CHEIRO DE SAUDADE
Valério Mesquita*
01) Sempre que me encontro com minha irmã Nídia Mesquita, vivemos reminiscências. Conversas soltas, assuntos de ontem e de hoje, que reabastecem as gastas baterias do viver. Aqui e acolá, mergulhamos nas lembranças de Macaíba, da fazenda Uberaba do nosso pai, onde vivemos momentos intensos de infância e juventude. Daí, um pulo retornar aos álbuns antigos de fotos, “à la recherce du temps perdu”. Ai me detive numa foto tirada em Natal, há mais de trinta anos passados. Nela, figuravam o embaixador Ney Marinho, Nídia, Onfália Tinôco e o inexcedível Milton Santos de Almeida que visitava Natal numa temporada de reencontro e apresentações artísticas. Sobre ele já disseram que “cantava samba tão bem que a metade já seria suficiente”. Trata-se de um valor definitivo dentro da arte musical brasileira, dono de uma voz personalíssima. Ali estava, é claro, mais jovem, vitaminado, como diria a crônica paroquial, atraído por Ney que pertenceu ao trade boêmio e acolhedor da cidade na arte de recepcionar iguais e gloriosos nomes da música popular brasileira de outrora, tais como, Silvio Caldas, Orlando Silva, entre outros. Mas, o leitor, adivinho, já me pergunta: "Quem diacho é Milton Santos de Almeida?" Não poderia ser outro que não Miltinho, aquele sambista que tinha balanço todo pessoal e agudo senso rítmico. Diferente e comunicativo na interpretação mas, acima de tudo, de profunda honestidade artística. “Lembranças”, “Mulher de Trinta”, “Recado”, “Lamento”, “Cheiro de Saudade”, “Formosa”, “Boneca de Pano”, “Fita Amarela”, “Agora é Cinza”, todas interpretações com o seu timbre inconfundível e estilo inimitável. Para chegar ao podium da consagração nacional, Miltinho enfrentou árdua jornada desde o tempo dos conjuntos vocais Namorados da Lua, Anjos do Inferno e Quatro Azes e um Coringa. Temperado no sereno de muitas madrugadas daquele tempo, explodiu para o sucesso com a composição de Luis Antônio “Poema do Adeus” em 1960 e daí em diante para outros grandes êxitos que marcaram sua carreira. Dele tenho em CD com as principais músicas do seu variável repertório. Curto-o em casa como valor autêntico, irretocável e justo. Descobri que faleceu no Rio, com 86 anos, em 2014. Fiz ver a Nídia que Miltinho pertence ao patrimônio emocional de minhas doces recordações. E juntos, testemunhamos nossas eternas preferências musicais de ontem e de hoje: Isaurinha Garcia, Dalva de Oliveira, Elizete Cardoso, Alcides Gerardi, Luiz Gonzaga e Nelson Gonçalves, além de muitos outros. A tarde descia preguiçosa pelos morros do Tirol. Uma brisa carpideira soprava pelas janelas do apartamento. Fechamos os álbuns e nos despedimos. Sai assobiando Miltinho sentindo intensamente, irresistível cheiro de saudade…
02) Fato humorístico, hilariante, pode ocorrer no lar, na rua, no trabalho, enfim, em qualquer lugar, porque é um fenômeno humano que não tem idade. Minha mãe, Nair de Andrade Mesquita, aos 98 anos, à época, operada de catarata, teve sua vista bastante reduzida. Morando na cidade de Macaíba, todos os dias, eu ia almoçar ou jantar ao seu lado, cumprindo o dever filial. Certa vez, estenderam roupas no varal situado no quintal perto da sala de copa onde invariavelmente permanecia sentada. Ao contemplar a paisagem enxergou uma vaca no quintal. A enfermeira que lhe assistia, procurou dissuadi-la. “Por que Valério comprou uma vaca? Ele não tem fazenda?”. Repetia insistentemente. No almoço, como não poderia deixar de ser. a pergunta veio inapelavelmente: “Meu filho, de quem é aquela vaca lá no quintal?”. “Vaca, que vaca?”. Tive que explicar direitinho que foi um erro de visão dela, etc. Ao cabo de cinco minutos, voltou ao assunto: “Eu só tenho receio que essa vaca vá estragar o meu jardim”. Tornei a repetir que não existia vaca nenhuma. Tudo era produto de sua imaginação. Continuamos o almoço. Ao cabo de pouco tempo, fitando-me com seriedade me inquiriu: “Meu filho, você já tem comprador pra essa vaca?”. Com indulgente paciência filial esclareci que não existia vaca, pois estava equivocada. Na hora do cafezinho, quando preparava nova pergunta, resolvi convidá-la para ir ver a vaca. Pelo menos não iria ver e deixaria de vez a “invenção”. Conduzi-a até o quintal. Apontei para todos os recantos e mandei retirar as roupas estendidas. “Tá vendo como não existe vaca nenhuma?”. “Sim meu louro, já sei o que você fez. Mandou retirar a vaca para a fazenda de Nídia, sua irmã!”. Diante da impossibilidade de convencer tive que admitir a existência da vaca ficcional. “Mãe é mãe”.
(*) Escritor.