sábado, 31 de julho de 2010

Veredas Errantes: uma estória que me contaram.
Por Kennedy Diógenes*

De onde venho a distância não se conta por léguas, quilômetros ou qualquer sistema métrico; não se mede o espaço percorrido, mas conta-se em Eras vividas, decênios e séculos imemoriáveis que se perderam no horizonte do tempo.

Nessa longa jornada, que pareceu se iniciar na displicência do acaso, germinada na simplicidade das formas, caminhei ladeado pela necessidade e pelo desejo de poder, estes esporões desprovidos de moral que fustigaram o meu espírito, açularam-me os passos e me infringiram a prática de vilanias impensáveis por mim, contra mim e contra os muitos companheiros de viagem.

Em busca de saciar a minha sede de poder, corrompi a mente e o corpo, entreguei-me às violentas paixões da matéria e, unindo-me aos mais fortes, não tive prurido em apropriar-me dos mais sagrados ideais para justificar a expropriação espúria dos mais fracos, que me fartaram a mesa enquanto se esvaíam na caquexia material e espiritual.

E os sacrifícios daqueles que me serviram restaram em irrisão para animar a minha Corte. Como prêmio, os desvalidos obtiveram o cárcere perpétuo das obrigações diárias sob minha tirania, para me manterem vivo, satisfeito, pujante, em troca do oferecimento ilusório de um manto protetivo das intempéries humanas.

Investido da arrogância própria dos poderosos, liderei aqueles que me confiaram a vida à morte certa, em guerras iníquas baseadas em interesses mesquinhos. Muitos tombaram nas trincheiras da esperança acreditando nas minhas falsas promessas, mas somente fortaleciam meus viscerais interesses e enriqueciam os meus amigos mais próximos. Jamais houve guerras contra a tirania ou pela liberdade, mas por território, por tesouros naturais ou por mercados. Não existiu o bom combate, mas o ataque dos fortes e a defesa dos fracos, onde aqueles venciam e estes eram aniquilados.

Foi assim que enveredei pelos vales das sombras humanas, granjeando a experiência terrível da manipulação e usurpação. Mais de uma vez, iludi o meu aprisco com placebos morais; frustrei a esperança daqueles que dependiam de mim; trai todos aqueles que em mim depositaram sua confiança, em joguetes indecorosos para a minha própria distração.

É bem verdade que posso ter feito algo de bom e justo, mas se o fiz, foi para encobrir os males fabricados nos porões da minh´alma. Doei com uma mão, mas roubei com a outra os sonhos, as fantasias, as expectativas dos incautos e crédulos, construindo em meu derredor castelos de desilusões.

Mas, inesperadamente, o meu organismo infausto e insaciável feneceu. Envolvido com meus projetos de poder material, não notei que se esvaiu, da ampulheta temporal, o último grão de vida, ceifando-a mais uma vez no palco do mundo visível. E em um tempo que não saberia precisar, fragmentos dessa minha trajetória recém finda pairaram diante de minha vista. Vi, com uma lucidez ora revelada, que as minhas ações, sejam esteadas na ganância, no orgulho ou em qualquer outro defeito moral de meu espírito pródigo, carrearam dor e sofrimento a muitos, e a cada lamento, cada lágrima desses infelizes, causticou meu coração insensível, transformando-o em uma chaga de mágoa profunda e irretorquível.

E como prolongamento da vereda errante desta encarnação, seguiu-se um período de escuridão espiritual, onde curti pensamentos e rancores vacilantes, ora do Criador, ora de mim mesmo, vivenciando o cárcere mental erigido, pedra por pedra, no torvelinho terreno.

Tardiamente, encolhi-me na minha insignificância. Naquele instante, era somente um arremedo de homem. Restou-me a vergonha intensa, inescusável. Percebi que a maioria dos meus planos materiais não passava de mero capricho, atos rasteiros e toscos, vãs futilidades diante da vida espiritual. É incrível como a consciência de todo o mal causado é a mais horrenda das punições.

Ao compreender o resultado dos meus desacertos, nas trevas em que morria, uma luz bruxuleou no Alto. Era a benevolência Divina, através de seus mensageiros iluminados, que resgatava-me da condição umbralina, imantando o meu espírito de bálsamos salutares e lembrando-me, percuciente, que me conhece a amplidão das limitações e potenciais e, mesmo assim, ama-me incondicionalmente.

Disseram-me, ainda, que é nesse amor universal, pleno, sagrado, sustentáculo dos desiludidos, desesperançados, amargurados, que o Pai nos ampara, fazendo-nos recomeçar e reparar nossos erros, em novas tarefas edificantes na escola terrestre.

Assim, aquele passado triste e vergonhoso, cujos dias atuais se somam lentamente, distancia-se de mim, como uma eiva que se clarifica ante a ação do tempo, mas não sem cobrar-me cada centil.

Enfim, confiando no Pai Celestial, que acolheu meu espírito exausto, e em Jesus Cristo, Mestre Divino, que compartilha comigo minha cruz, espero, em breve, poder vivenciar as provações em nova ventura na Terra, que visam o meu inexorável progresso espiritual, depositando, sempre, nas mãos Deles todos os meus medos e angústias.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

RELATO SOBRE VALÉRIO,
QUE FOI ARBUSTO E ÁRVORE,
E SOBRE MACAÍBA,
QUE SERÁ VALERIANA



O Tejo é mais belo que o rio que corre para minha aldeia;
mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre para minha aldeia.
Porque o Tejo não e o rio que corre para minha aldeia.
(Fernando Pessoa)

“Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia”
(Tolstoi)


Veio-me a palavra: Macaibística. E as associações de idéias (ou rimas?) – probabilística, infortunística, logística – tantas, que formariam um cortejo maior que o beija-mão das autoridades civis e eclesiásticas. Talvez a expressão Macaibística indique a ciência, o estudo, os fundamentos, o conjunto de conhecimentos que caracterizem e definam a raiz “Macaíba”.
Descubro que a palavra Macaíba, designa uma palmácea espinhosa, que produz um fruto carnudo, e que é encontradiça em todo o território brasileiro, chegando até à América Central.
Satisfaço-me com a explicação, mas abandono, temporariamente, a alta, esguia e exuberante palmeira, para pesquisar as suas conseqüências toponímicas, pois quero tratar da cidade de Macaíba, antes conhecida como Coité, este, um arbusto que também produz frutos
Cogito que a cidade tanto cresceu que o arbusto tornou-se insuficiente para descrevê-la, e então a vila se converteu em árvore, altaneira, rija e pujante graças ao empreendedor Fabrício Gomes Pedrosa que entendeu a metáfora e propôs a mudança.
Sempre que vou à Quinta dos Pirilampos o meu paraíso incrustado em Tabatinga, no território macaibense, escolho o trajeto da BR por comodidade. Não que a estrada esteja em condições trafegáveis, mas é asfalfada, circunstância que nos transmite uma impressão de segurança e conforto. De fato, aqui para nós, apesar de todos os perigos, sinto-me tentado a ir pela estrada que segue pela ponte das lavadeiras, enfrentar a curva da morte, o Peixe-Boi, pelos Guarapes, até chegar na Mangabeira, para evocar meu tempo de menino dos anos cinqüenta.
Entre o incerto e o duvidoso, optei por uma terceira via, inusitada, alguns até entenderão como despropositada,mas vocês perceberão o porquê dessa reviravolta.
Rumo para Macaíba numa jangada que aluguei em Muriú. Chegando na boca da barra, tomei o rumo das cabeceiras do Potengi pelas quebradas do Jundiai. Aporto no velho cais, onde já me aguardavam alguns amigos, e me dirijo às Cinco Bocas, na companhia desses tais, Fabrício Pedrosa, Severo, Alberto Maranhão, Auta de Souza, Tavares de Lira, Otacílio Alecrim, Henrique Castriciano, Olímpio Jorge Maciel e o velho alcaide pessedista Alfredo Mesquita Filho.
O objetivo do cortejo, menos numeroso que as possibilidades das palavras rimosas que invoquei no início do texto, era estabelecer os fundamentos da cidade, a sua geografia sentimental, o futuro e, porque não, sacudir um pouco da poeira dos antanhos para acarinhar e acender o lume do coração macaibense.
Fui moderador da reunião. Ouvi atentamente todos os ilustres participantes, cada qual se superando nas loas e elegias à cidade-árvore, e, concluídas as intervenções, convidei o velho líder Mesquita para assumir o meu lugar para, mesmo sendo forasteiro do Ceará-Mirim, apresentar uma proposição.
Perguntei se algum deles já havia lido “Trilogia do Cotidiano”, “Pisa na Fulô”, ou “Macaíba de seu Mesquita”, do jovem Valério Mesquita. O velho Alfredo, entre a satisfação e o orgulho, levantou a mão. Auta de Souza o secundou, confessando haver realizado uma leitura astralina dessa obra e fez questão de registrar a gratidão pela solidariedade do autor quando demoliram a sua casa.
Atrevi-me e pedi licença para algumas considerações.
Edclarecii que nesses e em outros livros, o macaibense sempre macaibense Valério, ofertava-se à sua terra, arrancando-a de um anonimato ruinoso e decadente, para exibi-la viva, vibrante, original, como desagravasse uma falsa imagem que se tem de alguém colhido pela velhice, testemunhando, através de uma velha foto, a fisionomia real e imorredoura que ainda pode ser distinta se comparada aos sinais contemporâneos.
Um procedimento mágico e simples em que o investigador, movido pela imaginação e pelo amor , vai afastando as rugas, a calvície, os olhos vazios e a boca quase vazia de dentes que compõem o molde real e então como que captura os sinais de vitalidade da perdida juventude escondidos pelo tempo. Que de fato nos apresenta uma ilusão de ótica.
São relatos bem humorados que não alcançam o desrespeito nem a gozação, mas que revelam um espírito desarmado e feliz que confraterniza o humanismo dos seus quase-personagens. É uma declaração de amor e de saudade, um preito ao seu tempo de aprendizado da vida em que foi iniciado por mestres e mestras tão experientes e tão plenos de amor à existência.
Em seguida, Olimpio Maciel também manifestou o conhecimento e o reconhecimento do lavor do seu conterrâneo em favor da pátria aldeada.
Otacílio Alecrim estava desolado. Não, não o conhecia, mas tivera conhecimento do seu empenho pessoal para reeditar as suas obras. Fabrício, o dínamo macaibense, estaria comprometido com outras fundações. Augusto lamentou a falta de tempo, envolvido nas suas aventuras aéreas. Alberto Maranhão alegou o seu envolvimento com as questões políticas e Castriciano com alguns projetos educacionais.
Prossegui.
- Tenho uma proposta para a qual peço a atenção e a devida consideração de Vosmecês. Que Valério seja declarado “Benemérito de Macaíba”, com a chancela desse seleto grupo de ilustres macaibenses, que, por todos os títulos, são os expoentes da cidade, aqueles que lhe deram aprumo e norteio.
Auta de Souza e Olímpio Maciel passaram a relatar as iniciativas do homenageado em favor de Macaíba e, depois dos relatórios, li alguns trechos da “Trilogia”, exatamente aqueles que mais diretamente expressavam o amor incondicional e irrestrito do jovem macaibense à sua terra, as suas preocupações e temores, as suas indignações e as suas esperanças.
A moção foi aprovada por unanimidade e eu, apenas um escrevinhador-cambiteiro do alagadiço da terra dos canaviais, fui encarregado de lavrar o relatório com as conclusões da reunião, missão que aceitei com prazer, advertindo, todavia, os participantes, que o faria do meu jeito, sem protocolo, pompa ou circunstância como sói acontecer com as almas alforriadas da escravidão dos paletós e gravatas, dos entretantos e considerandos.
Alfredo Mesquita me abraçou com muita efusão e me disse para transmitir ao filho o orgulho e o amor de um pai estremecido pela saudade e pela gratidão. Que perseverasse, porque Macaíba era maior que qualquer querela, circunstância ou reparo. Que se lembrasse quantas vezes, ele, o pai, com uma espinha entalada na garganta, tivera que degluti-la a seco, a troco da paz familiar ou do interesse de sua cidade.
Disse-lhe, em resposta, que o seu filho era agora Conselheiro do Tribunal de Contas e havia-se retirado da arena da política partidária militante, conformando-se na trincheira do jornalismo. O velho ficou pensativo, mas não demonstrou, na sua expressão, qualquer ricto que pudesse ser objeto de interpretação. Não ouso avaliar o seu silêncio, até para concordar com as minhas aulas de direito quando dizia aos alunos que o ditado “quem cala consente” é um engodo jurídico. De fato, quem cala, não diz nada.
Com passos firmes, acompanhou-me até o Cais, olhou em grande angular a sua terra querida e desapareceu numa neblina sabendo a fios de prata.
Passo ao meu relatório.
E começo dizendo que Valério é uma instituição. Ultrapassou o limite do individual e do coletivo. Instituiu-se. Plantou-se e enraizou-se duplamente macaíba, árvore e cidade e triplamente folha, fruto e flor nas variações do Coité, da Macaíba e no advento da Valeriana.
Ninguém o excede no amor à sua terra, nem mesmo Jorge Fernandes, o Drummond de Itabira, ou Mauro Mota e Capiba do Recife. Talvez o iguale o Mestre Cascudo. Eu disse talvez, porque o meu guru universalizou-se, não tem mais eira nem beira, é de domínio público. Nilo e Edgar, cidadãos beneméritos do meu amado Ceará-Mirim, guardaram um amor telúrico, emotivo, mas construído à distância, nos ontens da infância, pelas veredas da saudade.
Em direção oposta, o meu colega-amigo de infância do Marista, Valério Mesquita, fundeou-se nas ribeiras do Jundiaí e aí deixou que a sua âncora se incrustasse no leito do rio, irreversível, inamovível, definitivamente presa, sem direito a alvará de soltura ou possibilidade de habeas corpus, porque o paciente não pretende se libertar. Ao contrário, mais e mais se enreda nas teias da doce e caprichosa prisão patrocinada pela amada.
A diferença entre este macaibense e outros amantes de suas respectivas aldeias é mais visível quando se constata que Valério viveu toda a sua vida na sua cidade. Aqui e ali, permitindo-se a certas licenciosidades com a vizinha Natal, mas fidelizado à sua terra. Conviveu com o seu povo, sentiu o cheiro da cidade, encheu os olhos do seu casario, participou do trivial e do cotidiano, foi bem-amado e mal-amado, sorriu, chorou, foi amamentado e desleitado.
Valério é parte de Macaíba, não um seu destaque, como as ilustres personalidades aldeãs famosas e arribadas que, tal como o pássaro do Baghavad Gita, mergulham e não molham a plumagem. Ao invés, ele se envolve, participa, briga, realiza, pacifica, frustra-se com os pleitos desatendidos, vibra com as realizações. Respira Macaíba. E mergulha por inteiro no Jundiaí, molhando toda a penugem.
Estica as pernas e vai às ruas do Pernambuquinho, do Comércio, Dr. Pedro Velho, da Cruz, do Umarizeiro, do Gango...Abre os braços e recebe a criança apadrinhada, o abraço do esmoler satisfeito, a noiva para entrega ao consorte, o capão para o almoço, a cuia de feijão verde, o abaixo assinado, a carta anônima difamatória, o escapulário, as rezas das novenas, o retrato da padroeira, o caçuá de manga, a cesta de cajus, a “lapada” de cana de um Zé qualquer, muito importante.
Abre os olhos e se depara com o sol mais ensolarado das manhãs nascentes de verão, com os luares sonsos e acolhedores à beira do rio ou sob o abrigo da ponte devassa, a policromia de uma cidade que vive constantemente luminescente fletindo-se sobre a paisagem. Descobre a diferença entre ver e enxergar, num, os olhos fotografam apenas, noutro, as retinas comunicam à memória a necessidade de registro para toda a vida e ao coração, o prazer da beleza.
Macaíba é o seu rosário, o seu lençol de cheiro, a água de beber da quartinha amanhecida, a pátria natural e afetiva, o seu chão, leste e oeste, horizonte e infinito. Ponto de fuga. Sonho e pesadelo. Vá lá! Que seja um lugar comum, mas é verdade verdadeira: seu oxigênio. Tanto que, afastado do cotidiano de Macaíba, o ar fica rarefeito e Valério ressente-se de mil e uma patologias das vias aéreas. Então, embarca no Pax de Augusto ou na luz mística de Auta e sobrevoa a cidade, sobrevindo a cura. Macaíba é seu xarope, bálsamo e vitamina.
E tanto amor não distingue macaibenses e macaibeiros. Alcança os dois, porque o amálgama é o amor à terra. E porque dizem que é melhor amante aquele que fez a opção de filiação do que o que não teve alternativas senão render-se à fatalidade.
Tem apenas duas queixas urbanas recorrentes: a demolição do prédio onde nasceu Auta de Souza, com a inevitável queda do jasmineiro ao pé do qual a doce poeta cantou os seus versos; e o não ter comprado o casarão onde morou o seu avô e ele próprio, ainda menino.
E um reparo sómente: de um Prefeito que quis mudar o nome do conjunto habitacional que leva o nome do seu pai, num ato revanchista mesquinho e desmotivado. Fato já superado graças às transigências de parte a parte.
Aliás, o benemérito macaibense é mestre na arte da negociação, da conciliação e da transigência. Desde que não lhe pisem o calo de estimação – a sua dignidade pessoal, a sua honra, únicos patrimônios que amealhou vida inteira. Sem esse aceiro, o fogo se espalha e as brasas incendeiam o rastilho da porção Mesquita. Quem nem aquela provocação infantil interiorana dos cuspes simbólicos: t´aqui sua mãe e t´aqui a minha. Pisasse na mãe do outro...!
Mas as compensações são maiores que as desfeitas, e ele prefere pensar naquilo que acresce ao seu amor pela terra natal, desprezando o que o afasta, porque Valério tem a mesma estatura moral que a sua envergadura física e a mesma maturação dos cajus veraneados.
Disse, certa vez, que há um tipo de conhecimento que nos credencia a afirmar que somos os melhores do mundo: o nosso dialeto, a nossa aldeia. Ninguém no mundo nos supera nessa ciência. Por isso insisto tanto para que os meus filhos se dediquem à língua brasílica e à história, geografia e geopolítica do nosso país.
Louvado nesse raciocínio, eu posso assegurar que ninguém conhece mais Macaíba que Valério, e por isso ele é a maior autoridade do mundo na Macaibística. Não me cochichem Alecrim, Tavares, ou quem quer que se pretenda ser. O diferencial valeriano é o amor e a vivência. Pensem num amor que se realiza à distância, que preserva o amante dos inconvenientes do dia-a-dia. Amor assim pode eternizar-se, mas não é verdadeiro, não há irmanação. Acaba-se no primeiro mau cheiro. Ama-se mais o que se vê refletido no objeto amado, além das virtudes e das excelências, nunca o negativo que habita todas as coisas. O lado gauche e noir de ser de cada criatura humana.
Valério conhece e vê Macaíba pelo direito e pelo avesso. O aroma e a inhaca. As grandezas e as pequenezas. As graças e as desgraças. Os bons e os maus tempos. O progresso e a decadência. Vive Macaíba como quem vive o seu amor com mulher de virtudes e temperanças medianas, defeitos e deslizes também meãos. Sem alardes, sem ostentação, sem glamour, nem juras ao luar. Ali, no corpo a corpo, no mano a mano, de pés descalços, suado, descabelado, comendo com as mãos os ossos da galinha roubada no sábado de aleluia. Com farofa da graxa dela mesmo.
Picado pelas mesmas muriçocas, alcançado pela falta d´água e de saneamento, sinal ruim da televisão, calor atroz na sessão do cinema desconfortável e sombrio, roupa lavada com anil e batida nas pedras do rio, gole de zinebra com umbu-cajá sentado num impoderável tamborete na casa de mulher-dama.
Ouvir as arrelias e arengas dos populares amigos. Dividir o pão, literalmente, e pagar o caldo de cana no mercado. Pelejar com os amigos da opa. Tirar os pequenos contraventores da cadeia. Ir à feira como cidadão comum, catando os versos dos repentistas e cantadores, experimentando a farinha e o picado, o fubá recém-pilado e a goma fresca para a tapioca e o grude.
Só quem vive esse cotidiano, em tempo real, pode dizer que conhece a sua aldeia, porque o tempo não pára, não estaciona nas memórias, nem nas lembranças fugazes. Há, sim, o tempo virtual das recordações. Esses momentos servem à individualidade, em fuga do inferno ou de retorno ao paraíso, ou ainda, ao intelecto à procura de um tema literário. Mas não marcam com fidelidade de origem, como digital ou pedigree, a fixação epidérmica do amante em relação à sua amada.
Olho Valério e apesar de enxergar nele o facies do pai, Alfredo Mesquita e de alguns outros espectros alheios ou de genéticas ancestralidades, consigo ver também, encorpado nele e ao seu redor, azinhavrado numa simpática algazarra, os “Zés” do seu chão: Zé da Bomba, Zé Jeep, Zé Caíco, Zé Mimoso, Zé Batata, Zé Deca, Zé Buchudo, que bem poderiam ser personagens de outro Zé, o Condé, de uma Caruaru por ele glorificada e imortalizada no “Pensão Riso da Noite”. Os boêmios e os “bocas do inferno”, gente simples, carne com osso e pelanca, no entanto iguarias de primeira, temperadas e cozidas no fogo brando do coração Valeriano.
Vejo nele um gentil-homem, um fidalgo caboclo, sertanejo na sua compreensão mais abrangente, saído do romance armorial de Ariano Suassuna: valente, decidido, decente, justiceiro e perdidamente compromissado com a sua terra.
Se pudesse fazer outra proposição aos ilustres macaibenses, os já encantados e por isso mesmo mais influentes ainda sobre a população descendente deles, seria para que se instituísse um Senado com jurisdição municipal e se criasse apenas um único cargo de Senador, vitalício, que só pudesse ser provido por Valério, extinguindo-se após sua morte.
Ou que Macaíba passasse a se chamar “Valeriana”, outra espécie vegetal (valeriana officinalis), também conhecida como erva-gato, recomendada para acalmar acessos de histerismos, espasmos, epilepsia, convulsões, neuralgias e dores de cabeça persistentes. Calmante para os nervos e estabilizante emocional.
No porte, a Macaibistica acusaria um retraimento da cidade á condição de menor porção vegetal, depois de ter sido promovida de arbusto a árvore. Mas a sua redução teria muito mais valia, como já se verifica, correndo em sua defesa o dito popular assacado nas disputas de brigas de rua: o que passar de mim é podre, ou nos discursos de efeito: são os pequenos frascos que contêm as melhores essências. A terapêutica municipal traria inúmeras vantagens e compensações.
Sobretudo nas refregas e quase carnificinas do período eleitoral. Luta de canibais e de xipófagos, coisa para ser narrada por Homero, o grego, ou pelo americano Stephen King. Fratricídio, parricídio. Traições, infâmia, tresloucamentos.
Melhor, portanto, a convocação para o chá de valeriana.

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É este o relato, ao meu modo de também pastorador de lembranças, ou, no melhor dizer de Valério, capataz de lembranças.
Mas a vida continua, mutante como ela só, como por perto filosofou dona Nair, mãe do meu amigo, na altura do seu mais do que centenário. Só não mudou o itinerário sentimental do seu filho, que permanece romeiro devoto da rua da Cruz, quando menos, nos sonhos cotidianos. Os passos sempre o conduzem ao número 39 para reverenciar o imemorial que se cristaliza numa dobra de intemporal dimensão, movido apenas pela lembrança.
È como se recorressemos a uma passagem do livro “O Pássaro Azul” de Maurice Maeterlinck, quando um velho, esclarecendo a surpresa do neto por vê-lo vivo, depois da morte, lhe diz: nós só morremos, de fato, quando somos esquecidos.


PEDRO SIMÕES – Professor de Direito. Escritor. Advogado.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

A BRIOSA VILA


LÚCIA HELENA PEREIRA
Lúcia Helena Pereira (*)

E DEUS DERRAMOU AS ESMERALDAS MAIS PURAS E BRILHANTES, SOBRE O VALE VERDE, ALVISSAREIRO!

EM 30 DE JULHO DE 1858, CEARÁ-MIRIM TEVE SEU NOME OFICIALIZADO COMO MUNICÍPIO DO RIO GRANDE DO NORTE. CENTO E CINQUENTA E DOIS ANOS JÁ SE PASSARAM E A BRIOSA VILA, BOCA DA MATA, OU QUALQUER OUTRO NOME NA TOPONÍMIA CRIADA PELOS HOMENS, CONTINUA COM SEU JEITINHO PROVINCIANO E LÍRICO. É A VELHA E QUERIDA CIDADEZINHA DOS ANTIGOS SOBRADOS, ENGENHOS, OLHEIROS E RIOS; DO MERCADO PÚBLICO, DA GENTE BOA E SIMPLES.
CEARÁ-MIRIM DA VEGETAÇÃO PERFUMADA, DA BRISA AMENA E DO CANAVIAL ONDULANTE REQUEBRANDO-SE AO SOPRO DO VENTO.
CEARÁ-MIRIM DOS COMPADRES; DOS TOCADORES DE RABECA; DO ANTIGO CIRCO NERINO - COM OS TRAPEZISTAS ROGER E MACOTINHA - CAUSANDO VERDADEIRO REBULIÇO NA CIDADE. CEARÁ-MIRIM DA PRAÇA BARÃO DO CEARÁ-MIRIM, ONDE, AO CAIR DA TARDE, OS PÁSSAROS FAZEM SEUS BAILADOS DIANTE DA MATRIZ IMPONENTE, ANTES DE ARRIBAREM EM VÔOS MAJESTOSOS, ENRE 17 E 17:30.
CEARÁ-MIRIM DE JOSÉ ANTUNES DE OLIVEIRA, MADELANA ANTUNES, ADELE DE OLIVEIRA, EDGAR BARBOSA, NILO PEREIRA, DR. PERCÍLIO, JUVENAL ANTUNES, ONOFRE SOARES, DE ABEL E RUY ANTUNES PEREIRA, HERBERT WASHINGTON DANTAS, RUI PEREIRA JÚNIOR, ETELVINA E EZEQUIEL ANTUNES, ROBERTO PEREIRA VARELLA, MARIA LÚCIA DE OLIVEIRA BRANDÃO, CLETO BRANDÃO, RAIMUNDO PEREIRA PACHECO, AUGUSTO VAZ NETO, RIQUETE E AUGUSTA PEREIRA, LUÍS LOPES VARELLA, ALÉM DA PRESENÇA MARCANTE DO CAICOENSE ABNER DE BRITO.
A BRIOSA VILA COM SUAS NOITES CHEIAS DE ESTRELAS ILUMINANDO A SOLIDÃO DOS CANAVIAIS. É PARA ESSA PAISAGEM QUE SEMPRE ME VOLTO, COMO SE VOLTASSE A UM MUNDO ENCANTADO, À QUIMERA, A POESIA, AO SONHO. CEARÁ-MIRIM É A MINHA PAISAGEM DE INFÂNCIA. A FONTE ONDE VEJO O MEU ROSTO REFLETIDO NAQUELA ÁGUA PURA, A ÁGUA QUE CORRE NO VALE, ILUMINANDO SUA PAISAGEM IDÍLICA, QUE ME FAZ TÃO RICA, AFINAL, VIVO DESSA HERANÇA MÍTICA E MÍSTICA.
DIA 30 O DOBRE DOS SINOS DA MATRIZ DE N.SRA. DA CONCEIÇÃO ANUNCIARÁ O ANIVERSÁRIO DE 152 ANOS DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA, COM EXTENSA PROGRAMAÇÃO PELA PREFEITURA MUNICIPAL. AO MESMO TEMPO, A REALIZAÇÃO DA TERCEIRA EDIÇÃO DO EVENTO IDEALIZADO E REALIZADO PELA DRA. ZENEIDE BEZERRA,DIRETORA DO ÓRO DE CEARÁ-MIRIM, COM APOIO DO DR. RAFAEL GODEIRO, PRESIDENTE DO TJ/RN.
ZENEIDE BEZERRA É A ADMIRÁVEL MULHER DO JUDICIÁRIO, REVOLUCIONANDO A CIDADE, REALIZANDO CASAMENTOS NUM SÓ DIA, BEM COMO, A CONFECÇÃO DE DOCUMENTOS DE IDENTIDADE, CPF E OUTROS. JUSTIÇA NA PRAÇA, SEMPRE COM MUITO SUCESSO, NESTA EDIÇÃO, COM ABERTURA EM 29 DE JULHO, ENTRE OUTROS ENTRETENIMENTOS CULTURAIS, LEVARÁ À "PRAÇA", ESCRITORES QUE SE IMORTALIZARM, ATRAVÉS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES CARACTERIZADOS DOS ESCRITORES, ESCRAVOS, SENHORES DE ENGENHO, SINHÁS MOÇAS, BARÃO E TUDO O MAIS DE IMPORTANTES PÉRÍODOS DA HISTÓRIA DE CEARÁ-MIRIM, DO RIO GRANDE
DO NORTE E DO BRASIL.
AGRADEÇO AO MEU VALE TANTOS NOMES DE EXPRESSÃO: FRANKLIN JORGE ROQUE, GIBSON MACHADO, MARCOS E CEICINHA CÂMARA, WALDECK,
PEDRO SIMÕES NETO, HÉLIO VENÂNCIO E LÊDA, IZABEL MARQUES, EDVALDO MORAIS (MOSSOROENSE ADOTADO PELO VALE), ESTEFERSON SANDIS, MÁRCIA XAVIER, ERIVÂNIA MORAIS, HELICARLA MORAIS, GERINALDO MOURA E MUITOS OUTROS QUE SÓ ENGRANDECEM A MEMÓRIA DO VALE VERDE.
À MINHA BRIOSA VILA DECLARO, COMO SEMPRE FIZ, O MEU AMOR,
MINHA SAUDADE E A GRANDEZA DE LÁ TER NASCIDO E FINCADO, MINHAS RAÍZES NOS MASSAPÊS PERFUMADOS DO VALE - MARCAS DA MINHA HISTÓRIA QUE É FEITA DE POESIA E DE SAUDADE.
AGRADECIMENTOS AO EMPENHO DO PREFEITO - ANTÔNIO MARCOS PEIXOTO - QUE NÃO MEDIU ESFORÇOS PARA ESSES FESTEJOS. À DRA. ZENEIDE BEZERRA O MEU AGRADECIMENTO PELO AMOR QUE DEDICA AO VALE, AO PONTO DE REFERIR- SE A ELE COMO "NOSSA TERRA".

A TODOS QUE FAZEM ESSA FESTA E ESSA HISTÓRIA - OBRIGADA!

(*) Escritora cearamirinense

segunda-feira, 26 de julho de 2010

INFORMA "O SANTO OFÍCIO", de Franklin Jorge

"MORRE O MAESTRO CUSSY DE ALMEIDA
25 de julho de 2010 A Orquestra Cidadã Meninos do Coque ficou órfã nesta sexta-feira à noite após a morte do maestro Cussy de Almeida, 74.

O regente e idealizador do projeto estava internado no Hospital Santa Joana e faleceu em decorrência de uma deficiência pulmonar.

O corpo de Cussy foi velado no Cemitério Morada da Paz, em Paulista, na região metropolitana do Recife. Em sua memoria, foi programada uma apresentação dos meninos às 14h, no local onde aconteceu a cerimônia de adeus a Almeida.

Sua familia era tradicionalmente ligada a Natal e à cultura musical natalense."

TODOS NÓS LAMENTAMOS O ACONTECIMENTO E ROGAMOS A DEUS POR SUA ALMA.

Registado no blog de Lúcia Helena:
O DIA DO ESCRITOR FOI UMA DIA DE MUITOS ENCONTROS, ALEGRIAS, LITERATURA E DISCUSSÕES DE SUMA IMPORTÂNCIA.
IARA MARIA, GERALDA EFIGÊNIA, TARCÍSIO GURGEL
E EDUARDO GOSSON (PRESIDENTE DA UBR/RN),
,NA REUNIÃO EM HOMENAGEM
AO DIA DO ESCRITOR, NA LIVRARIA SICILIANO DO
SICILIANO DO MIDWAY MALL.
PLATÉIA BEM PARTICIPATIVA

PARABÉNS AOS MEUS CAROS COMPANHEIROS DA UBE / RN, PELO DIA DO ESCRITOR!

domingo, 25 de julho de 2010



DIA NACIONAL DO ESCRITOR

A data de 25 de julho marca o Dia Nacional do Escritor, assim definida por Decreto Governamental de 1960, em decorrência do sucesso do I Festival do Escritor Brasileiro, organizado naquele ano pela União Brasileira de Escritores, por iniciativa de seu Presidente, João Peregrino Júnior, e de seu vice-presidente, Jorge Amado.

O escritor, apesar das drásticas modificações dos costumes, continua a cultuar a coragem, a palavra e a emoção.

Nossa cidade estará comemorando, logo mais, a data com a seguinte programação:


DIA DO ESCRITOR
(25 DE JULHO)
PROGRAMAÇÃO
16h – Do ofício de Escrever
Moderador: Eduardo Gosson – UBE/RN
(Tarcísio Gurgel – UBE/RN , Geralda Efigênia - SPVA e Iara Maria – Casarão de Poesia)

Realização: UNIÃO BRASILEIRA DE ESCRITORES DO RIO GRANDE DO NORTE - UBERN
Patrocínio: Livraria Siciliano
Data: 25 de julho (Domingo)
Hora: 16h
Local: Livraria Siciliano do Midway Mall
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O LIVRO DE ADÉLIA

“Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o “de”, o “aliás”,
O “o”, o “porém” e o “que”, esta incompreensível
muleta que me apóia.”(*)

Tenho um livro dos porquês do chileno Neruda. Foi-me dado por ele, o homem que não me queria nem tolerava as minhas arrelias comigo mesmo. Até hoje me pergunto por que, se eu não era dada à leitura, nem ele às compras de livros.
Nunca o li nem o consultei – porque o faria se o que quero são respostas?
Os porquês existem para se conservarem enigmas ou para serem como os espinhos do cardeiro: abraçam-nos e nos excitam com grosseria e crueldade, possuem-nos e depois nos abandonam, flores temporãs inacessíveis.
Deixou-me, o meu amado, assim sem mais nem menos. Trocou-me pelas baldias e vãs promessas de carnaval. Deixou-me antes da quarta de feira de cinzas, segundo ele, em consideração ao meu dedicar-me e bem querer seus reconhecidos. Senão, deixaria a folia passar e só então poria a cruz de cinza na minha testa de penitente.
Um palhaço cruel é o que ele é, e pensa que é aranha. Pôs-me parideira de bocas famintas e desamparadas e se sentiu preso e presa de sua própria teia. E a prisioneira era eu, uma colombina invertida e ridícula, de fato uma odalisca do seu harém.
Um dia, cansada de crescer apenas nas profundezas, como fosse raiz, emergi do túmulo em que jazia morta-viva e busquei a superfície. Cresci em plena estiagem, na sede e na fome, lambendo o sal das lágrimas, roendo, como o cachorro ao osso liso e seco de seiva, o fel da solidão. Mas cresci. Entroncada, coxa e vesga, tal as mudas plantadas sem cuidado que por teimosia nascem, murchas, atrofiadas e sem viço, mas crescem.
Tornei-me esta espécie vegetal indecisa entre o espinheiro e a violeta que é flor da paixão impossível, irrealizável, tão à vontade nos longos cabelos de Maria Madalena. Conservei, desde o túmulo, os olhos secos, a boca gosmenta, a voz sumida e o sexo úmido com ânsias sempre adiadas.
Então, perdi-me toda em luares, querendo a lua do céu, buscando a lua no mar. Sem farol, meu barco naufragou, afoguei-me; desejei ser incinerada viva, engasguei-me, mordi a língua muitas vezes nas pragas rogadas com ressentimento. Mas, afinal, sempre segui caminhando, trôpega e incerta, sabendo que só o fazia, e devia fazê-lo, para dar rumo aos meus rebentos.
Sofri, sofri e sofri. Meu Deus, como sofri!
Por que?
O livro não responde, ao invés agrava a pergunta e a empurra goela abaixo.

“A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada”(*)

Dia de extremada solidão e maior recorrência ao desespero, subi no dorso de um dragão, eu, uma aventureira de poltrona, e apontei o rumo: Sodoma e Gomorra. Queria buscá-lo nas orgias, tirá-lo do braço das mulheres alugadas, suspeitando até das viragos, menos para tê-lo comigo que para satisfazer à pergunta: por que?
Volteei e volteei por sobre as cidades calcinadas e povoadas por estátuas de sal. Talvez o encontrasse, enrodilhado nalgum canto de muro a salvo da catástrofe, pois era sempre sobrevivente o meu homem. Mesmo quando queria morrer, lhe era negado esse findar.
Mas, se sobrevivente ele não tivesse sido, pelo não querendo vê-lo petrificado, retornei à poltrona e me deixei ficar, suspensa por um fio de sono, pendular entre o ser-não-sendo e o sendo-não-acontecido. Em estado de vigília, mola distendida para a ansiedade, garras afiadas para as acontecências inesperadas
Na manhãzinha recém-inaugurada, anunciando a barra do dia, arrependi-me da decisão e, talvez pelo remorso, diminui, encolhi, fiquei menos que um besouro, uma formiga talvez. Foi quando fiz nova montaria num beija-flor que, se me viu, disfarçou com o não visto e, conduzida por uma pilotagem planejada todos os dias, desloquei-me do solo.
Andei de flor em flor. Bom ofício na alegria, triste romaria na tristeza. Cada flor trai uma lembrança, eis porque é ser mutante e volúvel. Suspensa no ar, imponderável, senti vertigens. Não que sofresse mal das alturas, mas afastar-me da terra me causava pânico, a mesma sensação do recém-nascido, se percepção lhe fosse dada, quando cortam o cordão umbilical.
O pólen das flores de laranjeira me aquietou, o orvalho madrugador hidratou-me os lábios, o mel roubado das abelhas adoçou-me a boca. O vento frio despertou-me do torpor.
Era preciso mais, muito mais do que um instante, um átimo de tempo, um momento pressentidamente fugaz, para superar-me, ultrapassar o estado de agonia. Queria sentir-me viva pelo frêmito das carnes, o poder variar de emoções – do desespero mais pungente à alegria mais desvairada. Poder cortar a pele pela experiência de me ver tosada, de me limitar nos excessos, jamais como prática de auto-mutilação.
O pássaro pousou-me no chão e novamente cresci. Ainda entroncada, coxa e vesga, mas já nos achádegos das alvíssaras.

“Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.”(*)

Concluí que é preciso morrer para renascer. A reforma não me cabe. Ainda lembro daquele vestido herdado da minha prima, mal amanhado, coisa que o corpo desalinhava e a vontade repugna. Fui até alertada da existência de Brancas de Neves e Pretas e de Carvoarias por um espelho duas vezes avoengo, que sempre me disse ser a mais bela, mesmo que não fosse. Afinal, as avós não tem língua de mel?
Por que?
Decidi então que só teria o que fosse minha serventia por natureza. Por isso, não deu certo o meu amor, uma coisa arranjada, caridosa, postiça... e eu lá precisava disso, radiante, jovem, bonita, bem fornida de corpo, olhos cheios de amanhãs, fruta sumarenta e doce, pronta para ser colhida... deixa pra lá.
A verdade é que preciso desconstruir-me, pedaço por pedaço, até desfazer-me em pó, para depois reconstruir-me, à imagem e semelhança de mim, do molde que é a minha própria individualidade. Nem mais, nem menos.
Quero afastar essa tristeza que não tem pedigree, pois a minha vontade de alegria é extensão de uma raiz que vai ao meu mil avô.
Até meu pai que não era, tornou-se mestre zabumbeiro. Minha mãe fazia bonecas de pano com uns olhinhos de retrós de cor azul que pareciam sorrir.
Ele, o perverso, também fazia gracejos que me divertiam, mas não era alegre. Espirituoso, talvez, engenhoso na arte da sedução, com certeza.
Esse velho espelho da minha bisavó, quem sabe, me devolve a menina de antes nesse corpo de mulher feita. Já se vê uns olhos com um certo brilho, distante mas caminheiro. Os lábios agora se entreabrem e até gritam pelo batom proscrito. As maçãs do rosto pedem blush. As sobrancelhas querem ser podadas para nascerem mais felizes. Toda “eu” pede mudanças.
Mas, quero renascer das cinzas, sem colar-me, nem costurar os retalhos de mim numa colcha para cobrir-me. Quero sair de mim-vegetal, borboleteando fora do casulo. Quero ser. Outra espécie, uma que recolha os sofreres mas não os colecione, deixa que cada um seja devorado por uma alegria que, como disse, é ancestral – está na epiderme e no DNA.
Quero renascer todos os dias. Refazer-me. Experimentar-me.
Quero olhar-me, um privilégio sufocado pela miopia de mim mesma, pois as grossas lentes dos meus óculos estavam focadas sempre no outro eu - ele, sempre ele, crescendo e projetando a sua sombra sobre mim, menos que um parasita benfazejo em torno dele.

“Quando nasci um anjo esbelto
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.”(*)

Alguém que não se confunde com uma alma caridosa, presenteou-me com um livro incomum, agravando-se a suspeita da desfeita porque todos sabem que não me achego aos escritos. Uma tragédia grega: Medéia. Pelo inusitado, curiosei. Folheei o dito sem jeito, nem vontade. Aqui e ali colhia um espanto, até que me vi personagem e dei novo nome ao meu homem: Creonte, que lhe cabia melhor que qualquer aviamento encomendado.
Fui entregue pelo meu pai em estado virginal e muito bem dotada, ao meu futuro marido. Saindo de um para outro patriarcado, ainda assim, crescida em viveres, como só os sofridos conseguem.
Pois fui vilã de folhetim amargoso. Uma tragédia inenarrável, que não pedi e não recebi libelo confirmador de culpa. Mesmo assim foi-me dada a autoria e só isso me importou, nem dei ouvidos à absolvição baseada no não-querer.
Alguns dias depois do meu nascimento, minha mãe saiu do mundo dos humanos e foi morar no Reino de Deus. Dizem que em decorrência do meu nascimento. E era dia de Nossa Senhora, que, certamente tinha dois propósitos. Para minha mãe, o céu. Para mim, as cercanias do inferno.
Mulher é desdobrável, eu sei. Sujeita às marés do destino. Por isso se perde pelas veredas, becos e avenidas da vida. Deixando pedaços de si como testemunhos de sua doação.
Eis porque, quando acasalei, varri e catei os cacos de cristal e do artesanato de barro e me fiz uma só para a empreitada de forjar um homem.
Pois muito bem. Fiz do menino mimado e bonito um homem-árvore. Adubei-o e me fiz sua nutriente no dia-a-dia. Afrontei-o muitas vezes, alcançando o seu machismo só para provocá-lo, forçando-o a tomar uma atitude. Fazia parte da minha estratégia para o seu aprendizado.
Pedi-lhe sala, mesa e cama. Deu-me nada, fingindo, sestroso, que me atendia. Mas aprendeu como se doava, mesmo insincero. Cavalguei-o esporeando-o, para que mantivesse a andadura. Tornou-se ginete e montaria, centauro.
Mostrei-lhe o berço vazio e orgulhei a sua descendência. Concedeu-me.
Dei-lhe a força que nunca tive para fortalecer a sua fraqueza. Dei-me. Toda. Sem reserva nem garantias. Porque sou assim imprevidente e dadivosa.
Concluído o trabalho, o meu amado quis experimentar-se em outras fontes. Tolerei. Coisa de homem, disse a mim mesmo, um tanto confusa e incrédula. Mas o amor tinha mais valia e o macho mais regalias. Ele retornaria, dizia-me, solitária, no leito abrasado, e era isso que importava. Eu era afluente, as outras eram estuários por onde corria apenas a sua semente apartada do amor vertente.
Cansei, um dia. E o escorracei como cachorro vadio e ladrão que ele de fato era. Ele ficou no nem, nem. Eu mesma comigo me desavim. Transigi. Ajoelhei-me aos seus pés para que ficasse comigo, apesar. Despojei-me do último quartel de dignidade que ainda resistia. Ele se aproveitou da minha completa rendição, quando era nada mais que ninguém, uma sombra inútil e embaraçosa, um trapo, e me despachou como bagagem.
O resto já é sabido.

“...nunca nada está morto.
O que não parece vivo, aduba.
O que parece estático, espera”.(*)


Agora, ele se foi. Definitivamente. Com o meu perdão e a minha compaixão.
Um dia voltou a pedir o meu colo, muito ferido e desmamado. Dei-lhe leite e, no início, purgativo, no corpo e na alma, para purificá-lo. Confesso, não tenho porque mentir, que o fiz com prazer, vendo-o amargar o remédio. Depois, compreendi porque o mundo é um moinho, como diz o poeta Cartola. Dá muitas voltas.
Éramos dois amigos ressentidos um com o outro, próximos e distanciados lonjuras de distância. Impossível transpor o braço de rio que nos dividia. O leito era muito profundo e nunca houve um barco com impulsão capaz de nos levar de uma à outra margem.
Tantas vezes nos olhávamos, fortuitamente, e não nos encontrávamos, nem despertávamos as lembranças de quando ou quanto tínhamos sido. Amor, amor, começa de quase tudo, termina de quase nada. Aliás, o “quase nada” está mal empregado, com todo respeito ao poeta. O quase nada no amor é um tudo para o vitimado, embora reconheça que nos embates amorosos não há vencedores, apenas vencidos.
Agora, ele se foi. Definitiva e inapelavelmente. Não há retorno. A sua passagem foi de ida, apenas. Quem sabe em outra geração, outro lugar, com a chancela de Deus não nos olharemos como se fossemos estrelas de uma mesma constelação, água do mesmo pote?
Será que fiz por ele o que deveria, ou apenas o que me coube, o que me dispus a fazer? Essa dúvida me constrange e maltrata o ser humano que há em mim em estado permanente de persistente culpa.
Não me cubro de cinzas, nem me visto de negro. Não irei à fogueira como as ranis indianas. Não estou enlutada, nem viúva. Estou sem muletas, andando sem coxear. E isso é bom? Apesar de tudo, “o” muleta era parte da minha indumentária, um amuleto que me devolvia à infância roubada, um cacoete que ainda me faz crispar involuntariamente as mãos buscando o castão da desditosa. Ai de mim!
As palavras são disfarces. Foram inventadas para serem caladas.
Morre quem entender a linguagem, esta incompreensível muleta que me apóia.
Espécie envergonhada, permaneço.
Desdobrável, eu sou.
Incorrigível.
Desconstruo-me todas as noites, estreladas ou não, enluaradas ou betuminosas.
Mas renasço todos os dias.
Reconstruída.

(*) Poemas de Adélia Prado em “Bagagem” – Ed. Nova Fronteira, 2ª Ed. 1976

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PEDRO SIMÕES – Professor de Direito. Escritor. Advogado

Querido(a)s amigo(a)s

Tive uma das mais fascinantes experiências da minha vida.
Testemunhando e escutando as confidências de uma grande amiga por alguns anos, decidi transferir-me, tanto quanto possível, para a alma dessa criatura querida, para experimentar o seu sofrimento, auscultar a grande dor que ela me transmitia.
Durante algum tempo, como que me mimetizei. Troquei de lugar, de predador (a espécie masculina) à presa (a fêmea submetida à cultura machista).
Como sofri, meu Deus! Nunca havia imaginado tanto sofrimento numa relação desigual em que o desamor faz toda a diferença.
O resultado está expresso nesse "perfil" que denominei de "O livro de Adélia", numa alusão às citações de excepcional poeta das Gerais, Adélia Prado, mas que retrata as agruras dessa amiga real convenientemente preservada, mas de carne, osso e esperança.
Um bom fim de semana e o bem querer de
Pedro
OBS - Dado o caráter intimista e o porejar da emoção, que supera o texto literário, peço que o comentem após a leitura, porque quero aferir até que ponto vocês "sentiram" como eu a angústia e o sofrimento da nossa perfilada.

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Bilhete de Bartolomeu Correia de Melo

Dom Pedro.

Seus os outros escritos que me perdoem, mas esse é o mais (demorei
para achar o adjetivo) denso e tocante. Dá pra sentir na goela o ranço
do desamor. Tem a qualidade fundamental: uma personagem redonda,
verossímil. Você construiu o melhor perfil dos que conheço. Notam-se muitas
referências das suas leituras, o que para os entendidos é uma grande
qualidade, pois mostra erudição literária. Você, como já dito, encarnou no texto a alma feminina,
e a personagem não se resume à fêmea mas à mulher integral,
até dona de um maduro feminismo,que chamo de amor-próprio inteligente. Nâo sendo assim,
ficaria uma chata, (nada pior que uma mulher burra querendo tomar consciência).
Sabe como é... mais nâo opino por não saber opinar. Mas gostei muito.
Bartola.
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QUERO O SEU OLHAR DE SOL
Lúcia Helena Pereira

Sim, quero o seu olhar de sol,
Sem a venda intrusa que a poeira cobre e ofusca.
O Seu olhar é mirante de alegrias
Alegoria festiva, convidada para os carnavais.

Vejo uma dança branca em seu olhar de mel
Requebrando-se numa esquina azul,
Onde uma íris enfeitada de doçura,
Ensaia passos ao redor do palco âmbar.

Quero o seu olhar irradiando luz,
Em terceira dimensão, com visões rosadas
De lírios se abrindo, num muro cor de primavera
Flambada de sol.

Veja a retina do seu olhar vestida de cristais
Porque tudo nele é luz, claridade,
É potencial de distância alcançada
No seu doce e puro olhar de amor.

Quero o rio brilhando em seu olhar
Apontando faróis incandescentes
A contemplar o dia e a noite,
Com uma clareza certamente pródiga.

E beijo o calor que emana do seu olhar
Nele um bafo de anjo já suspira
Anunciando o novo dia,
A nova luz de véu estelar do seu olhar.

Quero o seu olhar completamente enfeitado
Onde namoram paisagens e as flores se acasalam
Junto aos pássaros do amanhecer,
Em muita luz, brilho e um verde exuberante.

Porque o seu olhar vem da canção diurna,
Embora mudo, seu olhar canta a pulsação
Da melodia em notas magistrais,
De ré, fá, sol, lá, si...

Quero o seu olhar derramando vestigios
Espalhando a dança dos pirilampos
Num chão de folhas frescas e perfumadas,
Onde o sol desmaia seus tênues fios.

Esse seu olhar de bicho na escuridão das matas
Divisando mistérios, acendendo as clareiras,
Olhar de fogo, ardor, olhar de brisa e amanhecer
Um olhar ocre, cheio de milagres.

Quero o seu olhar abrindo as cortinas
Do grande palco da vida.
Quero-o com novo figurino, bons atores,
Quero um filtro delicado para o licor do seu olhar.

EU QUERO!