terça-feira, 17 de janeiro de 2023

 

UMA HERDADE À BEIRA-MAR

                                                                       -  Horácio Paiva*

                        A realidade é a opção do provável. A consciência tem muitos caminhos, mas apenas um, de fato, nos é dado viver em nosso mundo. Os demais pertencem à definição dos universos paralelos, traçada pela magia lógica da física quântica.

                        A realidade

                        é a opção do provável  -

                        o real é Deus.

                        Porém não é a filosofia agora o que nos importa, mas a poesia, com o seu aglomerado infinito de sonhos, à disposição do imaginário de cada um. Afinal,

 

                        Todo homem

                        traz

                        uma mensagem.

 

                        Todo homem

                        é mensageiro

                        dos deuses.

                        Quanto a mim, cumpro meu papel contemplativo, ou missão: sou um sonhador nato, isto é, sonho muito  -  o que não significa, necessariamente, originalidade. Desses sonhos, inúmeras vezes, nasceram ações e realidades que foram úteis não apenas a mim, mas também ao meu próximo. Apraz-me, por exemplo, haver participado intensamente, e em momentos decisivos, de lutas sociais.

                        A par disto, sou igualmente um sonhador individual, e, neste caso, nem sempre a contemplação leva à ação, contentando-me no campo prazeroso e desafiador das divagações espirituais, devocionais ou mesmo sensoriais. Quanto a estas últimas, e não obstante por vezes fazer residência numa fazenda, no interior do mato, o meu amor à natureza tem duas almas, levando-me a um sítio à beira-mar, acolhedor ao encontro com a poesia que, como Vênus, parece haver nascido do mar, espelho de uma beleza absoluta onde, desprendidos, nos deixamos ficar  -  como no encanto desses versos de Fernando Pessoa:

                         “Aqui na orla da praia, mudo e contente do mar,

                        Sem nada já que me atraia, nem nada que desejar”.

                        Ou no embalo dramático desses outros, também do grande poeta, que lembram a saga dos antigos navegadores portugueses, desbravadores do Mar Oceano:

                        “Ó mar salgado,

                        Quanto desse sal

                        São lágrimas de Portugal.”

                        Ah, Vênus!... Ah, o diálogo amoroso com a amada no alvorecer da clara manhã!... Não é o mesmo que sugere o anjo Amadeus, no andante pausado e quase sacro de seu Concerto 21 para piano?

                        Disse-me certa vez o meu saudoso amigo Luiz Evangelista de Oliveira, cearense nascido no vale do Jaguaribe e médico dos marítimos de Macau, num tempo que jamais se perderá, preferir sítios que reunissem o sertão e o mar. Havia nele  -  e certamente ainda há, onde estiver  -  essas duas almas.

                        Corria o ano de 1916, no fragor da Primeira Grande Guerra, quando o poeta norte-americano Alan Seeger, com 28 anos de idade, lutava nas fileiras das tropas aliadas. Às vésperas de morrer em combate, escreveu um poema intitulado “Tenho um Encontro com a Morte” (“I Have a Rendez-vous with Death”), cujos versos profeticamente anunciavam o seu fim trágico:

                        “Eu tenho um encontro com a morte,

                        E jamais a esse encontro eu faltarei.” 

                        O amor, a vida e a morte sempre foram o universo da grande poesia... Miguel Hernández:

                        “Llegó con três heridas:

                        La del amor,

                        La de la muerte,

                        La de la vida.”

                        O meu encontro com a poesia numa herdade à beira-mar, mesclado de serenidade, sonho e prazer, terá o tempo completo de um dia  -  mas não de precisas vinte e quatro horas  -, observadas, porém, essas quatro estações: manhã, meio-dia, tarde e noite. Divirto-me a imaginar o que estaria recordando, lendo ou ouvindo...

                        E não se surpreendam se encontrarem a manhã repleta de música, já que não poderei esquecer o primeiro movimento da nona sinfonia de Beethoven  -  música absoluta, como diria Carpeaux  -  e o encanto da “Ode à Alegria”, com os belos, sonoros e românticos versos de Schiller, ao final. 

                        O lugar e a hora me farão mais uma vez recordar essa estranha e diáfana Annabel Lee, em seu reino à beira-mar, e cujo amor fora invejado pelos próprios serafins, tema de memorável poema de Edgar Allan Pöe.

                        “Eu era criança, ela era uma criança

                                    no reino à beira-mar,

                        mas nosso amor chegava, ó Annabel Lee,

                                    o amor a ultrapassar,

                        amor que os próprios serafins celestes

                                    vieram a invejar.”

                        O meio-dia tropical, porém, requer um poema forte, de crença de força na vida, e lembro o nosso Gonçalves Dias:

                        “Se a vida é combate

                        Que aos fracos abate,

                        Aos fortes, aos bravos

                        Só pode exaltar.”

                        Ainda ao meio-dia, nordestino, pleno de sol e luz, vejo e escuto a natureza do semiárido, onde o raios de sol, além dos passarinhos, cantam.

                        Os raios de sol gorjeiam

                        na límpida claridade

                        do meio-dia.

                        À tarde, na hora frágil que antecede o pôr do sol, estarei nostálgico e pensativo. Recordarei a infância e a casa de meu pai, e buscarei viver esse mundo aparentemente perdido, refugiando-me à sombra do limoeiro que encontro em Antonio Machado:

                         “E sou sozinho no pátio silencioso

                        buscando uma ilusão cândida e velha.”

 

                        “Esse aroma evocativo dos fantasmas

                        das fragrâncias virginais e já desfeitas.”

                        Mas a noite é a hora do recolhimento em Deus e na esperança  -  la fuente que mana y corre  -  e entrego-me à leitura de San Juan de la Cruz e de sua obra-prima, quiçá de toda a poesia escrita em língua espanhola, “Noche Obscura”. Ouvindo Bach, naturalmente, e acompanhando Jesus no Horto das Oliveiras, como também o faz o inspirado compositor em sua sublime Ária na Corda Sol ...

                        “Sin outra luz y guia

                        sino la que en el corazón ardia.”

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 (*) Horácio de Paiva Oliveira  -  Poeta, escritor, advogado, membro do Instituto Histórico e Geográfico do RN, da União Brasileira de Escritores do RN e presidente da Academia Macauense de Letras e Artes – AMLA.

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