- Relembro: Machado de Assis (1839-1908) é o maior escritor brasileiro de todos os tempos. Primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, “O Bruxo do Cosme Velho”, esse mulato carioca, escreveu em quase todos os gêneros literários. Poesia, teatro, crônica, crítica literária, jornalismo e por aí vai, mas foi sobretudo no conto/novela e no romance que ele produziu obras-primas da literatura universal. A lista é enorme. A tríade de romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), “Quincas Borba” (1891) e “Dom Casmurro” (1899) está no pináculo da sua obra. As “Memórias”, na minha opinião, meia polegada acima. Questão de gosto, já digo, para evitar as polêmicas em que venho me metendo por estes dias.Mas, hoje, deixemos de lado os romances de Machado e nos concentremos no que seja talvez o seu mais famoso conto – que, na verdade, pela sua extensão e estrutura, está muito mais para uma novela –, “O Alienista”, de 1882.O protagonista do furdunço é o médico psiquiatra Simão Bacamarte (cujo nome é uma alusão à arma de fogo de antanho), renomado lá pelas bandas de Portugal e Espanha, que decide aplicar suas teorias na sua cidade natal, a pequena Itaguaí. São estudos sobre a loucura, suas classificações e seus níveis. Ele funda na cidade a Casa Verde, o seu manicômio. E vai enchendo-o de “loucos” de todo tipo, os vaidosos, os supersticiosos, os bajuladores, os indecisos e por aí vai. Parece aquele meme atribuído a Ariano Suassuna (1927-2014): “É tudo doido, homi!”. O alienista Bacamarte é celebrado. Um herói. Um mito. Mas, com o tempo, revoltas acontecem. Os Canjicas – os lúcidos ou loucos que se opõem ao alienista –, liderados pelo barbeiro Porfírio, fazem um levante. São vitoriosos. Mas Porfírio se alia a Bacamarte. O conselho local é substituído. Ocorre uma intervenção militar. Bacamarte volta ao poder. O critério da loucura muda. Os bons e os sãos são agora os “loucos”. Bacamarte, dentro da sua “ciência” própria, considera-se o único são da cidade. E interna-se sozinho no seu hospício. Morre anos depois, considerado o único louco/são da estória. E é enterrado em glória.Parte da coleção “Papéis Avulsos” (1892), “O Alienista” é uma obra-prima. Foi adaptado para o cinema e para a televisão. Foi reescrito pelas gerações futuras. E foi traduzido para outras línguas. Aliás, “O Alienista” é muitas vezes comparado a “The System of Doctor Tarr and Professor Fether” (1845), conto de humor negro de Edgar Allan Poe (1809-1849), sobre um hospício administrado pelos próprios internos, que, por sua vez, é às vezes interpretado como uma sátira política sobre a insensatez da democracia americana de então. “O Alienista” é uma brilhantura do nosso Bruxo, que, de louco, tinha muito pouco.Bom, e como podemos interpretar/atualizar “O Alienista” para os dias de hoje, com essa tragédia/loucura pandêmica sem precedentes que assola o nosso país?Como podemos enxergar “O Alienista” num mundo em que todos os cientistas (epidemiologistas, geneticistas, estatísticos, matemáticos, sociólogos, juristas, economistas e por aí vai) pregam num só sentido? Num mundo onde as autoridades sanitárias da OMS, OPAS, CDC, FDA, os governos da Alemanha, França, Reino Unido, EUA, Japão, Chile etc. pregam a mesma coisa? E esse sentido é: vacinar, usar máscara, fazer o isolamento social necessário, testar as pessoas, melhorar o serviço de saúde já colapsado, disponibilizar programas para as empresas sobreviverem e, muitíssimo importante, criar uma rede de auxílio econômico e social para os mais vulneráveis. Porque só assim evitaremos as mortes aos milhares. Porque só assim sairemos da pandemia. E também porque não há economia viável com a pandemia.E, em especial, onde e como podemos ver “O Alienista” num país, o nosso sofrido Brasil, em que um, ou uns poucos, pregam quase exatamente o contrário?Quem seria o Bacamarte de hoje, cujo apelido “armamentista”, quero acreditar, é mera coincidência, embora Machado fosse tido como “O Bruxo”? Minha pergunta direta é: quem vocês mandariam já para a Casa Verde?