus olhos” e “Leviana”. Vindo
para o Rio, é possível que essa primeira impressão tenha
desaparecido do seu espírito. Mais tarde, porém, em 1851, voltando
a S. Luís, viu-a de novo, e já então a menina e moça de 46 se
fizera mulher, no pleno esplendor de sua beleza desabrochada. O
encantamento de outrora se transformou em paixão ardente, e,
correspondido com a mesma intensidade de sentimento, o poeta,
vencendo a timidez, pediu-a em casamento à família. A família da
linda Don’Ana - como lhe chamavam - tinha o poeta em grande
estima e consideração. Mais forte, porém, do que tudo, era naquele
tempo no Maranhão o preconceito de raça e casta. E foi em nome
desse preconceito que a família recusou o seu consentimento. Por seu
lado, o poeta, colocado diante das duas alternativas: renunciar ao
amor ou à amizade, preferiu sacrificar aquela a esta, levado por um
excessivo escrúpulo de honradez e lealdade, que revela nos mínimos
atos de sua vida. Partiu para Portugal. Renúncia tanto mais dolorosa
e difícil por que a moça que estava resolvida a abandonar a casa
paterna para fugir com ele, o exprobou em carta, dura e amargamente,
por não ter tido a coragem de passar por cima de tudo e de romper
com todos para desposá-la! E foi em Portugal, tempos depois, que
recebeu outro rude golpe: Don’Ana, por capricho e acinte à
família, casara-se com um comerciante, homem também de cor como o
poeta e nas mesmas condições inferiores de nascimento. A família
se opusera tenazmente ao casamento, mas desta vez o pretendente, sem
medir considerações para com os parentes da noiva, recorreu à
justiça, que lhe deu ganho de causa, por ser maior a moça. Um mês
depois falia, partindo com a esposa para Lisboa, onde o casal chegou
a passar até privações. Foi aí, em Lisboa, num jardim público,
que certa vez se defrontaram o poeta e a sua amada, ambos abatidos
pela dor e pela desilusão de suas vidas, ele cruelmente arrependido
de não ter ousado tudo, de ter renunciado àquela que com uma só
palavra sua se lhe entregaria para sempre. Desvairado pelo encontro,
que lhe reabrira as feridas e agora de modo irreparável, compôs de
um jato as estrofes de “Ainda uma vez - adeus!”, as quais, uma
vez conhecidas da sua inspiradora, foram por esta copiadas com o seu
próprio sangue.”
(2) A estas alturas sou tentado à exploração dialética,
intertextual, de outro poema de Gonçalves Dias, também inspirado
pela musa Ana Amélia, mas escrito antes dos sucessos dramáticos que
os envolveram. Trata-se de “Olhos verdes”, e o associo a dois
outros de temática igual: o primeiro, de Camões (1524-1580) - e
portanto anterior ao de Gonçalves Dias; o segundo, posterior a este,
é de outro brasileiro ilustre: o parnasiano Vicente de Carvalho
(1866-1924). Vejam os três - e percam-se nesses sonhos:
OLHOS VERDES
São
uns olhos verdes, verdes,
Uns olhos de verde-mar,
Quando o tempo vai bonança;
Uns olhos
cor de esperança,
Uns olhos por que morri;
Que ai de
mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Como
duas esmeraldas,
Iguais na forma e na cor,
Têm luz mais
branda e mais forte.
Diz uma - vida, outra - morte;
Uma - loucura, outra - amor.
Mas ai de mi!
Nem já sei qual
fiquei sendo
Depois que os vi!
São verdes da cor do prado,
Exprimem qualquer paixão,
Tão facilmente se inflamam,
Tão meigamente derramam
Fogo e luz do
coração;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei
sendoDepois que os vi!
Como se lê num espelho,
Pude
ler nos olhos seus!
Os olhos mostram a alma,
Que as ondas
postas em calma
Também refletem os céus;
Mas ai de mi!
Nem já sei qual fiquei sendo
Depois que os vi!
Dizei vós, ó meus amigos,
Se vos perguntam por mi,
Que eu vivo
só da lembrança
De uns olhos da cor da esperança,
De uns
olhos verdes que vi!
Que ai de mi!
Nem já sei qual fiquei
sendo
Depois que os vi!
Dizei vós:” Triste do bardo!
Deixou-se de amor finar!
Viu uns olhos verdes,
verdes,
Uns olhos da cor do mar;
Eram verdes sem
esp’rança,
Davam amor sem amar!”
Dizei-o vós, meus
amigos,
Que ai de mi!
Não pertenço mais à vida
Depois
que os vi!De Camões
MOTE ALHEIO
Menina dos olhos verdes,
Por que me não vedes?
VOLTAS
Eles verdes são,
E têm por usança
Na cor esperança
E nas obras não.
Vossa condição
Não é de olhos verdes,
Porque me não vedes.
Que eles dizem terdes,
Não são de olhos verdes,
Nem de verdes olhos.
Sirvo de geolhos,
E vós não me credes,
Porque me não vedes.
Havia de ser,