quinta-feira, 24 de junho de 2021

 

O ÉPICO NO RN E SEU ARTISTA

 

Diogenes da Cunha Lima

 

Desconfio que nenhum outro Estado tenha vivido acontecimentos épicos semelhantes ao nosso Rio Grande.

Como esquecer os feitos heroicos de Clara Camarão? Ela foi a primeira heroína nacional, formou, na sua tribo, um batalhão de mulheres para ajudar o marido, Felipe Camarão, na expulsão dos invasores holandeses.

         Sem paralelo, por motivação religiosa, vivemos a tragédia. A matança nos povoados de Cunhaú (que, em tupi, significa águas de mulher) e Uruaçu (que quer dizer grande pássaro) resultou na canonização de mártires pela Igreja de Roma. O Rio Grande do Norte ofereceu trinta santos ao Brasil. O morticínio dos católicos foi conduzido pelo alemão Jacob Rabbi à frente de índios Janduís, aliados dos huguenotes holandeses. Ao final, um macabro banquete antropofágico.

          Nas lides cangaceiras, louvado pelo cordel, Jesuíno Brilhante é lembrado como o Robin Hood nordestino.

De relevo é a saga de frei Miguelinho, que deu a vida pela liberdade do nosso país.

Entre nós, Mossoró é a cidade heroica que enfrentou e venceu Lampião e os seus perigosos facínoras. Lampião, vencedor em cinco Estados nordestinos, tornou-se o rei dos cangaceiros. O seu chapéu estrelado, com pingentes de ouro, era a sua coroa. Qual Macbeth, ele acreditava em bruxas e também que tinha o corpo fechado. Difundia o medo pelo sertão a partir das cidades invadidas. Já aparecia gente para louvar a sua coragem e sua ética torta. Cometeu um erro. Exigiu submissão, dinheiro, sob pena de invadir Mossoró.

O povo, normalmente pacífico e acolhedor, enfrentou a corja marginal. E venceu. O bandido “Colchete” foi morto e o aterrorizante Jararaca ferido e depois morto. O restante fugiu.

Dorian identificou-se à Cidade da Resistência e perpetuou o seu feito.

O gênero épico, semeado pelo grego Homero, o latino Virgílio, o toscano Dante (sem heróis) e o português Luiz de Camões, não alcançou o nível tentado e somente alcançado pelos sublimes.

Os acontecimentos estaduais foram representados por Dorian Gray. A inovação inicia-se pela perfeita integração entre o poema e a pintura.

Vale a pena conhecer a Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. No salão de entrada, o artista registra em um pórtico, integrando painéis sobre um único tema: Frei Miguelinho. O seu livro “Canto Heroico - Arte & Texto” celebra a vida e a morte do libertário mártir.

O historiador de arte Franco Maria Jasiello não hesita em compará-lo aos grandes mestres universais: “É confortador e exaltante reencontrar no políptico de frei Miguelinho a determinação de Memling, o equilíbrio de Simone Martine, a impetuosidade de Nuno Gonçalves, o inusitado Masaccio, a audácia de Giotto, a polêmica de Picasso, porque é outro aspecto do artista Dorian Gray, o do pesquisador, do observador atento”.

Essas sagas devem ser contadas em cada escola, em cada sala, como recomendava o poeta-autor.

 

 

A CIDADE DA MÚSICA

 

Diogenes da Cunha Lima

 

A música alimentava a infância de Nova Cruz. A vida diária tinha ritmo e melodia.

Para mim, eram quase músicas a chuva caindo na telha-vã ou pela biqueira, o som das grandes águas barrentas nas cheias do rio Curimataú, o rouco chocalho das vacas e o agudo tilintar dos chocalinhos das ovelhas.

Em nossa casa, o dia começava com meu pai cantando canções românticas. Também repetia uma canção de ninar do tempo da escravatura que embalara a sua mãe. Hoje, seria proibida por lei e pelos costumes: “Esta noite eu peguei um burro, / amarrei no pé do muro / e o bicho está lá. / Ei, mulata-tá-tá, mulata minha nega, mulata-tá-tá”. Eu quase chorava com pena do burrinho que passava a noite inteira amarrado.

O grande sino da matriz, que cheguei a tocar, comandava a comunidade. Seu badalar tinha várias motivações: a chamada para atos religiosos, a alegria das festas, até a tristeza dos finados.

Coroinha, cantávamos em latim o louvor medieval composto por São Tomás de Aquino: “Tantum Ergo”. Não sabíamos o sentido das palavras, mas caprichávamos na pronúncia. Ajudando o padre durante a celebração da missa, também em latim, acionávamos a campainha na hora da elevação.

A cidade alegrava-se com a banda regida pelo Tenente Freitas, tocando dobrados compostos em homenagem a personalidades locais. Muito cedo, ouvíamos as alvoradas. Olival, o filho, é o maestro sucessor na banda. Do grupo musical, participavam suas três bonitas filhas, moças exímias nos instrumentos de sopro.

Chiquito Trindade tocava violão e era líder do regional. O clarinete merecia tratamento especial. Era executado por Luís Tavares, alfaiate que morava na esquina da Rua do Fogo. Ou por “Papo”, assim chamado quando estava bêbado. Quando sóbrio, apresentava-se: “Sou André Ferreira da Silva, seu criado”.

A feira semanal tinha de tudo, com dimensão só comparável à Feira do Alecrim. A cantiga de violeiros harmonizava o ambiente e superava os refrãos dos vendedores.

Chamava à atenção o cego Gaspar, de grandes olhos brancos e elegantemente trajado de mescla azul da marca Dona Isabel. Ele agradecia cantando: “Deus lhe pague a sua esmola / que mais lhe tenha pra dar / te livre do mal vizinho / que é a pior peste que há”.

Ciço Canam-Canam, fazendo caretas, raspava o reco-reco. Espantava os meninos encostando os beiços no nariz. Cantando uma embolada: “E é papai / E é mamãe / e é titia. Eu canto toda famia, patati, patipatá”.

Galo-de-campina, apelido que louvava o compositor João Ramos, lembrava a invenção musical do passarinho. Chico Mentira tocava um piano ancestral, batendo nas cordas. Somente a música era verdadeira.

Nova Cruz daquele tempo podia concorrer com Carnaúba dos Dantas para merecer o título de A Cidade da Música.

 

 

 

 

 

 

 

 

quarta-feira, 23 de junho de 2021

 


Minhas Cartas de Cotovelo – verão de 2021-31

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

       O São João do carneirinho, figura adorável das festas populares, com inesquecíveis momentos de fogueiras, fogos, quadrilhas, quentão e muito milho verde, os compadríos de fogueira, as simpatias. Alimenta a alegria, a confraternização, as cores das bandeirinhas penduradas, das cantigas e das brincadeiras próprias do período – pau de sebo, cocar de castanha, barquinho de farinha de milho, trajes típicos. Não corresponde ao São João Batista, mártir do Cristianismo.



       O segundo é a luz, a verdade e a vida. O anunciador do Messias, que por ele foi batizado com a presença do Espírito Santo, que deu os primeiros passos para a salvação da humanidade. João, o Batista, era primo de Jesus. Sua mãe, Isabel, era já mais velha e não tinha filhos, quando seu marido, Zacarias, que era sacerdote no Templo, recebeu a visita do anjo Gabriel, que anunciou que sua esposa estava grávida.

As primas então combinaram um sinal para quando Isabel desse à Luz: acenderia uma fogueira. E essa é a história da Igreja Católica para a fogueira de São João.

João Batista era aquele que batizava os que se arrependiam e batizou o próprio Jesus e o anunciou “Eis o Cordeiro de Deus, o que tira o pecado do mundo”. Na tradição cristã, anunciou a “boa-nova” (boa notícia) da vinda do Cristo, filho de Deus, salvador da humanidade, que “renovaria todas as coisas”. 

       No calendário litúrgico, o dia 24 é o seu dia, coincidindo com o culto a Adônis, cujo dia específico era 24 de junho, tendo por objetivo a celebração dessa renovação, da “boa-nova” do renascer da natureza, assim albergada pelo cristianismo, que cuidou de substituir Adônis por São João Batista. Porém na véspera dá-se a comemoração festiva.

Quem de nós não viveu momentos lúdicos das festas de São João, cuidadosamente preparadas nas escolas, nas famílias e nos folguedos organizados pelo povo ou pelo Poder Público. Tudo registrado com fotografias jamais esquecidas nos álbuns de registro da história de cada um.

 

 


 


A festa de São João Batista

Padre João Medeiros Filho

   Com exceção de Cristo e da Virgem Maria, João Batista é o único personagem, cujo natalício é celebrado na liturgia da Igreja Católica. Segundo as palavras de Jesus, “ele é o maior, dentre os nascidos de mulher.” (Mt 11, 11). Um anjo anunciou a Zacarias o nascimento da criança (Lc 1, 5-25). Pelo que se infere dos relatos neotestamentários, João era seis meses mais velho que o Messias. “O menino foi crescendo e se fortificando em espírito.(Lc 1, 80). Viveu no deserto até o dia em que se apresentou em Israel. Iniciou a sua catequese, à beira do Rio Jordão. Proclamou, de forma contundente, a necessidade de mudança pessoal e social, alertando para a vinda iminente do Salvador. A conversão é a única forma de escapar da ira divina. Símbolo de sua pregação é o batismo no Rio Jordão, resultando daí o epíteto de Batista. Entretanto, apesar de batizar o próprio Redentor, declara que Ele “batizará com o Espírito Santo.” (Mt 3, 11).

Estudiosos acreditam que João pertencia à seita dos essênios, monges austeros, que viviam às margens do Mar Morto, entregues à oração e à penitência. Esta afirmativa advém do estilo de suas prédicas e vida despojada. Os evangelhos narram que ele se vestia rudemente, usando peles de camelo e alimentando-se de gafanhotos e mel silvestre. Quanto a pertencer à comunidade esseniana, não há comprovação histórica. Porém, pela leitura dos Documentos do Mar Morto, deduz-se pela verossimilhança do unigênito de Isabel com aqueles religiosos.

João Batista, cuja devoção se espalhou pelos sertões do Brasil, tem uma importância especial no cristianismo. Denunciou a corrupção do seu tempo. O poder de Herodes, contaminado por erros e abusos, cortou a sua cabeça, mas não apagou seus ensinamentos e exemplo. Denunciou a mentira e a hipocrisia de seus contemporâneos. Importava-lhe Jesus: “Caminho, Verdade e Vida.” (Jo 14, 16). Apontou Cristo presente entre os homens, mostrando igualmente qual deve ser a nossa missão: indicar onde está o Filho de Deus. Com ele, encerrou-se o reino do pecado, inaugurando-se a era da graça e do perdão. Profeta da fidelidade e justiça, ensinou a coerência e a humildade. Centrou sua atenção em Cristo, de quem não se sentia digno de desatar as correias de suas sandálias. Apresentou Jesus ao povo: “Eis o Cordeiro de Deus, Aquele que tira os pecados do mundo” (Mt 3, 11). Batizou muitos, mergulhando-os nas águas de Deus e nos seus valores. Pregou que a verdadeira religião não está no formalismo, mas na autenticidade e no interior. Antecipou-se ao Messias, quando Este se dirigiu aos hipócritas e fariseus: “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira que está para chegar?” (Mt 3, 7).

João Batista, na tradição e na metáfora das fogueiras, convida-nos a acender também em nós o clarão de nossa fé e caridade para que “todos vejam as boas obras e glorifiquem o nosso Pai, que está nos céus.” (Mt 5, 15). Seu culto é bastante difundido no Brasil. Doze dioceses lhe são dedicadas. É titular de centenas de templos espalhados pelo país e padroeiro de dez paróquias no Rio Grande do Norte. No período colonial, era muito venerado pelos jesuítas. Câmara Cascudo registra esse fato e explica a devoção ao santo precursor em localidades potiguares. Segundo o nosso pesquisador, aqueles missionários catequisaram Arês e disso resulta o orago joanino naquela comunidade. A freguesia de Assú – a segunda a ser criada na Província – tem o Filho de Zacarias como patrono. Em Apodi, erigiu-se um templo dedicado ao Precursor e a Nossa Senhora da Conceição. A esta veneração dos discípulos de Santo Inácio de Loyola acrescente-se a devoção pessoal de Dom João VI. Muita gente alegrar-se-á com o nascimento do menino.” (Lc 1, 4). De acordo com alguns folcloristas, eis a origem dos folguedos e festejos juninos. No ensejo desta data, convém lembrar o aniversário de um dos padres mais queridos de Natal, Monsenhor Lucas Batista Neto. Há mais cinquenta anos, como São João Batista, o preclaro sacerdote prepara os caminhos do Senhor nesta arquidiocese!