ALUMBRAMENTOS
Valério Mesquita*
Mantenho reações
conservadoras diante dos fatores imanentes e iminentes da vida. Sou devoto dos
hábitos e da retórica provinciana do interior. O costume secularizado da
cadeira na calçada, da brisa sedutora do fim de tarde, do grito heróico do
vendedor de cuscuz e mugunzá ainda me apascentam. São crenças básicas na
simplicidade da vida como perpétuo e inalienável direito de existir, misturado
ao povo miúdo, posto ser melhor do que o absolutismo dos donos do palanque e da
burguesia consumista e desfigurada pelo cinismo materialista. Mas fui tomado
pelo fascínio de mesclar o real e o imaginário. Não exercito artificial adesão
ao modismo.
Nenhum vestígio que
se possa recolher da minha travessia terrena não passará da impressão de algo
plástico, aéreo, estelar, humano e sobre-humano, difuso mas cintilante, místico
e mítico. No meu bairro sou donatário da capitania não hereditária. Ou seu
capataz dos mistérios circundantes como Cláudio Emerenciano e Vicente Serejo,
hoje em Morro Branco. Não renegam a horizontabilidade urbana de onde extraem a
alma e o sumo das verdadeiras descobertas. A minha rua em Lagoa Nova é modesta.
A iluminação pública espalha no calçamento parnasiano a luz mortiça amarela,
qual um abajour lilás. No céu estrelado passeio a nostalgia que vem da herança
telúrica de um tempo que a memória ainda não desfez. O rio, a casa, a lua, a
calçada, as aparições noturnas.
Minha angustia
factual e meu desespero tipicamente social estão inseridos no contexto das
doenças que as seguradoras de saúde não cobrem. Componho o universo sensível,
ferido, por vezes amargo e infeliz, que abomina a marginalização dos pobres,
dos velhos, das crianças, vítimas do perverso sistema econômico-social. Por
isso procuro a terra habitada pelo silêncio e pela distância das coisas, porque
o meu grito é cárcere concreto e real e já não se faz mais ouvido. Conforta-me
que as palavras não são fugazes nem constituem perdas instantâneas. Meu canto é harmônico sem divagações nem
desvios, embora as tensões e os influxos se cruzem, se choquem mas não se
anulam.
Volto a minha
ruazinha comum. Nela não residem poderosos. Afinal, sozinho perscruto a tolice
dos seus mistérios visíveis e invisíveis. Não há muito que sonhar. Como
mergulhador penetro nas ruínas da alegria de sua pobreza, sem jardins, às
vezes, sem chananas, refletores ou praças. Rua opaca, empírica, apenas
onomatopaica. Mas, é o território dos meus vãos e desvãos. Nem fantasmas
líricos e bufões aparecem. Somente vislumbro minhas relíquias imemoriais da
infância e da adolescência. Restos sagrados nos olhos de quem é intimo da
ilusão, eterno aprendiz de um mundo de contradições, mas também repleto de
lembranças antigas e serenas. Tudo torna minha rua como a quero ver.
Mas, há quem não
goste da época chuvosa e fria dos últimos dias. Só não podem negar que o vento
e o frio, elementos naturais de Deus, exercem poderosa força proustiana em
busca do tempo perdido em cada um de nós. São como se fossem energias cósmicas
renováveis provindas de antiquíssimas mutações planetárias. Até porque elas são
geradas na atmosfera terrestre.
Não quis ir tão alto.
Prefiro a humanidade comum das coisas simples de explicar. E, às vezes, o pior
é que elas não são tão simples como parecem. Por isso, volto à solidão do meu
quarto, onde permaneço em comunhão com a frialdade da madrugada incomum, mas
hospitaleira. Sei que mais tarde terei outra sinfonia. A dos pardais, logo nas
primeiras horas da matina, como se vaiassem o sol emergente. Diante de tudo, e
apesar de tudo, a quem foi concedido o direito de desconhecer tais coisas: o
vento, o frio e a chuva? Termino dizendo que elas estão, não somente fora de
nós, mas, principalmente, dentro de nós.
(*) Escritor.