sexta-feira, 25 de agosto de 2023

 CHEIRO DE SAUDADE

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

01) Sempre que me encontro com minha irmã Nídia Mesquita, vivemos reminiscências. Conversas soltas, assuntos de ontem e de hoje, que reabastecem as gastas baterias do viver. Aqui e acolá, mergulhamos nas lembranças de Macaíba, da fazenda Uberaba do nosso pai, onde vivemos momentos intensos de infância e juventude.  Daí, um pulo retornar aos álbuns antigos de fotos, “à la recherce du temps perdu”. Ai me detive numa foto tirada em Natal, há mais de trinta anos passados. Nela, figuravam o embaixador Ney Marinho, Nídia, Onfália Tinôco e o inexcedível Milton Santos de Almeida que visitava Natal numa temporada de reencontro e apresentações artísticas. Sobre ele já disseram que “cantava samba tão bem que a metade já seria suficiente”. Trata-se de um valor definitivo dentro da arte musical brasileira, dono de uma voz personalíssima. Ali estava, é claro, mais jovem, vitaminado, como diria a crônica paroquial, atraído por Ney que pertenceu ao trade boêmio e acolhedor da cidade na arte de recepcionar iguais e gloriosos nomes da música popular brasileira de outrora, tais como, Silvio Caldas, Orlando Silva, entre outros. Mas, o leitor, adivinho, já me pergunta: "Quem diacho é Milton Santos de Almeida?" Não poderia ser outro que não Miltinho, aquele sambista que tinha balanço todo pessoal e agudo senso rítmico. Diferente e comunicativo na interpretação mas, acima de tudo, de profunda honestidade artística. “Lembranças”, “Mulher de Trinta”, “Recado”, “Lamento”, “Cheiro de Saudade”, “Formosa”, “Boneca de Pano”, “Fita Amarela”, “Agora é Cinza”, todas interpretações com o seu timbre inconfundível e estilo inimitável. Para chegar ao podium da consagração nacional, Miltinho enfrentou árdua jornada desde o tempo dos conjuntos vocais Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Azes e um Coringa. Temperado  no sereno de muitas madrugadas daquele tempo, explodiu para o sucesso com a composição de Luis Antônio “Poema do Adeus” em 1960 e daí em diante para outros grandes êxitos que marcaram sua carreira. Dele tenho em CD com as principais músicas do seu variável repertório. Curto-o em casa como valor autêntico, irretocável e justo. Descobri que faleceu no Rio, com 86 anos, em 2014. Fiz ver a Nídia que Miltinho pertence ao patrimônio emocional de minhas doces recordações. E juntos, testemunhamos nossas eternas preferências musicais de ontem e de hoje: Isaurinha Garcia, Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Alcides Gerardi, Luiz Gonzaga e Nelson Gonçalves, além de muitos outros. A tarde descia preguiçosa pelos morros do Tirol. Uma brisa carpideira soprava pelas janelas do apartamento. Fechamos os álbuns e nos despedimos. Sai assobiando Miltinho sentindo intensamente, irresistível cheiro de saudade…

02) Fato humorístico, hilariante, pode ocorrer no lar, na rua, no trabalho, enfim, em qualquer lugar, porque é um fenômeno humano que não tem idade. Minha mãe, Nair de Andrade Mesquita, aos 98 anos, à época, operada de catarata, teve sua vista bastante reduzida. Morando na cidade de Macaíba, todos os dias, eu ia almoçar ou jantar ao seu lado, cumprindo o dever filial. Certa vez, estenderam roupas no varal situado no quintal perto da sala de copa onde invariavelmente permanecia sentada. Ao contemplar a paisagem enxergou uma vaca no quintal. A enfermeira que lhe assistia, procurou dissuadi-la. “Por que Valério comprou uma vaca? Ele não tem fazenda?”. Repetia insistentemente. No almoço, como não poderia deixar de ser. a pergunta veio inapelavelmente: “Meu filho, de quem é aquela vaca lá no quintal?”. “Vaca, que vaca?”. Tive que explicar direitinho que foi um erro de visão dela, etc. Ao cabo de cinco minutos, voltou ao assunto: “Eu só tenho receio que essa vaca vá estragar o meu jardim”. Tornei a repetir que não existia vaca nenhuma. Tudo era produto de sua imaginação. Continuamos o almoço. Ao cabo de pouco tempo, fitando-me com seriedade me inquiriu: “Meu filho, você já tem comprador pra essa vaca?”. Com indulgente paciência filial esclareci que não existia vaca, pois estava equivocada. Na hora do cafezinho, quando preparava nova pergunta, resolvi convidá-la para ir ver a vaca. Pelo menos não iria ver e deixaria de vez a “invenção”. Conduzi-a até o quintal. Apontei para todos os recantos e mandei retirar as roupas estendidas. “Tá vendo como não existe vaca nenhuma?”. “Sim meu louro, já sei o que você fez. Mandou retirar a vaca para a fazenda de Nídia, sua irmã!”. Diante da impossibilidade de convencer tive que admitir a existência da vaca ficcional. “Mãe é mãe”.

 

(*) Escritor.

 



 Aproximando e aprendendo

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​Na semana passada, afirmei aqui que, apesar das origens diversas e do desenvolvimento até certo ponto paralelo, países filiados à tradição do civil law (ou romano-germânica) e países filiados à tradição do common law tiveram uns com os outros, no passar dos séculos, inúmeros contatos. E se, no passado, instituições do common law foram absorvidas pelo civil law (e vice-versa), esses contatos, recentemente, vêm, cada vez mais, se estreitando. Hoje, por exemplo, com a facilidade das comunicações e do intercâmbio cultural, um jurista ou operador do direito inglês pode estar conectado com um congênere brasileiro em tempo real. Isso faz com que os sistemas e os seus atores se aproximem e reciprocamente se aprimorem cada vez mais.

​O fato é que hoje estou ainda mais certo dessa afirmação.

Por uma dessas coincidências da vida, praticamente no mesmo dia em que o texto acima era publicado, eu assistia a uma maravilhosa palestra do professor Fredie Didier Júnior sobre a importantíssima temática dos precedentes judiciais.

​O pano de fundo da palestra do professor Didier foi incrivelmente coincidente com isso que tenho defendido, aliás já de algum tempo: que as diferenças existentes entre os sistemas jurídicos dos países filiados a um dos modelos, quando comparados com os sistemas dos países filiados ao outro modelo, têm sido supervalorizadas pelos operadores do direito. E no que toca ao Brasil, o nosso país, apesar de filiado à tradição do civil law, historicamente não permaneceu estranho à influência do precedente vinculante. Motivado por diversos fatores (entre eles, o de alcançar a uniformidade de entendimento sobre as questões jurídicas e o de garantir maior celeridade na prestação jurisdicional), sempre existiram tipos de decisões ou conjunto de decisões, fruto de variados institutos processuais, de seguimento obrigatório para os demais órgãos do Judiciário (às vezes para todos, outras só para alguns) e para a Administração como um todo. E a coisa vem só evoluindo: partimos dos antigos assentos portugueses, criamos um bocado de decisões de caráter vinculante (tipo a badalada súmula do STF) e chegamos ao CPC de 2015.

​Essa aproximação, aliás, deve ser estendida a todo o processo civil e mais além. Como advertia, há mais de dois decênios, o professor Cândido Rangel Dinamarco (em “Fundamentos do processo civil moderno”, Malheiros, 2002), uma das tendências mais visíveis na América Latina é “a absorção de maiores conhecimentos e mais institutos inerentes ao sistema da common law. Plasmados na cultura europeia-continental segundo os institutos e dogmas hauridos primeiramente pelas lições dos processualistas ibéricos mais antigos e, depois, dos italianos e alemães, os processualistas latino-americanos vão se conscientizando da necessidade de buscar novas luzes e novas soluções em sistemas processuais que desconhecem ou minimizam esses dogmas e se pautam pelo pragmatismo de outros conceitos e outras estruturas. O interesse pela cultura processualista dos países da common law foi inclusive estimulado por estudiosos italianos que, como Mauro Cappelletti e Michele Taruffo, desenvolveram intensa cooperação com universidades norte-americanas. Os congressistas internacionais patrocinados pela Associação Internacional de Direito Processual contam com a participação de processualistas de toda origem e isso vem quebrando as barreiras existentes entre duas ou mais famílias jurídicas, antes havidas como intransponíveis. Ainda há o que aprender da experiência norte-americana das class actions, das aplicações da cláusula due process of law, do contempt of court e de muitas das soluções do common law ainda praticamente desconhecidas aos nossos estudiosos – mas é previsível que os estudos agora endereçados às obras jurídicas da América do Norte conduzam à absorção de outros institutos”.

Estou de acordo também com o professor Dinamarco. Ainda temos muito o que reciprocamente aprender com as outras culturas. Aprender é muito bom! Em especial se “audaciosamente indo aonde ninguém jamais esteve”.
 
 
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL

terça-feira, 22 de agosto de 2023

 

Não sabe da missa um terço”

Padre João Medeiros Filho

Eis uma das expressões, considerada idiomática por alguns estudiosos e usada, há mais de dois séculos. O significado de tais expressões ultrapassa o sentido literal das palavras. Revelam mais do que a simples acepção dos termos que as compõem. Para seu melhor entendimento recomenda-se conhecer elementos da época a que estão relacionadas. Comumente, utilizam-se na linguagem oral. Entretanto, como estão arraigadas na memória coletiva, são empregadas também na linguagem escrita. Retratam costumes e traços culturais de países, regiões e grupos. São bem peculiares e, por conseguinte, de difícil tradução. Todavia, em determinados casos, há equivalentes nos outros idiomas. São nomeadas também como máximas, axiomas, provérbios, adágios, ditados etc. Em certos aspectos, chegam a aproximar-se de parábolas e alegorias bíblicas, que têm por conclusão uma mensagem moral ou ética. São de domínio público e consagradas pelo uso. Ditado é sua designação mais comum. Por vezes, apresentam algumas variantes, mantendo, porém, o conteúdo da mensagem. Apontam exemplos morais, filosóficos e religiosos. As referidas expressões constituem parte importante de cada sociedade. Pesquisadores tentam descobrir a origem desses adágios, porém é uma tarefa árdua.

A Sagrada Escritura, tanto no Antigo, como no Novo Testamento, emprega esse recurso linguístico. Ao Rei Salomão creditam-se várias expressões com a denominação de provérbios, a ponto da tradição bíblica identificá-lo como o rei proverbial ou sapiencial. É o que se infere dos Livros Sagrados. Ele pediu a Deus sabedoria e compreensão. Javé respondeu-lhe: “Já que é isto que teu coração deseja –discernimento e sabedoria – isto te será dado” (2Cr 1, 12). Os exegetas classificam como sapienciais sete livros do Velho Testamento, os quais possuem tal conteúdo. Cristo fazia uso corrente de parábolas, alegorias e máximas, como por exemplo: “Se um cego guia outro cego, ambos cairão no buraco” (Mt 15, 14). Os evangelistas relatam que: “Nada lhes falava sem usar parábolas” (Mc 4, 34), cumprindo o que profetizou Isaías (Is 6, 9-10).

Para compreender melhor o sentido da expressão que intitula este artigo, convém lançar um olhar sobre a História da Igreja Católica, nos dois últimos séculos. Até o Concílio Vaticano II, a missa era celebrada totalmente em latim e com o celebrante de costas para o povo. Trata-se do ritual da missa tridentina ou de Pio V, que sobrevive até hoje. Autorizado pela Sé Apostólica, é empregado em algumas comunidades. Em 1947, a reforma da liturgia teve o seu ponto de partida com a encíclica “Mediator Dei”, do saudoso Papa Pio XII. A partir de então, começou uma maior compreensão e aproximação dos fiéis na liturgia eucarística, impulsionadas pelo emprego do missal bilíngue (latim e português), editado pelos monges de São Bento, contendo o rito eucarístico e os textos das leituras dominicais e cotidianas. No Brasil, é relevante o contributo dos mosteiros beneditinos de Salvador e Rio de Janeiro, influenciados pelas abadias de Bruges, na Bélgica; Solesmes, na França; Subiaco, na Itália; São Domingos de Silos, na Espanha; Singeverga, em Portugal etc.

Antes desses movimentos que marcaram época na vida do catolicismo, a missa era pouco compreendida pelos cristãos. Sua participação resumia-se à recitação de cor de uma parte do Rosário de Nossa Senhora (composto de cento e cinquenta Ave-Marias, cuja terça parte passou a ser chamada de Terço) e outras orações lidas de um manual religioso, como o “Adoremus”. Durante a cerimônia, alguns rezavam a prece mariana. Mas, a maioria desconhecia a estrutura de um Terço e dos ritos litúrgicos da missa. Provavelmente, daí surge o axioma: “Não sabe da missa um terço.” Donde se infere que a expressão popular alude à oração mariana (não à terça parte). A máxima aqui citada é uma advertência sobre o desconhecimento, a superficialidade ou leviandade em comentar fatos sem o seu domínio adequado ou devidamente embasado. Reveste-se de alienação ou ignorância. É um convite ao aprofundamento, à prudência e ao comedimento nos comentários, juízos ou opiniões. Contra essa atitude, Cristo já se insurgia no Sermão da Montanha: “Não julgueis e não sereis julgados, pois com o julgamento com que julgardes, sereis julgados” (Mt 7, 1).