sábado, 21 de janeiro de 2023

 Jair Eloi de Souza

ASSIM ESCREVÍ:
SOBRE O SOCIALISMO CABOCLO DE MINHA AVÓ ANINHA.
Parece que a vejo de olhar terno, face macerada pelo tempo e pelas intempéries das eras de magrém. Uma crença imensurável no Padrinho Cícero do Juazeiro. Colecionava rosários benzidos por este, e os usava todos no pescoço, como se aqueles dessem consistência a sua fé cabocla.
Na parede os "Registros", onde deslumbrava Santa Luzia, com seus olhos esverdeados, e a foto do Padrinho, com sua túnica preta, chapéu de abas arredondas e o cajado na mão. Lá na canarinha, o oratório, com muitas figuras de Santos que fazem a cristandade, a começar pela família do carpinteiro José. Todos ornados de fitas vermelhas e azuis. Ali era o lugar de suas orações para amenizar os aperreios da família, a reza sempre era uma oferenda a todos, até aos amigos.
Seus ancestrais, "os Baos" eram arrecursados, animais de cascos rachados, criação ovina, muares de monta e glebas na ribanceira do Piranhas. Mas, o empobrecimento viera a partir do último quartel do Século XIX, secas tiranas (1877-1879), 1898, e as mais destruidoras do Século pretérito (1915 e 1919). Dizia-me ela que nessas últimas, foram-se todos os bichos, ficaram somente as amarras e os chocalhos e o arraso da fome, que matara muitos cristãos.
Tinha minha avó uma praxe, antes dos dias grandes da Semana Santa, fazia uma coleta de grãos junto aos amigos e parentes e toda a arrecadação na quinta e sexta-feira, distribuíam com os mais pobres que acorriam a sua casa. Nessa tarefa, eu ainda infante, lhe ajudava, pondo uma porção de gêneros em cada saquinho dos que pediam para jejuar. Esse era o lado socialista da alma de minha avó Aninha.
* ANA VICÊNCIA DA CONCEIÇÃO: Minha avó materna.
J.E.S.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023

 

VIDA COMPLICADA

 

Valério Mesquita*

mesquita.valerio@gmail.com

 

Não existe mais critério para balizar as informações ou alterações sobre os riscos da saúde humana. As referências qualitativas mudam a cada ano. Não há unidade científica sobre esta ou aquela questão que afeta o ambiente vital. Falo assim porque ouvi e assisti as últimas prescrições pela tv sobre os produtos e os microorganismos causadores de infecções e doenças que rondam os ares e lares brasileiros. São fatos que só podem ser discutidos pela mediação confrontativa. São conselhos de saúde que conheço desde o tempo dos almanaques Capivarol, Jeca Tatu ou do Biotônico. Eles atendiam a suficiência cultural do povo através da mensagem simples e simplificada porque se vivia um tempo ingênuo e menos complicado.

Hoje, recomenda-se que a descarga do vaso sanitário, após o ato defecatório, somente seja acionada com a tampa fechada a fim de evitar a proliferação de micro-organismos. Esses vilões invisíveis podem infectar escovas de dentes expostas, sabonetes, pastas, cremes e tudo que habita o espaço da privada. Principalmente, seu usuário. Foi aí que remeti o pensamento para o tempo em que não havia nos banheiros o bidê, o chuveiro e a descarga. Só a jarra, tina, tonel, tanque e a milagrosa lata de querosene que empurrava, canal aberto, o bolo fecal diretamente para a fossa. Era a higiene daquela época antes da chegada da suíte, que me parece, mesmo cercada do conforto moderno – tornou-se hospedeira dos mesmos coliformes fecais numa quadra doentia e propícia a contaminações. Que saudade das tratáveis verminoses!

Nas geladeiras, por exemplo, é inconcebível a mistura de alimentos. É o que sugere a autoridade da saúde através do canal da Globo. Em priscas eras, juntava-se carne, ovos, peixe, frutas, verduras, legumes, bebidas, leite, conservas e enlatados de todo o tipo na famosa geladeira Cônsul ou Gelomatic à querosene, sem problemas. Nos dias da moda, estão proibindo agrupar todos os gêneros dentro do refrigerador. Latas de carne para cães ou gatos nem pensar. Somente acondicionadas em papel-filme apropriado. No queijo reside o risco da bactéria salmonella. Nas latas, a ferrugem é ninho de germes. Mas, o golpe emocional veio depois: os adoçantes, de modo geral, são cancerígenos. Sabíamos que a sacarina e o ciclamato de sódio teriam sido assim pesquisados e rotulados. Salvava-se o aspartame. Todavia, a mutabilidade científica da pesquisa médica é inexorável. Caiu o último produto químico popular que substituia o açúcar.

Um diagnóstico médico virou doença nos ambulatórios e consultórios  na atualidade: virose. Gripe que se curava antigamente com analgésico comum hoje é virose. Disenteria inespecífica também. Até sintomas de complicados estados patológicos são pressagiados de virose. Os vírus, tão intensamente divulgados e disseminados, tornaram-se realidade biológica e exigem de nós automatismo defensivo. O tema não é vulgar porque trata de um hábito fisiológico que integra o preocupante cotidiano humano. Na tarefa manual e rudimentar, um famoso cronista social trouxe, certa vez, dos Estados Unidos, a novidade incomparável de limpar-se, após a evacuação, através de suave instrumento mecânico de contato. E com ele veio a dica de que ninguém se contamina por falta de higiene. Veja o leitor como tudo hoje é complicado.

Depreende-se que é preciso uma lei contra as impurezas. O mundo fede há muito tempo. Mas, o ser humano é o seu principal agente. Nessa eleição, o assunto foi esquecido. Nenhum candidato sustentou a defesa da saúde humana, nem da animal com tantos pets instalados em Natal. Perderam o voto dos bichinhos.

 

(*) Escritor

 

quarta-feira, 18 de janeiro de 2023

 



 

A Coluna Prestes no Rio Grande do Norte - I

Tomislav R. FemenickMembro do Instituto Histórico e Geográfico do RN

 

A Coluna Prestes era formada por militares rebeldes, principalmente pelos de São Paulo e do Rio Grande do Sul. Seus principais líderes foram Luís Carlos Prestes, Juarez Távora e Miguel Costa. Em 1924 alguns deles já tinham tentado fazer uma revolução, tomando o Forte de Copacabana, mas fracassaram. Formados em pelotões, a Coluna percorreu cerca de vinte e cinco mil quilômetros pelo interior do país, fazendo uma “guerra de movimentos” e enfrentando as forças do governo. No final de 1926, com a metade dos homens dizimados pela cólera e sem condições de continuar a luta, refugiou- se na Bolívia.

Porém no início daquele ano, no dia 3 de fevereiro, tropas rebeldes da Coluna Prestes realizaram o seu primeiro ataque no Rio Grande do Norte, contra a cidade de São Miguel. A luta foi travada por 70 revoltosos, militares treinados, contra quatro soldados da polícia do Estado e 28 atiradores (pistoleiros?), “num tiroteio que durou das quatro horas da tarde até ao crepúsculo, com um rebelde morto e dois legalistas feridos. Um destes [...] caiu nas mãos dos rebeldes e foi degolado”. A população mais abastada de São Miguel fez uma verdadeira debandada da cidade, quando se noticiou que outros mil rebeldes estavam se dirigindo para lá. No dia seguinte a cidade foi saqueada pelos integrantes da Coluna Prestes, que invadiam residências e lojas “arrebentando móveis e destruindo objetos que não podiam usar ou transportar. [...] Partiram no mesmo dia em que chegaram, depois de queimar o [Cartório de] Registro de Título e Documento” (SILVA, 1966; MACAULAY, 1977). De São Miguel foram para Luiz Gomes, onde repetiram o saque, invadiram e destruíram lojas e residências, levando tudo o que podiam, e novamente incendiaram o Cartório local.

Antes desses ataques, várias cidades do Estado se viram ameaçadas de invasão pelos tenentes rebeldes. No dia 31 de janeiro, quando o jovem Padre Luiz Ferreira da Mota (o célebre Padre Mota que depois viria a ser vigário geral, prefeito e deputado estadual) tomava posse como o novo vigário de Mossoró, correu a notícia de que os revoltosos da Coluna Prestes estavam na iminência de atacar a cidade. Em ata paroquial, o Padre Mota registrou o impacto que a notícia de um provável ataque da Coluna Prestes a Mossoró teve entre a população da cidade. Dizia ele:

“Neste mesmo dia, espalhou-se pela cidade o terror da notícia de que os revoltosos se encaminhavam pa­ra nossas fronteiras, noticia que foi divulgada pe­la manhã, e logo começou o êxodo da população. Quando me dirigia para a Matriz, às 8 e meia, para a posse, fui, com surpresa, avisado do que se passava e sobretudo de que certas pessoas de autorida­de e responsabilidade já haviam abandonado, preci­pitadamente, a cidade. Diante desta situação, resolvi fazer um apelo de tranquilidade ao público, para melhor se resolver a situação e convocar uma sessão de todas as autoridades e pessoas de responsabili­dade, o que fiz de púlpito, com palavras repassadas de fé no patrocínio de nossa Virgem Padroeira, Santa Luzia, e também de confiança no patriotismo do nos­so povo. A sessão realizou-se no mesmo dia, a 1 ho­ra da tarde, no edifício do Colégio Diocesano, com grande comparecimento de povo e nela tomaram-se me­didas que são do domínio público. Daí por diante, nos dias de aflição e apreensão pa­ra o nosso povo, sempre tomei a dianteira de todas as manifestações cívico-patrióticas pela defesa da nossa cidade, procurando, sobretudo despertar o ânimo do povo, aconselhando a calma, prudência e per­manência na cidade, para guarda dos acontecimentos. Aprouve a Deus que tudo se passasse sem desgraças e atropelos para nosso povo; os rebeldes tomaram outro rumo e nossa população voltou à paz do costu­me, que a caracteriza. Todos [nós] reconhecemos, nesta salvação de tamanho fla­gelo, [que foi] o dedo de Deus que nos protegeu, por intercessão da nossa querida Padroeira Santa Luzia. Em reconhecimento de tão grande graça, cantou-se um ‘Te Deum’ solene, em ação de graças, no domingo, 21, pelas 5 horas da tarde” – Texto extraído do livro do tombo da igreja de Santa Luzia, em Mossoró-RN.

terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

O vandalismo, as suas origens e formas

Padre João Medeiros Filho

A humanidade progride célere em muitos aspectos, notadamente tecnológicos. Entretanto, o homem evoluiu pouco interiormente. Comporta-se em certas circunstâncias como os vândalos medievais. Estes, segundo alguns historiadores, dentre os quais, Procópio de Cesareia, procedem de uma tribo germânica, sediada em Cartago (cidade da Tunísia, na África do Norte). O termo origina-se provavelmente de “wandalen” (os que vagam, em alemão antigo). Em 455, invadiram o Império Romano, saquearam a sua sede e arruinaram importantes obras de arte. Surgiu então a palavra vandalismo, definindo ações irracionais de depredação de bens públicos e privados. Segundo etimólogos, o termo foi usado pela primeira vez em 1794 pelo bispo Henri Grégoire, em Blois (França), para denunciar a destruição de objetos culturais, durante a Revolução Francesa. O étimo foi dicionarizado, a partir da derrubada da Coluna de Vendôme (Paris), símbolo do poder napoleônico. Com o tempo, a palavra adquiriu a conotação de destruir, destroçar etc. A origem de tais ações deletérias está no radicalismo ideológico, político, cultural ou religioso. Na Antiguidade, as diferenças teológicas entre arianos e católicos foram uma constante fonte de tensões e batalhas.  

Tal fenômeno resiste às civilizações. Na Segunda Guerra Mundial, obras históricas e artísticas foram saqueadas nos museus da Europa. Em 2001, assistiu-se à demolição da estátua de Buda, do século IV.  Em 2015, a parte antiga de Palmira, cidade síria fundada no período neolítico, foi devastada. Vândalos continuam ativos, inclusive no Brasil hodierno. Ao passar por várias cidades, encontram-se monumentos históricos pichados ou parcialmente arrasados, sob o olhar complacente de alguns. A impunidade torna-se um incentivo aos novos bárbaros, sedentos de sórdidas vanglórias. Propriedades privadas não ficam imunes a esses predadores. Lugar algum está a salvo dessas agressões. É deplorável verificar que nem sempre seus autores são pessoas de nível socioeconômico ou intelectual elementar. Ao adentrar em certos prédios universitários, escolas e logradouros públicos depara-se com barbáries.

Repudiamos veementemente todo e qualquer tipo de vandalismo. Um erro não justifica outro. É uma estultícia, porque os bens materiais não são culpados pelos atos reprováveis de autoridades ou proprietários. No entanto, como cristãos, caberia refletir sobre algumas realidades, denominadas pelo Papa Francisco como vandalismos invisíveis. “Estes, apesar de silenciosos e aparentemente não violentos, podem deixar sequelas físicas, psíquicas, morais, e econômicas irreversíveis.” Há dificuldade em tipificar como ações de vandalismo desmandos e improbidades administrativas, deteriorando o ente público, ética e economicamente. Isso poderá desencadear movimentos de protesto e revolta. Pessoas reagem contra abusos que consideram graves. Não há controle. Portanto, inescrupulosos se misturam, extravasando sua violência. Têm atitudes danosas, como fizeram os vândalos, em Roma e alhures, noutros momentos da História. Em determinados lugares e ocasiões, alguns movimentos organizados tentam disseminar o medo ou ampliar o caos. 

O vandalismo não tem limites, pátria ou lado. Ele não é apenas material. Lamentavelmente, o patrimônio público é irresponsavelmente o mais atingido por aqueles que deveriam conservá-lo. Afinal, vivem-se tempos do “é proibido proibir”, da cômoda presunção de inocência, da retórica dos defensores de “direitos humanos”. Os malefícios do vandalismo invisível, afirma o atual Sumo Pontífice, “fazem estragos e vítimas, não obstante sua forma sutil e sorrateira, entretanto não menos perniciosa.” Perguntemo-nos: saquear o erário, à sorrelfa, não se configura em um tipo de vandalismo? Não o será também deixar por desídia hospitais, estradas e escolas públicas funcionando precariamente? Como classificar a eventual sede institucional de revanche? Cientistas políticos e sociais indagam: aprovar leis levianamente, desprezando a transparência, em detrimento do bem-estar do povo, não se enquadraria nessa espécie de destruição? Linguistas interpelam: impor sem convencimento e diálogo a linguagem neutra não é aviltar o idioma pátrio e sua norma culta? À luz da Ética, atitudes vandálicas são injustificáveis. Lê-se no Livro dos Salmos: “Muitos têm boca, mas não falam; olhos, mas não veem; ouvidos, mas não ouvem” (Sl 115/113-B, 5-6). Nos dias atuais, quem terá a coragem e a dignidade de bater no peito e fazer o “mea culpa”?  Diz ainda o salmista: “Até quando, Senhor Deus, os ímpios triunfarão?” (Sl 94/93, 3).

 

UMA HERDADE À BEIRA-MAR

                                                                       -  Horácio Paiva*

                        A realidade é a opção do provável. A consciência tem muitos caminhos, mas apenas um, de fato, nos é dado viver em nosso mundo. Os demais pertencem à definição dos universos paralelos, traçada pela magia lógica da física quântica.

                        A realidade

                        é a opção do provável  -

                        o real é Deus.

                        Porém não é a filosofia agora o que nos importa, mas a poesia, com o seu aglomerado infinito de sonhos, à disposição do imaginário de cada um. Afinal,

 

                        Todo homem

                        traz

                        uma mensagem.

 

                        Todo homem

                        é mensageiro

                        dos deuses.

                        Quanto a mim, cumpro meu papel contemplativo, ou missão: sou um sonhador nato, isto é, sonho muito  -  o que não significa, necessariamente, originalidade. Desses sonhos, inúmeras vezes, nasceram ações e realidades que foram úteis não apenas a mim, mas também ao meu próximo. Apraz-me, por exemplo, haver participado intensamente, e em momentos decisivos, de lutas sociais.

                        A par disto, sou igualmente um sonhador individual, e, neste caso, nem sempre a contemplação leva à ação, contentando-me no campo prazeroso e desafiador das divagações espirituais, devocionais ou mesmo sensoriais. Quanto a estas últimas, e não obstante por vezes fazer residência numa fazenda, no interior do mato, o meu amor à natureza tem duas almas, levando-me a um sítio à beira-mar, acolhedor ao encontro com a poesia que, como Vênus, parece haver nascido do mar, espelho de uma beleza absoluta onde, desprendidos, nos deixamos ficar  -  como no encanto desses versos de Fernando Pessoa:

                         “Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

                        Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar”.

                        Ou no embalo dramático desses outros, também do grande poeta, que lembram a saga dos antigos navegadores portugueses, desbravadores do Mar Oceano:

                        “Ó mar salgado,

                        Quanto desse sal

                        São lágrimas de Portugal.”

                        Ah, Vênus!... Ah, o diálogo amoroso com a amada no alvorecer da clara manhã!... Não é o mesmo que sugere o anjo Amadeus, no andante pausado e quase sacro de seu Concerto 21 para piano?

                        Disse-me certa vez o meu saudoso amigo Luiz Evangelista de Oliveira, cearense nascido no vale do Jaguaribe e médico dos marítimos de Macau, num tempo que jamais se perderá, preferir sítios que reunissem o sertão e o mar. Havia nele  -  e certamente ainda há, onde estiver  -  essas duas almas.

                        Corria o ano de 1916, no fragor da Primeira Grande Guerra, quando o poeta norte-americano Alan Seeger, com 28 anos de idade, lutava nas fileiras das tropas aliadas. Às vésperas de morrer em combate, escreveu um poema intitulado “Tenho um Encontro com a Morte” (“I Have a Rendez-vous with Death”), cujos versos profeticamente anunciavam o seu fim trágico:

                        “Eu tenho um encontro com a morte,

                        E jamais a esse encontro eu faltarei.” 

                        O amor, a vida e a morte sempre foram o universo da grande poesia... Miguel Hernández:

                        “Llegó con três heridas:

                        La del amor,

                        La de la muerte,

                        La de la vida.”

                        O meu encontro com a poesia numa herdade à beira-mar, mesclado de serenidade, sonho e prazer, terá o tempo completo de um dia  -  mas não de precisas vinte e quatro horas  -, observadas, porém, essas quatro estações: manhã, meio-dia, tarde e noite. Divirto-me a imaginar o que estaria recordando, lendo ou ouvindo...

                        E não se surpreendam se encontrarem a manhã repleta de música, já que não poderei esquecer o primeiro movimento da nona sinfonia de Beethoven  -  música absoluta, como diria Carpeaux  -  e o encanto da “Ode à Alegria”, com os belos, sonoros e românticos versos de Schiller, ao final. 

                        O lugar e a hora me farão mais uma vez recordar essa estranha e diáfana Annabel Lee, em seu reino à beira-mar, e cujo amor fora invejado pelos próprios serafins, tema de memorável poema de Edgar Allan Pöe.

                        “Eu era criança, ela era uma criança

                                    no reino à beira-mar,

                        mas nosso amor chegava, ó Annabel Lee,

                                    o amor a ultrapassar,

                        amor que os próprios serafins celestes

                                    vieram a invejar.”

                        O meio-dia tropical, porém, requer um poema forte, de crença de força na vida, e lembro o nosso Gonçalves Dias:

                        “Se a vida é combate

                        Que aos fracos abate,

                        Aos fortes, aos bravos

                        Só pode exaltar.”

                        Ainda ao meio-dia, nordestino, pleno de sol e luz, vejo e escuto a natureza do semiárido, onde o raios de sol, além dos passarinhos, cantam.

                        Os raios de sol gorjeiam

                        na límpida claridade

                        do meio-dia.

                        À tarde, na hora frágil que antecede o pôr do sol, estarei nostálgico e pensativo. Recordarei a infância e a casa de meu pai, e buscarei viver esse mundo aparentemente perdido, refugiando-me à sombra do limoeiro que encontro em Antonio Machado:

                         “E sou sozinho no pátio silencioso

                        buscando uma ilusão cândida e velha.”

 

                        “Esse aroma evocativo dos fantasmas

                        das fragrâncias virginais e já desfeitas.”

                        Mas a noite é a hora do recolhimento em Deus e na esperança  -  la fuente que mana y corre  -  e entrego-me à leitura de San Juan de la Cruz e de sua obra-prima, quiçá de toda a poesia escrita em língua espanhola, “Noche Obscura”. Ouvindo Bach, naturalmente, e acompanhando Jesus no Horto das Oliveiras, como também o faz o inspirado compositor em sua sublime Ária na Corda Sol ...

                        “Sin outra luz y guia

                        sino la que en el corazón ardia.”

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 (*) Horácio de Paiva Oliveira  -  Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2023

 

Cartas de Cotovelo – Verão de 2023 – 3

Por: Carlos Roberto de Miranda Gomes

VOLTANDO À ROTINA

        Até que enfim pude gozar das dádivas da natureza. Fui à praia para receber as bênçãos do sol e me banhar nas águas límpidas da Praia de Cotovelo, comungando com alguns moradores e veranistas que, palidamente, armaram as suas sombrinhas e guardavam atenção para com a meninada que se deleitava na maré enchente.

No almoço, como estou em casa somente com meu filho Rocco e meu neto Guilherme, preferi ir a Rosinha de Dona Helena, onde degustei uma maravilhosa posta de peixe, com caldo e outros acompanhamentos.

No mesmo recinto a alegria de um reencontro – João Maria Cavalcanti Nogueira, filho dos meus saudosos vizinhos Milton e Lourdinha, cuja casa de moradia eu comprei para resguardar a memória dos bons amigos que partiram. Ele estava com sua esposa e dois filhos adolescentes.

Muitas rememorações de um tempo lúdico na Travessa Coronel João Gomes, Barro Vermelho, em especial, das peladas e peladeiros de um tempo retalhado, desde quando ainda era o sítio do Coronel que dá nome à rua e travessa, que chamávamos o campo das goiabeiras, com suas mangueiras, coqueiros, goiabeiras e pitangueiras que ficavam em sua extensão, dando sombra e nos ensinando, desde então, a jogar contornando aqueles obstáculos naturais.

Pouco depois, quando então construí ali a minha casa, as peladas passaram para o quintal da casa do Dr. Ricardo Guedes (Cadinho), das quais guardo, ainda, a lembrança de um vidro rachado, intercalado com outro campinho próximo, na rua Meira e Sá, que chamávamos de campo do turco (local descampado onde eram armados os circos).

E foram surgindo os nomes dos jogadores – alguns já perto de Deus e outros, agora vetustos ou jovens senhores.

Da primeira geração foram lembrados dos doutores Moacyr e Clovis Gomes, João Charuto, Renato Praxedes, eu, Osman (vizinho), Dôta, Serginho, Gustavo, Zezinho, Maeterlink, Cuca Benfica, Abimael Morais ... iiiii, a memória falhou para lembrar os demais. Depois, já sob o comando de Cadinho, João Maria, Roquinho, Marcos Tejeba, Carlinho, Serginho, João perna santa, Fábio, Jonas rato, Jorginho, Fábio China, Janaí, Gustavo Paiva, Lívio, Nogueira, Mário Júnior, Pixinga, Adriano e vários outros.

É sempre bom lembrar coisas passadas, principalmente quando elas são do bem!

 

Juristas à bolognese
​Terminei outro dia um excelente livro de Jacques Le Goff (1924-2014), o famoso medievalista francês, intitulado “Os intelectuais na Idade Média” (José Olympio Editora, 2003). Por mais que o título assuste, foi um dos poucos livros que, recentemente, li quase de um fôlego só. Adorei. E acabo de emprestá-lo ao meu pai. “Devolvê-lo”, segundo ele. Afirma que já era dele o dito cujo. Não vou alimentar essa querela, que é mais complicada que o problema dos universais.
Dentro da temática cujo título já bem revela, a par das grandes personagens do período – santos, teólogos, filósofos, papas, príncipes etc. –, o livro foca bastante no alvorecer da instituição “universidade” e no ensino de então, em especial na famosa Universidade de Paris. Se a conjuntura do nascimento das universidades no Ocidente traça uma curva “Bolonha, Paris, Oxford”, a nacionalidade do seu autor explica a preferência pela escola francesa. Está perdoado.
​Entretanto, curiosamente, o mote para esta minha crônica vem de passagens do livro sobre a Universidade de Bolonha, “oficialmente” a mais antiga das três citadas e, nesse alvorecer, a mais relacionada/relevante para o direito. Segundo Le Goff, a Bolonha de então “compreende diversas universidades [melhor seria dizer faculdades, na terminologia de hoje]. (...) Mas a preponderância das duas universidades de juristas – a civil e a canônica – é quase total. Essa preponderância se reforça no curso do século com o fato de que os dois organismos praticamente se fundem. Quase sempre um reitor está à frente da instituição”. O direito mandava em Bolonha. Fato!
Mas os “juristas” – no duplo sentido do termo, como vocês verão a seguir – davam as ordens a uma moda, digamos, bolognese. Às custas dos estudantes, com altíssima remuneração, ganhavam fortunas. Anota Le Goff: “Os mestres – e isso vale sobretudo para os mais célebres, que ganham mais, porém não deixa de valer, em grau menor, para a maioria – tornam-se ricos proprietários. Seguindo o exemplo de outros ricos, acabam se entregando também a uma atividade de especulação. Transformam-se em usurários. São vistos emprestando a juros principalmente aos estudantes necessitados e retendo o mais frequentemente como penhor esses objetos para eles de duplo valor: os livros”.
​Minha maior decepção foi com o ilustre Accursio (1185-1263), “o mais notável dos glosadores do direito romano e um de seus renovadores, autor da Grande Glosa. Dante lhe deu lugar no Inferno”. E lê-se ainda em “Os intelectuais na Idade Média”: “Francesco Accursio possui bens em Budrio, em Olmetola, uma esplêndida casa de campo em La Riccardina com uma roda hidráulica que era uma verdadeira maravilha para a época. Em Bolonha ele é dono, com seus irmãos, de uma bela casa com torre que forma a atual ala direita do Palácio Comunal. Fazia parte, com outros doutores, de uma sociedade comercial para a venda de livros em Bolonha e no exterior. Entregou-se à usura em escala tão vasta que na hora da morte teve de pedir absolvição ao Papa Nicolau IV, como de hábito concedida”.
​Nada contra a riqueza. Para mim, todos deveriam ser ricos. Honestamente. Eticamente.
Mas são sempre “danadinhos”, esses “juristas”. Os de ontem e os de hoje.
Por falar nisso (de “juristas danadinhos”), na minha lida profissional, na dúvida se argumentos de ordem moral ou ética farão alguma diferença, tenho feito uso, no combate ao crime de colarinho branco, de um enviesado “imperativo categórico”. Digo sempre às pessoas: “não faça besteira com a coisa pública. Não queira ser preso. Por dever profissional, conheço a realidade das prisões. É terrível. Não queira sequer ser processado. Nas mãos de um bom promotor, você vai perder tudo que ‘ganhou’ (ou mesmo já tinha) para o Estado. E, se não perder para o Estado, vai perder para o seu próprio advogado, pode ter certeza. Para o seu bolso, dá no mesmo”.
​Para alguns “juristas”, o inferno de Dante está ali.
Marcelo Alves Dias de Souza
Procurador Regional da República
Doutor em Direito (PhD in Law) pelo King’s College London – KCL