O URUBU E COLIBRI
Conta
a fábula que o colibri morria de inveja do urubu. Acostumado a voar em
baixas altitudes, via o urubu ganhar o espaço em longo bater de asas,
desafiar grandes distâncias, planar sereno sobre montes, montanhas,
conviver na companhia de brancas nuvens. “Como é majestoso o vôo do
urubu”, pensava, diante da insignificância do contexto em que vivia.
Parado, ficava a imaginar a beleza dos cenários, a diversidade
geográfica, a imensidão dos espaços observados do alto. Olhava para si e
se via pequeno, frágil, impotente pela diminuta estrutura corporal que
carregava. “Como alcançar grandes altitudes, conhecer novos horizontes,
almejar ter uma visão larga do mundo sendo tão pequeno?”, se indagava.
Perguntas, perguntas e mais perguntas. E quase nenhuma resposta para
apascentar a sua angústia interior. De fato, de concreto mesmo, só a
tristeza pela distância que o separava do urubu.
Acalentava um grande desejo de, um dia, conhecer de perto tão
fascinante personagem. “Ah, pensava, quantas histórias bonitas o urubu
terá para me contar, quantas pessoas interessantes ele deverá ter
conhecido como fruto de suas exuberantes expedições aéreas”. Enquanto
cuidava da casa, do seu exasperante dia-a-dia, o colibri remoía uma
vontade enorme de travar conhecimento com o urubu, de vê-lo de perto
diante dos olhos. Mexe daqui, indaga dali, tenta dacolá, terminou
conseguindo marcar uma audiência com o importante viajor dos altos ares.
O urubu recebeu-o entediado. “O que quererá comigo ave tão
insignificante? Porventura pensa que posso ficar aqui perdendo tempo com
as bobagens que, com certeza, me trará? Esse povo miúdo abusa da nossa
educação, da nossa boa vontade. Afinal, receber colibri para tratar de
quê? Colibri, bahhhh!”
Indiferente ao clima abusado que iria encontrar, o colibri antegozava a
grande conquista. E se preparava para o dia do grande encontro. Que
durou poucos minutos. Após manifestar a sua admiração por tão grande
deferência, o colibri não deu nem tempo ao urubu de raciocinar.
Sapecou-lhe um convite para almoçar em sua casa. Sem ter outra resposta
em mente, o urubu aceitou. Agendaram o futuro compromisso para dali a
quinze dias. O urubu bateu suas grandes asas e se foi. O colibri ficou
embasbacado. Deu-se umas beliscadas para ter certeza de que não estivera
sonhando e voltou para casa – saltitante. Passada a euforia inicial,
uma coisa lhe chamou a atenção: o mau cheiro que exalava do urubu.
“Seria dele próprio ou fruto de uma coincidência? Ah, certamente algum
animal morto por perto fizera aquela descortesia”. Pediria desculpas ao
visitante no dia do almoço – conformou-se.
O preparo da refeição lhe deixou afogueado. Pesquisou as mais finas
iguarias, os repastos mais saborosos. Com rigor planejou sua agenda para
que nada atrapalhasse tão esperado momento. Mas malditas das malditas
desgraças!!!! Ao acordar naquele dia encontrou o corpo de um burro
morto, putrefato, em frente à sua casa. O fedor era insuportável,
nauseabundo. Tentou de todas as maneiras resolver a questão. Chamou o
serviço municipal de limpeza, ensaiou um mutirão com outros habitantes
do bairro. Não houve jeito. A hora se aproximava e o cadáver do burro
permanecia lá, inamovível, impregnando a região com um odor terrível. O
urubu chegou e – interessante – nem reclamou do forte mau cheiro,
enquanto o colibri se desculpava e se esmerava nos salamaleques. Para
piorar a situação, nada agradava ao ilustre convidado. O urubu rejeitava
as iguarias e os manjares postos à sua frente.
Aflito, o colibri pediu licença ao urubu e internou-se na cozinha para
tentar um novo prato. Perdeu tempo na nova empreitada. Quando deu por si
imperava na casa um grande silêncio. “Onde estará o visitante?”,
afligiu-se mais ainda. Procura, procura e nada. “Vergonha, vexame! Com
certeza ele foi embora”. O colibri não se perdoava a afronta feita ao
urubu – e lastimava a amizade perdida. Desalentado, deu uma chegadinha
no terraço da casa. Qual não foi sua surpresa ao flagrar o urubu
inclinado sobre o burro morto, refestelando-se com a carniça fedorenta,
engolindo, com sofreguidão, nacos e mais nacos do corpo do finado
animal. Estupefato – e impotente – o colibri a tudo assistia. Terminada a
refeição o urubu bateu suas longas asas e alçou vôo. Do colibri nem se
despediu. Como herança deixou apenas uma forte fedentina no ar. E foi
curtir a podre refeição na imensidão azul celeste.