Refletindo sobre a Quaresma Padre João Medeiros Filho Em português, a palavra Quaresma é uma forma sincopada do termo latino “quadragesima”. Este, por sua vez, é o número ordinal de “quadraginta”, significando quarenta. A liturgia católica costuma recorrer a símbolos. Estes são abertos e ricos em interpretações, enquanto as palavras são, por vezes, limitadas. Na Quaresma, partindo da simbologia numérica, usual na cultura hebraica, a Igreja recorda-nos os quarenta anos de caminhada do Povo de Deus em busca de Canaã, os dias e noites esperados por Moisés para receber o Decálogo. Lembra ainda idêntico período vivido por Cristo, antes de ser tentado. Ela convida-nos a uma maior consciência da nossa condição de filhos de Deus e nosso compromisso com o Evangelho. Proporciona um retiro aos cristãos a fim de realizar uma revisão de vida. Não se trata apenas de tempo litúrgico. Representa igualmente momentos importantes de nossas existências, nos quais devemos aprofundar, com o auxílio da graça divina, nossa vivência cristã. E para isso, é indispensável defrontarmonos com nossos erros e virtudes. Conclama ao despojamento interior para o renascimento pela escuta atenta de Deus. Sua Palavra ilumina nossa vida e transforma nosso íntimo. O tempo quaresmal exorta os fiéis ao jejum e à conversão. Atualmente, na administração pública e linguagem biomédica fala-se muito em cortar gorduras. No jejum, deseja a Igreja que sejamos capazes de eliminar os excessos do desamor e egoísmo, da vaidade e injustiça. Nos dias de hoje, enfatiza-se o culto do corpo. Várias modalidades de exercícios físicos são praticadas. Jejuar é como malhar a alma, banir o que lhe é supérfluo ou nocivo para dar lugar à fome de Deus. No primeiro domingo do período quaresmal, lê-se o episódio da tentação de Jesus. Somos instados a refletir sobre o sentido do deserto. Este reveste-se de significado especial na Sagrada Escritura e na espiritualidade cristã. À primeira vista, não é habitual se deparar ali com seres vivos. Sua imensidão e silêncio levam-nos a algo mais profundo: a descoberta de Deus. Este é a única vida que se pode sentir na vastidão despovoada. Os fiéis veterotestamentários, antes de chegar à Terra Prometida, passaram também pelo deserto. Este precede qualquer experiência mística, sendo, antes de tudo, um estado de espírito. Cristo veio estabelecer o Novo Testamento para a humanidade. Teve de enfrentar o deserto: ícone de nossa fragilidade, impotência e solidão. Sentimo-nos, não raro, abandonados, tristes e sozinhos em nossos sofrimentos, angústia, perplexidade, instabilidade e tribulações. Isto representa a figura de Cristo, ao ser provado pelo demônio. O texto de Marcos tem uma peculiaridade. Não cita a quantidade de tentações, como os de Mateus e Lucas. O autor do segundo evangelho restringe-se a afirmar que Cristo foi conduzido ao deserto e “aí tentado por Satanás” (Mc 1, 13). As provocações e provações, sofridas por Ele, representam a realidade humana. O materialismo, o consumismo, gerando miséria e dependência, a exploração dos mais fracos permanecem fazendo vítimas. A manipulação religiosa aproveitando-se da fé ingênua do povo simples, em benefício de pseudo líderes e grupos inescrupulosos, constitui-se numa tentação que fala bem alto na sociedade hodierna. A idolatria do poder, passível de proporcionar corrupção, marginalizando ou excluindo indefesos e necessitados, continua sendo a expressão do ideal demoníaco. Há uma série de novas e falaciosas atrações, procurando iludir o ser humano e estabelecer o reino de Satanás, e não o Reino de Deus e do Amor. Diante disso, entende-se o apelo do Mestre: “O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1, 15). Há outro detalhe no relato de Marcos: “[Jesus] Vivia entre animais selvagens e os anjos O serviam” (Mc 1, 13). Ele veio mostrar a harmonia da criação, revelando a verdadeira ecologia. Da narração de Marcos, infere-se uma metáfora: ao ceder às tentações do demônio, o homem mostra-se bestializado. O poder, o ter e o prazer poderão nos tornar alienados e presunçosos. Mas, Cristo vencendo o demônio, assegura-nos que Ele veio aniquilar a indiferença, a injustiça e a violência. Cada um conhece o seu deserto e as suas seduções. O Mestre ensina-nos como superar tudo. “Coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16, 33), assevera-nos o Salvador.
sábado, 17 de fevereiro de 2024
O significado bíblico-espiritual das cinzas Padre João Medeiros Filho A imposição de cinzas remonta ao Antigo Testamento. Delas se cobriu Mardoqueu e se vestiu com panos de saco, ao saber do decreto do Rei Assuero, condenando à morte os judeus residentes na Pérsia (Est 4,1). E Jó declara a sua contrição assim: “Arrependo-me no pó e nas cinzas” (Jó 42, 6). Daniel, ao profetizar a tomada de Jerusalém pelos babilônios, escreveu: “Voltei o olhar para Deus, procurando fazer preces e súplicas com jejuns, vestido de tecido rústico e coberto de cinzas” (Dn 9, 3). Após a pregação de Jonas, “o povo de Nínive se vestiu de roupas grosseiras, impondo-se cinzas. O rei levantou-se do trono e sentou-se sobre elas” (Jn 3, 5-6). Tais exemplos demonstram essa prática religiosa, como símbolo de dor, compunção, penitência e conversão. Cristo aludiu a esse costume, dirigindo-se aos habitantes de Corazim e Betsaida. Eles não se arrependeram de seus pecados, apesar de terem presenciado milagres e ouvido a Boa Nova. “Se em Tiro e Sidônia tivessem sido realizados os milagres feitos no meio de vós, há muito tempo teriam demonstrado arrependimento, vestindo-se de cilício e cobrindo-se de cinzas” (Mt 11, 21), advertiu Jesus. A Igreja, desde seus primórdios, celebrou este ritual com um simbolismo análogo. O teólogo Tertuliano aconselhava o pecador a “vestir-se com tecido de estopa e cobrir-se de borralho.” O historiador descreve o bispo Natálio apresentando-se com esses trajes ao Papa Zeferino para suplicar-lhe o perdão. No cristianismo medieval, quando o penitente saía do confessionário, o sacerdote impunha-lhe cinzas para lembrar-lhe que o “velho homem” tinha sido destruído, dando lugar ao “novo homem”, segundo a expressão do apóstolo Paulo (Ef 4, 24). Por volta do século VIII, as pessoas que estavam prestes a morrer, eram deitadas no chão sobre um tecido rude e nelas se jogava pó. O sacerdote, aspergindo-as com água benta, dizia: “Lembra-te, ó criatura, que és pó e a ele hás de voltar” (cf. Gn 3, 19). Este rito foi tomando uma nova dimensão espiritual e passou a significar morte ao pecado em seus diversos aspectos: mentira, orgulho, injustiça, inveja, ódio, violência etc. Com o passar dos anos, tal hábito foi associado ao tempo quaresmal. Neste, somos convidados a sepultar o velho homem existente em cada um de nós para ressuscitar com Cristo, na Páscoa. As cinzas utilizadas na quarta-feira são obtidas com a queima das sobras de palmas bentas no Domingo de Ramos do ano anterior. O sacerdote as abençoa e impõe sobre os fiéis, dizendo: “Lembra-te que és pó e ao pó hás de voltar” (Gn 3, 19), ou então: “Converte-te e crê no Evangelho” (cf. Mc 1, 15). Essa cerimônia é um convite à preparação para a Páscoa pela vivência da Quaresma, tempo privilegiado para uma revisão de tudo o que impede nossa caminhada de fé e amor. A participação no ritual do início quaresmal expressa duas realidades fundamentais: a consciência de nossa efemeridade e a fé em nossa ressurreição. Cristo ressurgiu dos mortos, prometendo-nos também que ressurgiremos. É conhecida na mitologia grega a força de Fênix, que renasce das cinzas. Estas simbolizam mudança radical, na medida em que representam destruição. Lembra-nos que delas poderemos brotar, como criaturas renovadas pela graça inefável de Deus. Por essa razão, somos chamados a nos converter ao Evangelho de Cristo, libertando-nos da arrogância, do egoísmo, da vaidade; enfim, de tudo o que nos afasta do Divino. A palavra marcante com que se abre a celebração quaresmal – iniciada na quartafeira, após o carnaval – é conversão. Este termo de origem hebraica, indica mudança interior, dir-se-ia, transformação espiritual. Isto Cristo veio trazer com sua mensagem. Ele indicou ao ser humano um novo caminho e modo de ser e viver. O apóstolo Paulo, de forma inspirada, chama-O de “novo Adão”, uma nova humanidade (cf. Rm 5, 12-21). Com a Quaresma iniciase a Campanha da Fraternidade. Neste ano, versa sobre a “Fraternidade e amizade social”. Que as cinzas impostas sobre nossas cabeças marquem o fim de nossos preconceitos, egoísmo, violência, indiferença e tudo o que atenta contra a amizade e os laços de Deus nos corações dos homens. Afirmou o Mestre: “Todos vós sois irmãos” (Mt 23, 8).
HOMENAGEM AO AMIGO LAURO BEZERRA